terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Sobre a gratuitidade dos transportes públicos


Conferencia do eng.Faustino Gomes, da TIS,  sobre "Tendencias para a gratuitidade do transporte público" em 25 de novembro de 2019 na sociedade de advogados SRS:

Citados os exemplos de Talin, Luxemburgo e Vargem Grande (Brasil/S.Paulo), a conclusão foi que a tendência será desejável, mas no atual contexto requer que se encontrem primeiro alternativas para o financiamento, para o necessário aumento da oferta sem degradação do serviço, contra eventuais efeitos no desemprego e na especulação imobiliária e que na sua implementação seja cumprida uma rigorosa monitorização dos resultados.

Comentário meu:

Foi uma agradável surpresa ouvir a análise lúcida pelo conferencista dos resultados das experiencias de gratuitidade já disponíveis e da problemática associada.
A gratuitidade pode ter sucesso em cidades não muito populosas. Mas será principalmente uma decisão politica, quiçá eleitoralista, que se sobrepõe à questão económica e financeira, e que requer as alternativas citadas pelo conferencista.

Dos resultados conhecidos para os primeiros meses no metropolitano de Lisboa, após o início do programa de redução tarifária, em que se prevê investir anualmente talvez 20 milhões de euros, e sublinhando que os números se referem a validações e não vendas de passes, estimou-se um aumento de 2% nas receitas e 8% na procura (dados posteriores indicam apenas 6%, mas é ainda cedo para ter certezas).
Vou tentar avaliar a evolução dos prejuízos no metro como consequência da redução tarifária, sabendo que em 2017 as receitas operacionais foram cerca de 155 milhões de euros , as despesas (incluindo juros e amortizações) 182 milhões de euros e o número de passageiros 162 milhões:

R1=n1.r1                 R2=n2.r2             C1=n1.c1         C2=n2.c2           P1=C1-R1         P2=C2-R2

Sendo
R1 a receita antes do programa de redução tarifária           R2 a receita depois do programa            r1   e    r2    as receitas por passageiro antes e depois do programa
C1 os custos antes do programa                                          C2 os custos depois do programa           c1   e    c2    os custos por passageiro antes e depois do programa
P1 e P2 os prejuízos antes e depois do programa

Fazendo  n2=1,08n1    e   R2=1,02R1      resulta   R2=n2.r2=1,08n1.r2       e   R2=1,02n1.r1           donde   1,08r2=1,02r1     e      r2=0,944r1

Isto é, a receita por passageiro diminuiu, sendo que se trata de um indicador de produtividade que só não pioraria se o número de km percorrido em média pelos passageiros subisse em compensação.  
É verdade que aumentando a indemnização compensatória (a contribuição do orçamento de Estado)  a nova receita poderá subir, mas o indicador de produtividade “indemnização compensatória por passageiro” também piorou.
Para os prejuízos antes e depois:

P2 = c2.n2 – r2.n2 = 1,08 n1.c2 – 1,02 n1.r1
P1 `= n1.c1 – n1.r1

Para que a redução tarifária não aumente os prejuízos terá de ser  

1,08 c2 – 1,02 r1 < c1 – r1

entrando com os valores referidos para a receita e a despesa, teremos para a receita por passageiro    r1=155/162 = 0,96 €/passageiro  ; e para os custos por passageiro   c1 = 182/162 = 1,12 €/pass.

1,08 c2 < 1,12 + 0,02.0,96
c2 < 1,055 €/pass.

ou

C2 / 1,08 n1 < 1,055
C2 < 1,08 . 1,055 . n1
C2 < 1,139 . C1 / c1

C2 < 1,017 C1

Isto é, para os valores considerados, para que os prejuízos não aumentem, é necessário que o custo por passageiro  diminua e o custo total não ultrapasse  mais de 1,7% o custo anterior ao programa. Isso será difícil, uma vez que o aumento de procura requer aumento da oferta com os consequentes aumentos de custos de operação, manutenção e energia.
Como conclusão parece legitimo dizer que se a gratuitidade parcial já pode aumentar os prejuízos e piora os indicadores de produtividade, então são de temer os efeitos da gratuitidade total.
Junto quadro de valores para vários parâmetros, indicando-se os limites a partir dos quais os custos terão de baixar para que o prejuízo não aumente.


                                    
Contra a ideia da gratuitidade total temos por exemplo a analogia com os gastos do Estado com a saúde e a educação, em que a gratuitidade é constitucionalmente definida como tendencial (art.64).
Gastos públicos com:
- saúde                                       5,5% do PIB / 12% da despesa pública
- educação                                 3,2%     «      /    7%           «
- infraestruturas e ambiente      4,8%      «      /   5%           «
- segurança social                   10%         «      /  21%           «
É razoável para um país desenvolvido ter uma despesa pública anual com  investimentos em infraestruturas da ordem de 2 a 3% do PIB. Para uma área metropolitana como a de Lisboa, contribuinte para o PIB em 40%, será  razoável contar anualmente com metade de 0,8% do PIB (cerca de 800 milhões de euros)para investimentos nas suas infraestruturas de transportes, mas tendo em conta que o peso dos fatores referidos, saúe, educação e segurança social, terá de aumentar.
Sendo um dos principais objetivos do movimento pela gratuitidade dos transportes públicos o desenvolvimento de sistemas de transporte sustentáveis, poderá imaginar-se que a transferência massiva das deslocações em transporte individual e em autocarros de combustíveis fósseis para transporte ecológico (ferrovia, modo elétrico e modos suaves) iria buscar a justificação económica no desperdício energético do TI e combustíveis fósseis do sistema dominante. O problema é que as infraestruturas que suportam esse sistema não estão amortizadas, muitos empregos e empresas dependem delas e a motorização individual, para além de ser um direito à mobilidade, é dificilmente substituível em domínios como áreas pouco povoadas, pese embora a promessa dos modos autónomos.
Sujeitos os resultados às minhas limitações, estimei há tempos que os custos de investimento num sistema ferroviário na área metropolitana de Lisboa que substituísse o sistema dominante de transporte individual (TI)  teria um custo da mesma ordem de grandeza do sistema TI, mas que as amortizações, supondo também equivalentes os custos de manutenção, seriam favoráveis ao sistema ferroviário em cerca de 200 milhões de euros por ano. Igualmente estimei que o desperdício na importação de combustíveis correspondente a 10% de deslocações em automóvel na área metropolitana de Lisboa (que poderia transferir-se para o modo ferroviário) será de cerca de 32 milhões de euros por ano.
Desses números inferi que os objetivos de sustentabilidade da gratuitidade através da transferencia do transporte privado automóvel para o transporte público também podem ser atingidos através de investimento no próprio transporte público (aliás sempre necessário para responder ao aumento da procura) e na penalização com taxas do uso, das portagens e do estacionamento para automóveis (eventualmente dos IMIs e licenças de construção nas zonas em que predomina o TI).   

Donde concluo que é dificil justificar a redução de receitas associada à gratuitidade quando é necessário fazer investimentos em infraestruturas, incluindo medidas radicais de reurbanização, e em material circulante.  E que a ideia da gratuitidade pode ser uma ilusão e um perigo para políticos desejosos de seduzir eleitores sem ponderar os custos.

Paris decidiu recusar a gratuitidade estimando um encargo de 6 mil milhões de euros por ano. Em Lisboa estimo que seriam 500 milhões (eventualmente deduzir 100 milhões de poupança dos custos de cobrança). Com 400 milhões de euros ao fim de 25 anos teriamos 10 mil milhões de euros, o que permitiria construir 125 km de rede de metro ou 500 km de LRT. Custos pesados, os da gratuitidade, ou por outras palavras, poupe-se o que for possível (por exemplo combustíveis fósseis e emissões) para pagar o que for preciso (investimento, juros e manutenção de infraestruturas e material circulante).



Nas ligações seguintes encontram-se argumentos pró e contra:





https://www.franceinter.fr/emissions/histoires-economiques/histoires-economiques-01-octobre-2019




Estes dois artigos, sobre a experiencia francesa, parecem-me os melhores:



Cálculos próprios citados:






3 comentários:

  1. Além de se discutir a gratuitidade dos transportes públicos, seria também interessante discutir o preço do transporte em automóvel particular
    Apesar dos impostos sobre os combustíveis, portagens e estacionamento, a verdade é que o transporte particular ainda é subsidiado, especialmente o estacionamento.
    O aumento da tributação sobre o automóvel permitiria financiar os transportes públicos, reduzindo o seu preço e aumentando a sua qualidade.

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    1. Sobre a subsidizição do automóvel ver a página 48 da ligação que termina em 7XH que refiro no meu texto

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  2. Exatamente, e é isso que se faz parcialmente, embora de forma incipiente, com o ISP e o fundo do carbono. No entanto, tem de se considerar que muitos empregos e empresas dependem do automóvel, que as vias de comunicação foram desenvolvidas para o automóvel, que talvez 1/4 do rendimento das famílias seja sacrificado ao automóvel e que parece ser normal por esse numdo fora quando se aumentam os custos do automóvel dá coletes amarelos ou manifestações ainda piores. Donde, o problema é complicado se não se conseguir demonstrar à maioria das pessoas as medidas necessárias para a transferencia do transporte individual para o publico.

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