domingo, 20 de fevereiro de 2022

A síndroma do fato de Bocage ou a questão principal

 


A questão principal durante a campanha eleitoral que culminou com a maioria absoluta do partido socialista e que não deu resposta convincente à questão, foi: porque tem o nosso país sido sistematicamente ultrapassado em termos de PIB per capita?

Perdoe-se-me tentar encontrar uma resposta consistente.

Sem que isso seja a explicação completa, recordo outro indicador, o comparativo na Europa dos séculos em que metade da população atingiu a alfabetização: Escandinávia XVI, Inglaterra, Países Baixos e Alemanha XVII, França XVIII, Espanha XIX, Portugal XX.

Outra explicação poderá ser o que um simpático conferencista alemão, entrevistado em Portugal, deu: na Alemanha, quando há uma ideia para se executar, as pessoas dizem OK, vamos combinar como fazer isso; em Portugal dizem, o que era bom era ver outras maneiras de fazer isso, e entra-se numa espiral que afasta as pessoas do essencial e aborta a iniciativa.

Tentando uma explicação psicanalítica, o facto de se propor uma coisa e quem ouve achar que se deverá fazer outra, pode ter como origem a insegurança ou incerteza sobre a autoestima de quem ouve, que tem necessidade de levantar obstáculos àas ideias exteriores para compensar essa insegurança e provar a sua importancia por ser capaz de impedir que elas avancem. Propondo em  alternativa esperar pelo desenvolvimento de soluções melhores. Poderá ser o medo de responsabilização por algum falhanço na execução, ficar sujeito à troça se não se foi capaz de realizar a ideia. Eu chamo a isto a síndroma do fato de Bocage, evocando a sua anedota de se embrulhar numa peça de fazenda por estar à espera do último e mais apreciado figurino francês.

Um bom exemplo disto é a questão das ligações ferroviárias à Europa para além de Espanha. É um assunto essencial para Portugal devido à necessidade de continuar a aumentar as exportações e  fazer a transferencia do modo rodoviário, energeticamente mais ineficiente e com problemas de acidentes e congestionamento, para o modo ferroviário.

Quando  se propõe a construção de linhas novas para alta velocidade com capacidade também para tráfego de mercadorias e com a mesma bitola da rede europeia imediatamente se levantam especialistas e até o senhor ministro dizendo que a bitola não é um problema porque estão a ser desenvolvidos e até já foram testados os eixos variáveis para mercadorias.

É verdade, mas também é verdade que é uma solução cara para o material circulante e que não existe data estimada para a tecnologia dos eixos variáveis ser aplicada às locomotivas. Nem tampouco se sabe quando e quanto custam os vagões já desenvolvidos. Acresce que recentemente a própria ADIF adjudicou um estudo de otimização desta tecnologia. 

Como técnico, compreendo que a solução de linhas novas de bitola europeia, aliás compatíveis com as orientações da Comissão, também é uma solução cara e morosa, mesmo sem o levantamento das objeções do tipo "há uma solução melhor, embora não se saiba quando".  Mas devo recordar aos meus colegas que existe uma coisa chamada normalização, e que a norma europeia é bitola de 1435 mm. Reconheço que há constrangimentos económicos e políticos, mas a minha formatação profissional deu  nisto. Como diria o senhor alemão atrás citado, melhor fora sentarmo-nos à volta de uma mesa e discutir como vamos concretizar a norma, sem soluções maculadas pela síndroma do fato de Bocage.

É provável que seja outra causa da ultrapassagem do país em termos de PIB per capita. Por exemplo os 3 países bálticos já se está a construir a Rail Baltica, uma linha nova com bitola europeia, apesar de lá também haver oposição, nesse caso em defesa da bitola russa de 1520 mm, mas felizmente com pouco sucesso.

Procurando outras causas para a ultrapassagem e mantendo-me na zona do Báltico, evoco o caso da anulação de 150.000 votos nas últimas eleições bem retratado por Bartoon ao perguntar se teria valido a pena dissolver a Assembleia sem tentar a aprovação de outro orçamento, já que continuamos em duodécimos:


Muito se discutiu na campanha eleitoral a questão do voto das pessoas confinadas por doença. Estranhei não se falar no voto eletrónico, pela internet. Apenas vi a proposta numa carta ao diretor e muitos especialistas a dizer que o perigo de ataques cibernéticos era inultrapassável. Estranhei porque a Estónia desde 2007 que utiliza o voto pela internet, o que eliminaria o problema dos votos anulados de emigrantes.

Que vergonha, anular votos por maior que seja a desculpa da lei mandar juntar fotocópias de cartões de identidade, coisa bizarra no século XXI e que colisão entre a lei fundamental da Constituição que garante o exercício do direito de cidadania e a sua regulamentação  que um burocrata sofrendo da síndroma do escrúpulo resolveu armadilhar para mostrar como é importante a regulamentar (que desgosto ouvir o senhor presidente da República dizer que tinha caído numa "petição de princípio" relativamente à decisão do Tribunal constitucional sobre a anulação dos votos), sem esquecer a colisão fatal com a diretiva europeia de proteção de dados que inibe fotocópias de documentos de identificação andarem a voar por aí.

No século XXI a solução já pode ser votar pela internet. É verdade que a Estónia foi vítima de um ataque em 2007, mas estudou o problema e resolveu-o. Não voltou a sofrer consequências de hackers. Eu próprio, como mais 10.000 colegas, votei pela internet nas recentes eleições para a Ordem dos Engenheiros. Há empresas informáticas especializadas nisso. e funciona, apesar dos especialistas que pressurosamente levantam objeções.

E quanto à decisão, discricionária, uma vez que a Constituição não prevê a dissolução por ter havido um chumbo do orçamento como muito  bem alertaram constitucionalistas (embora seja verdade que existe uma escola de subjetividade que diz que o que não está escrito na lei é mais importante do que o que está escrito),  talvez que uma das causas das sucessivas ultrapassagens relativamente ao PIB per capita resida nos critérios de escolha do orgão consultivo, o Conselho de Estado. São honoráveis os conselheiros, certamente, mas ... num país que precisa de produzir, de mobilizar as suas forças produtivas e infraestruturas, não há engenheiros que pela especificidade da sua formação, possam no Conselho de Estado sistematizar propostas, roadmaps ou pipelines como os especialistas da comunicação gostam agora de dizer? dando força, por exemplo, a orgãos como o CSOP ... ajudando ao debate com a sociedade civil ... discutindo desde centrais de dessalinização, às barragens de regularização do Ocreza e do Crato, aos transvazes, às ligações elétricas com a Europa através de cabos submarinos de muito alta tensão contínua, às ligações ferroviárias com a Europa ...

Talvez se estas coisas fossem mais debatidas na esfera pública com menos especialistas que sobre tudo têm opiniões, talvez se pudessem ir eliminando, uma a uma, as causas da ultrapassagem do país.

Por exemplo, na questão da educação. Há muitos anos, quando começou a imigração das pessoas vindas dos países de leste, ouvi uma senhora russa, num belo dia de verão, em plena praia, falando pelo telemóvel para o seu país, e dizendo que estava muito contente por estar em Portugal, que o seu miúdo se dava bem na escola, mas fez um à parte, o programa da escola não é grande coisa, mas que a sua interlocutora podia vir. 

É isso, cuidar das criancinhas e educá-las é um problema nacional que as desigualdades estão a agravar de modo intolerável porque se intensificam cada vez mais. Pergunto a uma das minhas netas como vai a matemática, como vai a história (disciplina indispensável para compreender a motivação das comunidades e a evolução política desde que a filosofia foi vítima de estrangulamento) e a resposta que oiço é "são uma seca".

Vejo uma entrevista na televisão num dos programas de maior audiência e a senhora entrevistada na assistencia diz claramente "nós sabemos quo programa não tem nível cultural, mas é disto que gostamos".

Se é assim, seria de admirar se os outros países não nos ultrapassassem no indicador PIB per capita.

Isto é, é preciso mudar de mentalidade, abrir e intensificar o debate, e os nossos políticos, os nossos especialistas comentadores de TV, os nossos académicos, as nossas instituições, não estão a ajudar, e é necessário dar mais importancia às iniciativas da sociedade civil, como diz aliás a Constituição, mas nem sequer deixam mudar a lei eleitoral para que o número de votos por deputado seja mais equilibrado entre partidos.

Que ao menos tenham consciência disso.



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