Mais uma vez uma meritória
iniciativa, o webinar de dia 9. Felicitações por isso.
Não pude deixar de colocar uma
questão que considero muito importante pela atualidade e pela sua relação com o
conceito de competitividade em que o moderador insistiu, a competitividade da
nossa economia.
A questão que pus foi, partindo
das recentes propostas de revisão ou substituição dos regulamentos da CE 913,
1315 e 1153 (ex 1316) de 14dez2021 e 27jul2022, e do relatório do PE de
10out2022 reforçando as propostas de revisão, o que pensavam os oradores.
Devo dizer que fiquei um pouco
desiludido com as respostas, apesar da postura de dúvida científica do
moderador, embora pareça ser uma situação recorrente quando se fala de
metropolitanos ou de comboios de longo curso. Mas neste caso fiquei na dúvida
se os oradores terão lido os documentos referidos ou se simplesmente
desvalorizam completamente o carater juridicamente vinculativo dos regulamentos
comunitários. Esta última a hipótese
mais provável, pela vivacidade com que foi condenada a Comissão Europeia, se quer uma rede única,
que a pague (e pensar nos desviados 80% de cofinanciamento do Poceirão-Caia e nos
subsequentes viadutos de via única do troço Évora Norte-Caia).
Devo pedir desculpa por ter
ficado formatado, desde os primeiros anos no Técnico, quando me falaram de
Normalização, norma é norma, e se não há faz-se. Ouvi depois juristas
questionarem o grau de literalidade de qualquer disposição jurídica, de que o
melhor exemplo foi a explicação publicamente dada de que a lei 2/2020 era uma
recomendação que o Governo podia não seguir (suspensão da linha circular).
Infelizmente fiquei formatado, norma é norma, se a norma diz que as linhas
novas dos corredores internacionais são em bitola 1435 mm e com ERTMS, é
cumpri-la.
Os documentos de revisão dos
regulamentos retomam alguns pontos eventualmente mal esclarecidos nos
regulamentos originais e insistem claramente na normalização dos parâmetros da
interoperabilidade da rede única ferroviária europeia TEN_T.
Rede única,
diga-se, cujo estado lastimoso foi devidamente classificado pela ERA (European
Union Agency for Railways, órgão oficial da UE) no seu relatório de setembro de
2021, quer para passageiros, quer para mercadorias.
Podia ter colocado também
esta pergunta, que pensar da ERA? para além da sua amistosa participação nas
manifestações comemorativas do ano internacional do “rail” na presidência
portuguesa do Conselho da EU , diplomaticamente evitando referir o escolho para
a interoperabilidade da diferença de bitolas e da ausência de ERTMS na rede
portuguesa e deixando espaço para a autogratificação pela maior revolução
ferroviária dos últimos anos, pelos progressos dos 15% da execução do Ferrovia
2020, pela aurora radiosa do Plano Ferroviário Nacional e seu PNI2030.
Talvez deva pedir
desculpa, mas quando vejo nas “fichas” do PNI2030 a ligação
subterrânea da linha de Cascais encostada ao caneiro de Alcântara ou
desenvoltos BRTs a subir e a descer a A5
ou as encostas da Ajuda, deixo correr com menos contenção a pena, ou as teclas
do computador.
O relatório do PE de 10out2022 é
particularmente importante por reforçar as propostas reformadoras da CE, o que
leva a crer que virá a ser formalizado. Cito o art.16.a:
1. Member States shall ensure that any new railway
infrastructure of … the core network, … provides for the European
standard nominal track gauge of 1 435 mm…
2. Member States with a rail network, or a part thereof, with
a track gauge different from that of … 1 435 mm shall draw up, at the latest by
… two years after the date of entry into force of this Regulation, a migration
plan of the existing railway lines located on the European Transport Corridors
to the European standard nominal track gauge of 1 435 mm. Such migration plan
shall be coordinated with the neighbouring Member State or Member States
concerned by the migration.
3. Member States may identify in the migration plan the
railway lines which will not migrate to the European standard nominal track
gauge of 1 435 mm. The migration plan shall include a socioeconomic
cost-benefit analysis justifying the decision not to migrate the railway lines
to the European standard nominal track gauge of 1 435 mm and an assessment of
the impact on interoperability.
Mas como foi dito no webinar, a bitola nunca foi um problema,
pese embora o ERTMS se lhe ter juntado.
E contudo, são agora dois problemas de interoperabilidade, e
graves (não é que se não possa desenvolver um STM que faça o interface entre o
ERTMS de bordo e o CONVEL na via, isso foi feito, guardadas as devidas
distâncias, no metro, quando a Siemens forneceu do seu SIBAS (autómato de
comando da tração) à CS Transport os dados de entrada e saída para o ATP/ATO
funcionar, mas parece-me difícil replicar isso no caso do CONVEL por este ter
deixado de se fabricar) .
Se isto fosse uma discussão escolástica, dir-se-ia
que se a bitola não é problema, porque não se fez ou fará Évora Norte-Caia e
Sines-Vigo em UIC? Se não há problema em passar de ibérica para UIC em Irun,
porque haveria de haver em passar de UIC para ibérica em Badajoz? Invertíamos a
defesa portuguesa de mudar quando os espanhois trouxerem a UIC ao Caia. Eles
que mudassem para UIC quando o Portugal da batalha de Toro lhes trouxesse a UIC
ao Caia e então se atingiria Irun. Espanhois que pela mão de Raquel Sanchez têm
na proposta de orçamento de Estado de 2023
3343 M€ para a rede de Alta Velocidade/mercadorias, sendo 1648 M€ para o
corredor atlântico e 1695 M€ para o mediterrânico, e 3467 M€ para rede
convencional e de suburbanos. Isto é, duas redes de gestão autónoma, como no
tempo da RAVE, e como os decisores da IP não querem.
Mas isto é humor negro (talvez melhor dito, cinzento), porque
o que está em causa é simplesmente a celebrada competitividade. Como Carlos
Vasconcelos afirmou à Railway Gazette, se dois comboios diários chegarem a
Irun, terá sido atingida a saturação
(que inviabilizará a atribuição de canais (slots) do lado francês) e o
transbordo terá de ser feito na plataforma de Vitoria.
É esta a estratégia do
AEIE agrupamento europeu de interesse económico RFC4 corredor atlântico de
mercadorias (órgão de gestão deste corredor por delegação da CE, composto por
DB, SNCF, ADIF e IP). A forma como o AEIE gere o corredor, em dissociação do
corredor atlântico das redes TEN_T, vem dar razão ao que foi dito no webinar, a
França não quer ser incomodada com as necessidades dos alemães nem dos
espanhois. Pois se já adiou para 2037 a nova linha Bordeaux-Hendaye que libertaria
a linha existente para mercadorias, preferindo muito regionalmente dar
prioridade a Toulouse.
O que também confirma o que afirmou em 2015 Daniel Gros, do Centro de Estudos Políticos Europeu, ou caciquismo simples: “A razão pela qual não existe uma boa
interligação entre as redes de energia espanhola e francesa não é a falta de
financiamento, mas a falta de vontade dos monopólios de ambos os lados da
fronteira de abrir os seus mercados. Muitos projetos ferroviários e rodoviários
também avançam lentamente, devido à oposição local e não à falta de
financiamento. Estas são as verdadeiras barreiras ao investimento em
infraestruturas na Europa. As grandes empresas europeias podem facilmente obter
financiamento a taxas de juro próximas de zero.”
Isto é, apesar das palavras bonitas e diplomáticas da
comissária Adina Valean, há matéria para o governo português reprovar o
comportamento da CE, até porque ainda são válidos os artigos 5 e 170 do TFUE sobre a subsidiariedade no caso de
países periféricos. Isto para não falar no artigo 288, o da obrigatoriedade dos
regulamentos comunitários.
Que, no fundo, é o essencial da divergência com o governo e a IP, a sua olímpica indiferença pelos regulamentos das redes TEN_T.
Voltando ao webinar.
Muito interessantes as observações sobre o “diâmetro” de 2,5 horas de
uma área metropolitana e sobre a
necessidade dos aeroportos principais serem servidos por linhas de Alta Velocidade, o que condiciona o
estudo do traçado destas.
Outro condicionamento essencial são as redes de metro e suburbana das áreas
metropolitanas. Por outras palavras, mais jurídicas, mais uma imposição dos
regulamentos europeus, considerar o regime dos instrumentos de gestão
territorial agora normalizados pela CE, SUMPs, nós modais urbanos, PNPOTs, PROTs e
afins. Pelo que as duas comissões para a localização do novo aeroporto devem
ter membros que saibam disso.
E talvez se possa concluir que outras duas comissões, uma técnica e a outra de monitorização, deveriam
ser nomeadas para estudar os traçados da nova rede ferroviária. Mas não seria
mau que comparassem em custos e
benefícios a ligação a Lisboa pela margem esquerda e pela margem direita (será
assim tão cara a obra de tuneis e viadutos pela zona de Arruda dos Vinhos?).
Idem para a opção para a travessia do Tejo, túnel, ponte, ou mista?
Ou, em alternativa, concurso público internacional para
seleção de gabinete de engenharia para fazer o estudo.
Sobre os números das exportações referidos no webinar fui consultar o INE e considero que
constituem um dos 3 grandes argumentos para o desenvolvimento das redes de
bitola UIC (e ERTMS). Os outros 2 são a obrigatoriedade dos regulamentos
comunitários e a redução das emissões associada às melhores caraterísticas de
linhas novas (custa praticamente o mesmo, construir em UIC ou em ibérica, só
que o provérbio mantém-se quando se prefere recuperar linhas existentes a
construir linhas novas, o barato sai caro mais tarde).
Eis os números das exportações por todos os modos segundo o
INE, pormenorizando as quotas do transporte ferroviário e do transporte
rodoviário. Em peso, e em relação ao conjunto das exportações pelos modos rodo
e ferroviário para Espanha, a quota da ferrovia é 1,24% correspondendo a 131
mil toneladas, enquanto a quota da rodovia
é 98,76%, correspondendo a 10,43 milhões de toneladas.
São números que contrastam com o otimismo com que se fala nos
15% da quota ferroviária, mas que se verifica em termos de toneladas-km apenas
na parte nacional. São os números das exportações que justificam o investimento
nas novas linhas dos corredores internacionais, não a recuperação da linha
existente da Beira Alta nem via única nos viadutos do Évora Caia.
Notar ainda que, em termos de valor, exporta-se muito mais
para o resto da Europa do que para Espanha. Compreende-se assim o drama dos
operadores privados que querem exportar para a Europa.
Para ilustrar a tendência espanhola para privilegiar a ligação à Europa em mercadorias da Extremadura e de Portugal, prevendo o transbordo de mercadorias da bitola ibérica para a UIC na plataforma de Vitoria no País Basco, veja-se o quadro seguinte com a indicação do PIB por região.
Talvez a recusa de tratar o problema da bitola (e do ERTMS)
seja a confiança firme nas soluções temporárias: travessas polivalentes, eixos
variáveis, e os clássicos transbordo ou mudanças de bogies ou de eixos . Há
ainda as soluções mais tradicionais, mudança de comboio ou mudança de locomotiva,
e a solução de 3 carris. Mas que são sempre soluções temporárias e localizadas.
Sobre as travessas polivalentes, convirá recordar os custos
adicionais diretos e indiretos (basta pensar nos prejuízos do fecho da linha da
Beira Alta) que futuramente terão de ser pagos para mudança da posição dos
carris em troços de 100 a 200 km.
Quanto aos eixos variáveis, convirá recordar que do ponto de
vista da manutenção tem o risco, no longo curso, de paralisação do comboio por
avaria num país distante enquanto não chega o técnico reparador. Do ponto de
vista da operação temos vagões mais pesados. Notar que não há locomotivas de
eixos variáveis (dir-se-á que não deve mesmo haver por razões de segurança e
simplicidade técnica).
Apreciei no webinar a ideia da especialização dos portos e da
necessidade óbvia de articulação com a ferrovia e com as plataformas
logísticas. Aqui caberia uma referência ao fecho da Bobadela e também à solução
do transporte de semirreboques por comboio que exige investimento em material
circulante e infraestruturas não apenas nas plataformas logísticas (em Espanha
e França decorrem obras de alargamento do gabarit de tuneis).
Finalmente, uma inconfidência. O grupo do
Manifesto Portugal, uma ilha ferroviária? pediu uma audiência ao senhor
Presidente da República para lhe transmitir como cidadãos as suas
preocupações sobre a politica ferroviária do governo. Os serviços da
Presidencia responderam recusando, porque não era assunto da competência do PR
e informando que reenviaram o pedido para o gabinete do primeiro ministro. Onde
provavelmente se quedou.
Não é uma desilusão, é um desgosto, porque na
realidade, um assunto que exige 10 anos entre a decisão e a conclusão da
execução e que tem como objetivo o crescimento da economia através do aumento
das exportações e da atratividade do investimento estrangeiro é sim, da
competência do PR. Perdoe-se-me o desabafo.
PS em 30nov2022 - Os serviços da Presidência da República informaram que iriam marcar uma data-hora para a audiência. Aguardemos.