quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Webinar na ADFERSIT em 9nov2022 sobre as ligações à Europa

 

Mais uma vez uma meritória iniciativa, o webinar de dia 9. Felicitações por isso.

Não pude deixar de colocar uma questão que considero muito importante pela atualidade e pela sua relação com o conceito de competitividade em que o moderador insistiu, a competitividade da nossa economia.

A questão que pus foi, partindo das recentes propostas de revisão ou substituição dos regulamentos da CE 913, 1315 e 1153 (ex 1316) de 14dez2021 e 27jul2022, e do relatório do PE de 10out2022 reforçando as propostas de revisão, o que pensavam os oradores.

Devo dizer que fiquei um pouco desiludido com as respostas, apesar da postura de dúvida científica do moderador, embora pareça ser uma situação recorrente quando se fala de metropolitanos ou de comboios de longo curso. Mas neste caso fiquei na dúvida se os oradores terão lido os documentos referidos ou se simplesmente desvalorizam completamente o carater juridicamente vinculativo dos regulamentos comunitários. Esta última a  hipótese mais provável, pela vivacidade com que foi condenada  a Comissão Europeia, se quer uma rede única, que a pague (e pensar nos desviados 80% de cofinanciamento do Poceirão-Caia e nos subsequentes viadutos de via única do troço Évora Norte-Caia).

Devo pedir desculpa por ter ficado formatado, desde os primeiros anos no Técnico, quando me falaram de Normalização, norma é norma, e se não há faz-se. Ouvi depois juristas questionarem o grau de literalidade de qualquer disposição jurídica, de que o melhor exemplo foi a explicação publicamente dada de que a lei 2/2020 era uma recomendação que o Governo podia não seguir (suspensão da linha circular). Infelizmente fiquei formatado, norma é norma, se a norma diz que as linhas novas dos corredores internacionais são em bitola 1435 mm e com ERTMS, é cumpri-la.

Os documentos de revisão dos regulamentos retomam alguns pontos eventualmente mal esclarecidos nos regulamentos originais e insistem claramente na normalização dos parâmetros da interoperabilidade da rede única ferroviária europeia TEN_T. 

Rede única, diga-se, cujo estado lastimoso foi devidamente classificado pela ERA (European Union Agency for Railways, órgão oficial da UE) no seu relatório de setembro de 2021, quer para passageiros, quer para mercadorias. 

Podia ter colocado também esta pergunta, que pensar da ERA? para além da sua amistosa participação nas manifestações comemorativas do ano internacional do “rail” na presidência portuguesa do Conselho da EU , diplomaticamente evitando referir o escolho para a interoperabilidade da diferença de bitolas e da ausência de ERTMS na rede portuguesa e deixando espaço para a autogratificação pela maior revolução ferroviária dos últimos anos, pelos progressos dos 15% da execução do Ferrovia 2020, pela aurora radiosa do Plano Ferroviário Nacional e seu PNI2030.

Talvez deva pedir desculpa, mas quando vejo nas “fichas” do PNI2030 a ligação subterrânea da linha de Cascais encostada ao caneiro de Alcântara ou desenvoltos BRTs  a subir e a descer a A5 ou as encostas da Ajuda, deixo correr com menos contenção a pena, ou as teclas do computador.

O relatório do PE de 10out2022 é particularmente importante por reforçar as propostas reformadoras da CE, o que leva a crer que virá a ser formalizado. Cito o art.16.a:

1. Member States shall ensure that any new railway infrastructure of    the core network, … provides for the European standard nominal track gauge of 1 435 mm…

2. Member States with a rail network, or a part thereof, with a track gauge different from that of … 1 435 mm shall draw up, at the latest by … two years after the date of entry into force of this Regulation, a migration plan of the existing railway lines located on the European Transport Corridors to the European standard nominal track gauge of 1 435 mm. Such migration plan shall be coordinated with the neighbouring Member State or Member States concerned by the migration.

3. Member States may identify in the migration plan the railway lines which will not migrate to the European standard nominal track gauge of 1 435 mm. The migration plan shall include a socioeconomic cost-benefit analysis justifying the decision not to migrate the railway lines to the European standard nominal track gauge of 1 435 mm and an assessment of the impact on interoperability.

Mas como foi dito no webinar, a bitola nunca foi um problema, pese embora o ERTMS se lhe ter juntado.

E contudo, são agora dois problemas de interoperabilidade, e graves (não é que se não possa desenvolver um STM que faça o interface entre o ERTMS de bordo e o CONVEL na via, isso foi feito, guardadas as devidas distâncias, no metro, quando a Siemens forneceu do seu SIBAS (autómato de comando da tração) à CS Transport os dados de entrada e saída para o ATP/ATO funcionar, mas parece-me difícil replicar isso no caso do CONVEL por este ter deixado de se fabricar) . 

Se isto fosse uma discussão escolástica, dir-se-ia que se a bitola não é problema, porque não se fez ou fará Évora Norte-Caia e Sines-Vigo em UIC? Se não há problema em passar de ibérica para UIC em Irun, porque haveria de haver em passar de UIC para ibérica em Badajoz? Invertíamos a defesa portuguesa de mudar quando os espanhois trouxerem a UIC ao Caia. Eles que mudassem para UIC quando o Portugal da batalha de Toro lhes trouxesse a UIC ao Caia e então se atingiria Irun. Espanhois que pela mão de Raquel Sanchez têm na proposta de orçamento de Estado de 2023    3343 M€ para a rede de Alta Velocidade/mercadorias, sendo 1648 M€ para o corredor atlântico e 1695 M€ para o mediterrânico, e 3467 M€ para rede convencional e de suburbanos. Isto é, duas redes de gestão autónoma, como no tempo da RAVE, e como os decisores da IP não querem.

Mas isto é humor negro (talvez melhor dito, cinzento), porque o que está em causa é simplesmente a celebrada competitividade. Como Carlos Vasconcelos afirmou à Railway Gazette, se dois comboios diários chegarem a Irun,  terá sido atingida a saturação (que inviabilizará a atribuição de canais (slots) do lado francês) e o transbordo terá de ser feito na plataforma de Vitoria. 

É esta a estratégia do AEIE agrupamento europeu de interesse económico RFC4 corredor atlântico de mercadorias (órgão de gestão deste corredor por delegação da CE, composto por DB, SNCF, ADIF e IP). A forma como o AEIE gere o corredor, em dissociação do corredor atlântico das redes TEN_T, vem dar razão ao que foi dito no webinar, a França não quer ser incomodada com as necessidades dos alemães nem dos espanhois. Pois se já adiou para 2037 a nova linha Bordeaux-Hendaye que libertaria a linha existente para mercadorias, preferindo muito regionalmente dar prioridade a Toulouse. 

O que também confirma o que afirmou em 2015 Daniel Gros, do Centro de Estudos Políticos Europeu, ou caciquismo simples: “A razão pela qual não existe uma boa interligação entre as redes de energia espanhola e francesa não é a falta de financiamento, mas a falta de vontade dos monopólios de ambos os lados da fronteira de abrir os seus mercados. Muitos projetos ferroviários e rodoviários também avançam lentamente, devido à oposição local e não à falta de financiamento. Estas são as verdadeiras barreiras ao investimento em infraestruturas na Europa. As grandes empresas europeias podem facilmente obter financiamento a taxas de juro próximas de zero.”

Isto é, apesar das palavras bonitas e diplomáticas da comissária Adina Valean, há matéria para o governo português reprovar o comportamento da CE, até porque ainda são válidos os artigos 5 e 170   do TFUE sobre a subsidiariedade no caso de países periféricos. Isto para não falar no artigo 288, o da obrigatoriedade dos regulamentos comunitários.

Que, no fundo, é o essencial da divergência com o governo e a IP, a sua olímpica indiferença pelos regulamentos das redes TEN_T.

Voltando ao webinar.  Muito interessantes as observações sobre o “diâmetro” de 2,5 horas de uma área metropolitana e sobre a necessidade dos aeroportos principais serem servidos por linhas de Alta Velocidade, o que condiciona o estudo do traçado destas. 

Outro condicionamento essencial são as redes de metro e suburbana das áreas metropolitanas. Por outras palavras, mais jurídicas, mais uma imposição dos regulamentos europeus, considerar o regime dos instrumentos de gestão territorial agora normalizados pela CE, SUMPs, nós modais urbanos, PNPOTs, PROTs e afins. Pelo que as duas comissões para a localização do novo aeroporto devem ter membros que saibam disso.

E talvez se possa concluir que outras duas comissões, uma técnica e a outra de monitorização, deveriam ser nomeadas para estudar os traçados da nova rede ferroviária. Mas não seria mau  que comparassem em custos e benefícios a ligação a Lisboa pela margem esquerda e pela margem direita (será assim tão cara a obra de tuneis e viadutos pela zona de Arruda dos Vinhos?). Idem para a opção para a travessia do Tejo, túnel, ponte, ou mista?

Ou, em alternativa, concurso público internacional para seleção de gabinete de engenharia para fazer o estudo.

Sobre os números das exportações referidos no webinar fui consultar o INE e considero que constituem um dos 3 grandes argumentos para o desenvolvimento das redes de bitola UIC (e ERTMS). Os outros 2 são a obrigatoriedade dos regulamentos comunitários e a redução das emissões associada às melhores caraterísticas de linhas novas (custa praticamente o mesmo, construir em UIC ou em ibérica, só que o provérbio mantém-se quando se prefere recuperar linhas existentes a construir linhas novas, o barato sai caro mais tarde).

Eis os números das exportações por todos os modos segundo o INE, pormenorizando as quotas do transporte ferroviário e do transporte rodoviário. Em peso, e em relação ao conjunto das exportações pelos modos rodo e ferroviário para Espanha, a quota da ferrovia é 1,24% correspondendo a 131 mil toneladas, enquanto a quota da rodovia  é 98,76%, correspondendo a 10,43 milhões de toneladas.

São números que contrastam com o otimismo com que se fala nos 15% da quota ferroviária, mas que se verifica em termos de toneladas-km apenas na parte nacional. São os números das exportações que justificam o investimento nas novas linhas dos corredores internacionais, não a recuperação da linha existente da Beira Alta nem via única nos viadutos do Évora Caia.

Notar ainda que, em termos de valor, exporta-se muito mais para o resto da Europa do que para Espanha. Compreende-se assim o drama dos operadores privados que querem exportar para a Europa.


 

Para ilustrar a tendência espanhola para privilegiar a ligação à Europa em mercadorias da Extremadura e de Portugal, prevendo o transbordo de mercadorias da bitola ibérica para a UIC na plataforma de Vitoria no País Basco, veja-se o quadro seguinte com a indicação do PIB por região.

Talvez a recusa de tratar o problema da bitola (e do ERTMS) seja a confiança firme nas soluções temporárias: travessas polivalentes, eixos variáveis, e os clássicos transbordo ou mudanças de bogies ou de eixos . Há ainda as soluções mais tradicionais, mudança de comboio ou mudança de locomotiva, e a solução de 3 carris. Mas que são sempre soluções temporárias e localizadas.

Sobre as travessas polivalentes, convirá recordar os custos adicionais diretos e indiretos (basta pensar nos prejuízos do fecho da linha da Beira Alta) que futuramente terão de ser pagos para mudança da posição dos carris em troços de 100 a 200 km.

Quanto aos eixos variáveis, convirá recordar que do ponto de vista da manutenção tem o risco, no longo curso, de paralisação do comboio por avaria num país distante enquanto não chega o técnico reparador. Do ponto de vista da operação temos vagões mais pesados. Notar que não há locomotivas de eixos variáveis (dir-se-á que não deve mesmo haver por razões de segurança e simplicidade técnica).

Apreciei no webinar a ideia da especialização dos portos e da necessidade óbvia de articulação com a ferrovia e com as plataformas logísticas. Aqui caberia uma referência ao fecho da Bobadela e também à solução do transporte de semirreboques por comboio que exige investimento em material circulante e infraestruturas não apenas nas plataformas logísticas (em Espanha e França decorrem obras de alargamento do gabarit de tuneis).

Finalmente, uma inconfidência. O grupo do Manifesto Portugal, uma ilha ferroviária? pediu uma audiência ao senhor Presidente da República para lhe transmitir como cidadãos as suas preocupações sobre a politica ferroviária do governo. Os serviços da Presidencia responderam recusando, porque não era assunto da competência do PR e informando que reenviaram o pedido para o gabinete do primeiro ministro. Onde provavelmente se quedou. 

Não é uma desilusão, é um desgosto, porque na realidade, um assunto que exige 10 anos entre a decisão e a conclusão da execução e que tem como objetivo o crescimento da economia através do aumento das exportações e da atratividade do investimento estrangeiro é sim, da competência do PR. Perdoe-se-me o desabafo.

PS  em 30nov2022 - Os serviços da Presidência da República informaram que iriam marcar uma data-hora para a audiência. Aguardemos. 




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