domingo, 6 de novembro de 2022

A propósito da cimeira luso-espanhola de 4nov2022

Mais uma cimeira luso-espanhola, Viana do Castelo, 4nov2022. Mais umas palmadinhas nas costas entre primeiros ministros e ministros.

Mas não vou comentar aqui o que se debateu lá.

Temos aqui um tema interessantissimo que me tenta a ir à História. Como eu pus no meu powerpoint na sessão na Ordem dos Engenheiros de 28fevereiro de 2018, o rei Filipe II de Espanha mandou um embaixador às cortes de Lisboa para se candidatar ao trono português porque até estava numa linha de sucessão (era filho de Carlos V e de Isabel , filha do rei Manuel I) . Quando o embaixador regressou e o Filipe lhe perguntou como tinha corrido, o embaixador respondeu, " los portugueses pero son gente mui estraña".

Como não devemos generalizar, nem todos os portugueses são gente estranha, mas quando os decisores ou influenciadores portugueses pertencem ao conjunto dos estranhos, entra-se em loop. O tema "interligações" é um bom exemplo de muitos loops. Regra geral, as comissões de técnicos espanhois e portugueses que debatem as questões fronteiriças da água, da eletricidade, do gás, funcionam bem e os argumentos são bem fundamentados. Mas quando se passa ao nível da formalização, entram os políticos e os políticos sentem uma necessidade psicogénica de se afirmarem. Como normalmente pouco percebem das questões técnicas em jogo, arranjam maneira das coisas não avançarem quedando-se num triste estado de paralisia.  
Mas não são só os políticos que encravam as coisas. Quando o Alqueva estava a encher, sobreveio uma seca. Então os agricultores portugueses organizaram uma excursão ao Terreiro do Paço para pedir providencias ao ministro. Ao mesmo tempo, os espanhois foram à câmara de Mourão pedir autorização para pôr uns tubos de polietileno e umas bombas a chupar a água para as suas culturas. Mas não generalizemos, quando estive um mês de estágio no Picote fiquei impressionado pela capacidade de entendimento entre os operadores de sala do Picote, de Miranda e de Bemposta do lado português, e os operadores do lado espanhol, de Aldeadavila e Saucelle, regulando os caudais e as trocas de energia elétrica.
Isto para dizer que há quem possa resolver as coisas, mas também há quem as empate.
Por exemplo, a tia de Bruxelas já esclareceu que as interligações elétricas entre países vizinhos devem atingir pelo menos 15% da capacidade instalada total, sendo que em Portugal a capacidade instalada era de 7,9 GW não renovável e 15,3 GW de renováveis. Era boa ideia aumentar as interligações com Espanha e desta com França, bom para vender os excessos de renováveis e compensar o fecho de centrais nucleares francesas por necessidade de renovação ou revisão. Então alguns técnicos conseguiram aumentar a potencia das barragens de Venda Nova III para ligar à Galiza dentro desse objetivo das interligações, mas manifestações ambientalistas discordaram, não no meu quintal, tradução do NIMBY inglês, no in my back yard, NANOMEQ, podia ser em português, e eu pensei que se mandasse para o inquérito do PRR que o que era bom era um cabo submarino de transmissão de energia elétrica em muito alta tensão contínua diretamente do Minho pelo golfo da Biscaia os decisores haviam de gostar. 
Ilusão, afinal os cabos submarinos de muito alta tensão contínua (há mais de 50 anos, ainda não havia Nordstreams,  que os escandinavos trocam energia assim) são só entre Espanha e França, e ainda estão no domínio das promessas de políticos. 
Do gás não vale a pena falar porque a ilusão do hidrogénio verde soprado pelo gasoduto (tecnologia do transporte de hidrogénio por gasoduto ainda não dominada, primeiro vai misturado com o gás em pequena percentagem, depois tem de se revestir as paredes do gasoduto para evitar fugas) constituiu-se em obsessão dos decisores que decidiram que não querem o lógico, produção por eletrólise e aplicação locais. É mais económico transmitir eletricidade e produzi-la nas aplicações do que produzir o hidrogénio centralizadamente e transportá-lo em gasoduto ou navio. 
Recordo o consumo anual de gás natural da Alemanha em mil milhões de m3: 90 , capacidade do gasoduto Barmar: 10/ano , capacidade de um navio: 0,05 a 0,12 (correspondente a 80 mil a 200 mil m3 sob a forma de LNG gás natural liquefeito), capacidade de um comboio: 0,002 (correspondente a 3 mil m3 de LNG).
Quanto à água, temos o desentendimento e as dúvidas sobre o cumprimento da convenção de Albufeira em contexto de seca e de manifestações de agricultores espanhóis de culturas intensivas. Será mais um exemplo de dificuldade de coordenação com Espanha que faz transvazes do Douro para o Tejo e para o Guadiana, para grande desgosto dos ambientalistas e já encomendaram mais  centrais dessalinizadoras. 
Do lado de cá também têm de se fazer transvazes, de se fazer a barragem do Ocreza (que pouco precisa do caudal do Tejo uma vez que a sua bacia hidrográfica é grande e está do lado português) mas parece que no PRR só está a barragem do Pisão para ver se as douradas não sobem tanto o Tejo com a água salgada. 
Pela positiva, parece que está prevista uma discreta central dessalinizadora para o Algarve, assim as associações de moradores ou proprietários de verão autorizem. 
Pela negativa, temos a recusa de construir barragens nas ribeiras do Sotavento algarvio,  Vascão, Foupana e Alportel. Alguém se lembrou de querer fazer uma tomada de água no Pomarão e levar a água por conduta à albufeira de Odeleite. 
Ficamos à espera, mas note-se que os espanhóis já têm uma tomada de água no Pomarão, no limite fronteiriço, a jusante da barragem do Chança, e fora de qualquer controle ou negociação entre portugueses e espanhóis.
Notar 2 tomadas de água na albufeira do Chança, na margem espanhola, e uma a jusante da barragem, no limite da divisão Portugal-Espanha e perto da foz do Chança. Consta que a regulação dos consumos nunca foi definida entre os dois países


Vista da tomada de água a jusante da barragem, desde a ponte transfronteiriça. Lado português do lado esquerdo, na convexidade da linha divisória Portugal-Espanha


E finalmente falemos das interligações ferroviárias.
Há uns anos, o ministro espanhol explicou ao jornalista que estava a construir uma linha de alta velocidade para Portugal, não para Badajoz. Pouco depois, outro jornalista ouviu uma resposta torta do então diretor da ADIF/Alta Velocidade quando lhe perguntou pelo cronograma das obras dessa linha. 
Porque entretanto o ministro foi substituido e a linha de Alta Velocidade para Portugal começou a embrulhar-se. De tal maneira que de Plasencia para Badajoz lá estão as polivalentes à portuguesa e de Plasencia para Toledo ainda não há concurso para a nova linha, embora já esteja resolvido que será de raiz UIC mas ... não para mercadorias.
Bueno, o governo português devia apresentar queixa contra esta estratégia espanhola. Ao menos o rei Filipe II desviou algumas mais valias da prata do México para os tuneis de drenagem do Porto, para os fortes de defesa dos estuários, para o convento de S.Vicente de Fora. 
Agora, quando precisamos de transferir as exportações do modo rodoviário para o modo ferroviário e de pôr os semirreboques nos comboios interoperáveis para irem diretamente para a Europa além Pirineus, quando o tráfego  de exportações para Espanha em 2019 foi de 15 mil milhões de euros e para o resto da União Europeia foi de 31 mil milhões de euros  (valores de janeiro a agosto de 2022 : 13 mil milhões para Espanha  e 23 mil milhões para o resto da Europa) . 
Parece assim que a estratégia espanhola é servir a plataforma de Vitória em bitola ibérica e ligar essa plataforma em bitola UIC a França a partir de 2025 ( "Y" basco), e a partir de 2026 ter o corredor mediterrânico ligado a França em UIC. 
O resto das regiões, nomeadamente Andaluzia e Extremadura, sob a batuta do AEIE agrupamento europeu de interesse económico ex corredor RFC4 que até agora tem boas relações com o coordenador do corredor atlântico Carlo Secchi, que explorem até ao tutano, possivelmente até às datas balizas dos regulamentos 2040 e 2050, as redes ibéricas. 
Ora, isto é efetivamente um mau comportamento dos espanhois, o que evidentemente não limpa as culpas do governo português. Que pensar das palmadinhas nas costas entre os primeiros ministros nas cimeiras? provavelmente com o espanhol a pensar, mas sem dizer, "não lêem os regulamentos? ninguém lhes disse a capacidade de gaseificação de Barcelona, Sagunto, Huelva, Cartagena, Bilbao é 10 vezes a de Sines?
Em resumo, penso que devemos pôr aos nossos eurodeputados a proposta de uma censura aos dois governos, o português porque anda a fazer viadutos em via única, polivalentes e velocidade até 250 km/h,  em vez de via dupla para 300 km/h e UIC e Lisboa -Porto em ibérica quando faz parte das redes TEN-T, e o espanhol porque se constitui como obstáculo ao transporte de mercadorias para o resto da Europa e à transferência do tráfego aéreo Lisboa -Madrid para a AV.
Como fundamento, temos as propostas pela CE de revisão dos regulamentos 913, 1315 e 1153 (ex 1316) que propõem claramente a construção de linhas interoperáveis em UIC, utilizando a guerra da Ucrânia para justificar a rede única ferroviária europeia.

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