quarta-feira, 31 de julho de 2024

Política ferroviária e traçados - comunicação para a 6ªcomissão (CEOPH) e carta aberta ao ministro das Infraestruturas

 

Caro(a)s deputado(a)s da 6ª Comissão

Transcrevo abaixo a carta aberta que enderecei, como colega, ao senhor ministro das Infraestruturas .  Tentei dar o maior destaque ao tema das exportações por meios terrestres para a Europa além Pireneus (5,55 milhões de toneladas em 2023) que por força da política climática deveria ser transferida para a ferrovia construída com os parâmetros da interoperabilidade (incluindo bitola 1435 mm e ERTMS) e, pelas mesmas razões, à substituição das viagens aéreas Lisboa-Madrid. Julgo ter mostrado que a invocação de desinteresse do governo espanhol nas ligações à Europa não tem fundamento e que o recurso a isenções ao novo regulamento é apenas um adiamento com consequências económicas gravosas no futuro. 

Remeto também, em anexo, o contributo que enviei durante a consulta pública sobre o PFN, criticando o que considero erros técnicos e inconformidades técnicas com o normativo comunitário vinculativo, nomeadamente ao desprezar as vantagens da interoperabilidade plena com a rede única ferroviária europeia, como aliás reconhece explicitamente. Sugiro por isso a aprovação com a ressalva de revisão do PFN com recurso a concurso público internacional para seleção de gabinete da especialidade ou a procedimento semelhante ao adotado para o novo aeroporto, de modo a compatibilizá-lo com os regulamentos europeus.

Dado o volume e o tempo de execução dos investimentos necessários e dos investimentos conexos, como a ordenação das prioridades das linhas de Alta Velocidade, o serviço ferroviário do novo aeroporto e a terceira travessia do Tejo, o debate e as decisões sobre estes temas parecem-me urgentes e de grande interesse público numa tentativa de evitar cometer erros e inconformidades que se anunciam, o que deixo à vossa consideração.

Com os melhores cumprimentos

 

Fernando Santos e Silva

 

 

 

Carta aberta ao senhor ministro das Infraestruturas, Miguel Pinto Luz

 

Caro ministro e colega

Devo antes de mais pedir desculpa pelo tom menos grave desta carta aberta que no  entanto pretende abordar temas de relevância para a saúde económica do nosso país e para o bem estar dos seus habitantes.

É que não é frequente termos um engenheiro eletrotécnico como ministro dos transportes o que me sensibilizou, como seu colega mais antigo, e que por isso espera ser perdoado pelo atrevimento da carta. Até porque como técnico fiquei encantado quando, muito antes da investidura deste governo, dinamizou em Cascais os autocarros de célula de combustível e hidrogénio. É verdade que o rendimento da fonte primária à roda dos autocarros de hidrogénio é inferior ao dos autocarros de bateria, porque a eletrólise é um processo de baixo rendimento, mas mais vale depender de fontes renováveis nossas do que de fabricantes de baterias.

Segui com apreço os seus primeiros movimentos como ministro, evidenciando uma atividade quase juvenil e de aparente encantamento e interesse em conhecer os assuntos à medida que se sucediam as suas intervenções.

Cheguei a preocupar-me quando li nas notícias  que tinha afirmado que os movimentos no aeroporto Humberto Delgado podiam chegar a 45 por hora graças ao novo sistema de gestão do espaço aéreo, mas logo se esclareceu que esse número era para os movimentos na área de Lisboa.

Ou quando disse convictamente que se construía a linha de alta velocidade para Madrid em bitola ibérica sem problema porque chegando a Toledo haveria lá um intercambiador e daí para Madrid seguia-se pela bitola europeia já instalada. Imagino os colegas da IP a industriarem-no nas últimas novidades dos eixos variáveis em Espanha explicando-lhe que de Lisboa a Madrid se poderá fazer o mesmo que de Madrid a Santiago de Compostela, em bitola europeia de Madrid a Ourense , um intercambiador aí e de Ourense a Santiago e Vigo em bitola ibérica.

Imagino também os colegas da IP a repetirem-lhe que a bitola é um não assunto, como dizia o ex ministro Nuno Santos, ou uma ficção, ou outras classificações pejorativas. Como técnicos, centremo-nos antes nos argumentos técnicos, evitando adjetivos.

Interesso-me muito pelo tema do novo aeroporto e já é significativo o volume do que tenho escrito sobre ele, mas não sou especialista do tema e por isso não devo argumentar, limitando-me a coleccionar uma série de argumentos, participando como cidadão no processo de consulta pública. Não digo  o mesmo no tema da ferrovia. Por isso digam-me onde é o novo aeroporto e eu analiso hipóteses para o servir. Não há financiamento comunitário para aeroportos mas o normativo manda que sejam servidos por  redes intermodais (prever terminal rodoferroviário no NAL), que a área metropolitana onde se integre obedeça a um plano de mobilidade urbana sustentável, que a rede de alta velocidade sirva os aeroportos principais e para isso há financiamento comunitário (regulação europeia oblige  - ver      https://fcsseratostenes.blogspot.com/2024/06/aprovacao-do-novo-regulamento-das-redes.html).

Então, se o NAL vai ser no CTFA, tem o caro ministro de decidir, ou de fazer decidir, entre a proposta precipitada da CTI (porque aumenta 50 km ao percurso Porto-Lisboa se usar a TTT Chelas-Barreiro, e 40 km se por Beato-Montijo) e o antigo traçado da RAVE pela margem direita do Tejo. Tenha em consideração que a ligação Porto-Lisboa, assim como Porto-Vigo, integram a rede “core” do novo regulamento, com o objetivo 2030 Lisboa e 2040 Vigo, não é uma linha para a rede suburbana da AML. Não devíamos misturar tráfegos distintos, veja o que acontece ao Alfa do Algarve quando chega ao Fogueteiro, e não será a quadruplicação Areeiro-Braço de Prata e Alverca-Azambuja, aliás credora da construção de um túnel de 5 km Alhandra-Vila Franca de Xira, que assegurará a operação correta da alta velocidade. 

Imagino outra vez os colegas da IP a soprarem-lhe que é caríssimo vir pela margem direita, seria uma solução com um túnel de 20 km e 12 km de viadutos, coisa para mais de 2.000 milhões de euros só de construção civil, quando num viaduto de 30 km pela tranquila margem esquerda do Carregado ao NAL seria à volta de metade (podemos, mas não devemos construir uma linha de alta velocidade numa zona de reserva natural em aterro à superfície, criando uma barreira intransponível, por isso escrevi viaduto).

Perdoará o colega eu sugerir uma atenção especial ao controle de custos de viadutos e de túneis, preocupação que me ficou das obras do metro, apesar de ser um eletrotécnico que não foi além   da cadeira de Resistência de Materiais e Estabilidade (era, nesse tempo os eletrotécnicos tinham de estudar os momentos de inércia), mas era importante, perdoe-se-me a ingenuidade, com tanto que falta construir em Portugal, não ficarmos dependentes apenas das propostas dos concorrentes e otimizarmos os custos de construção com a colaboração da academia e dos técnicos com experiência no tema.

Também  não devemos olhar só para os custos de construção. Se o percurso pela margem esquerda tem mais 40 ou 50 km devemos contabilizar os custos adicionais de operação, multiplicar o número de passageiros-km anuais Porto-Lisboa pelo consumo específico por passageiro-km e pelo acréscimo de tempo para termos os custos adicionais de energia e tempo.

Ainda falta analisar devidamente por onde deve passar a TTT, contar que ela deverá servir o tráfego de mercadorias, dos passageiros dos suburbanos das duas margens (compatibilizado com a quarta travessia por Trafaria-Algés), e claro, o shuttle do NAL e a ligação de alta velocidade Lisboa-Madrid. Falta também avaliar onde deverá ficar a estação de AV de Lisboa (não quererá considerar a hipótese de ficar no AHD, para o caso dele não sair tão cedo, ou não sair completamente?). 

Numa altura em que volta a falar-se na reforma administrativa e na redução das regiões do Continente (não, não as aumentemos com NUTsII de mão estendida, sinecuras e caciques; sim a CCDRs por concurso público aberto a cidadãos da EU) , será que temos capacidade para gerir os instrumentos de gestão territorial, ou para resolver o problema dos grandes investimentos, por onde deve andar a alta velocidade ou a TTT, não será melhor pedir assistência técnica a Bruxelas, como já dizia o ex presidente Juncker?  Ou contentamo-nos com uma nova CTI? É que é urgente.

E estamos caídos na polémica linha de AV Porto-Lisboa. Imagino pressurosos assessores da IP  explicar que não se preocupe muito com o novo regulamento aprovado em 13 de junho pelo Conselho Europeu porque o artigo 17 (texto do regulamento aprovado:    https://data.consilium.europa.eu/doc/document/PE-56-2024-INIT/en/pdf ) diz que se podem pedir isenções temporárias. Confesso que fiquei marcado quando, logo no primeiro ano do curso, na cadeira de Desenho, me apresentaram a Normalização, e mais tarde, durante vários anos, estive numa comissão de normalização ferroviária de aplicações eletrotécnicas. Por isso insisto que normas são para cumprir e isenções só muito, muito excecionalmente.

Deixe-me pôr as coisas neste pé: temos, nós e Espanha conjuntamente, cerca de 2.000 km de vias duplas novas a construir (ou mudar de bitola) para serviço misto de passageiros e mercadorias para se integrarem na rede única ferroviária interoperável, incluindo o objeto dos artigos 17 e 18 do novo regulamento das redes TEN-T, isto é, bitola 1435 mm e ERTMS em 31 de dezembro de 2030 nos corredores da rede “core” (risco de atrasos à conta do CONVEL, apesar do esforço meritório em torno do STM).

Pedir adiamentos será uma boa solução? Poupar agora, continuar com as linhas de pendentes elevadas e consumos adicionais de energia, privilegiando o transporte rodoviário e aéreo, apesar das declarações enfáticas de defesa do planeta , para mais tarde gastar mais, desaparafusando e aparafusando ali, como dizia o novo presidente do Conselho Europeu, ele que só queria ouvir falar de alta velocidade no quadro de financiamento a começar em 2027? Só porque queremos aproveitar os comboios velhinhos de bitola ibérica para poderem circular na nova linha Porto-Lisboa? Quando as regras da concorrência dizem que o operador é que compra os comboios? Quando as celebradas isenções são sempre temporárias?

Vai continuar a acreditar nos defensores a tout prix da bitola ibérica?

É verdade que podem pedir-se isenções, dispensa de fazer as linhas novas em bitola 1435 mm, mas vai ter de falar com os espanhóis, vai ter de mandar fazer uma análise de custos benefícios e uma avaliação do impacto na interoperabilidade com o país vizinho. Tentámos antecipar-nos e fazer essa análise, de acordo com os critérios da EU para apresentação no 10ºcongresso do CRP (centro rodoferroviário português) no LNEC, em julho de 2022. Falhou-nos um prometido apoio de académicos economistas. De modo que tivemos, nós com a limitada literacia económica própria de engenheiros, de fazer uma e apresentámo-la no congresso. Estimámos os custos durante o período das obras e as mais valias ao longo dos anos em operação até ao equilíbrio do investimento. Resultados obtidos para um investimento de 12000 milhões de euros de linhas TEN-T “core” em Portugal, com cofinanciamento comunitário de 40%, crescimento 3% ao ano e transferência até 2030 de 30% da carga rodo para a ferrovia: valor atual líquido VAL (NPV) 486 milhões de euros ; taxa interna de rentabilidade TIR (ERR) 2,23% ; relação benefícios/custos 1,11

(https://1drv.ms/w/s!Al9_rthOlbwewAPiImeJt2AleD8l?e=8een7f)       

 

As mais valias são devidas à substituição pela ferrovia de alta velocidade das viagens aéreas Lisboa-Porto e Lisboa-Madrid e à maior eficiência nas linhas novas com a consequente transferência da carga rodoviária para a ferrovia. Permito-me recordar que em 2023 exportámos por modos terrestres para além dos Pireneus 5,55 milhões de toneladas, à volta de 150.000 camiões por ano ou, se fossem comboios, 4.000 por ano, só para além dos Pireneus, no valor de 26275 milhões de euros, enquanto para Espanha exportámos 10,84 milhões de toneladas mas apenas no valor de 16908 milhões de euros            ( https://fcsseratostenes.blogspot.com/2024/02/os-numeros-de-2023-das-exportacoes-e.html  )   .

Portanto, não  é só no interesse de Espanha e das suas exportações que a curto prazo a bitola 1435 mm chegue de Barcelona a  Valencia no corredor mediterrânico e de Hendaye a Vitoria, no país basco, no corredor atlântico. Deixe-me recordar que em Espanha existem 3083 km de via de bitola 1435 mm, 10829 km de via de bitola ibérica e 322 km de via de 3 carris (simultaneamente 1435 mm e ibérica).

Por isso, não leve a mal que, quando for falar com o seu homólogo espanhol, não faça como o novo presidente do Conselho Europeu na cimeira da Guarda de outubro de 2020 quando disse, perante um Pedro Sanchez embasbacado, quiçá receando a invocação de San Jamás, “Seguramente que Portugal um dia não ficará isolado da rede de alta velocidade”. Acelere o Lisboa-Madrid em alta velocidade como o coordenador do corredor atlântico Carlo Secchi anda a pregar há anos, com todas as caraterísticas da interoperabilidade. Tente recuperar o projeto Poceirão-Caia em má hora recusado e de que ainda não se pagou a indemnização que o tribunal decretou (mas não em via única, por favor). Fale com o coordenador Carlo Secchi e com o comisionado del corredor atlântico do MITMA José Antonio Sebastian. Veja com o ministro Oscar Puente como ele quer com Portugal e França cumprir o objetivo 2030 no corredor atlântico             (https://www.zamora24horas.com/castilla-y-leon/puente-traslada-europa-importancia-portugal-francia-se-impliquen-en-desarrollo-conexiones-transfronterizas_15115234_102.html) e no  corredor mediterrânico   (  https://www.elestrechodigital.com/2024/05/29/el-gobierno-reafirma-su-compromiso-con-los-plazos-del-corredor-mediterraneo/   )      , em passageiros e em mercadorias. Faça como os bálticos com o seu corredor de 870 km diferente da bitola russa pré existente nos três estados e sem partilha entre a  rede de bitola 1435 mm e a rede de bitola russa 1520 mm          (   https://www.railbaltica.org/      ) .          Pergunte aos nossos operadores, Medway e Captrain, se não seria melhor para eles se lhes pusesse à disposição corredores de bitola 1435 mm até à fronteira francesa. Não vá com pretextos de poupar a curto prazo invocando isenções quando o regulamento é claro, linhas novas em corredores internacionais, é com bitola 1435 mm e ERTMS; e isenções, só temporárias e desde que não tenham impacto na interoperabilidade (diz o regulamento, e eu acrescentaria que neste caso  interoperabilidade são as exportações para além dos Pireneus e cumprimento integral do normativo facilita a obtenção de financiamento comunitário).  Lance as autopistas ferroviárias    ( https://www.youtube.com/watch?v=1-MQczdqb4c     ;         https://cdn.mitma.gob.es/portal-web-drupal/mercancias30/doc_final/2022_05_documento_final_mercancias_30_44_autopistasferro.pdf   )       e um plano faseado de progressiva aproximação da bitola 1435 mm dos portos portugueses …

Tanto para fazer e tanto tempo que estamos a perder …

Não leve a mal este desabafo dum seu colega mais velho, algo desiludido com o estado dos transportes depois duma vida profissional dedicada à mobilidade ferroviária.

 

Ao dispor, com os melhores cumprimentos e votos de sucesso para o bem público

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