nota: este artigo foi escrito em junho de 2009
No último mês ocorreram dois grandes acidentes aéreos (voo 447 da Air France e avião do Yemen nas Comores) e três ferroviários (colisão no metro de Washington, colisão em Chenzou na China e descarrilamento seguido de explosão de comboio de transporte de gás natural liquefeito em Itália).
Apesar da percepção de insegurança induzida, os transportes ferroviário e aéreo continuam a ser seguros, com indicadores mais favoráveis do que o transporte rodoviário.
Isso acontece porque a fiabilidade dos equipamentos e das infraestruturas é muito elevada.
Tanto das componentes “hard” (fortes, usando uma terminologia clássica em electrotecnia), que é aquilo que se vê e se compreende mais ou menos como funciona fisicamente, como das componentes “soft”(fracas, segundo a mesma terminologia), que é aquilo que segue um programa virtual e escondido de entradas, processamento, consulta de memórias, e saídas.
É assim que a estrutura e a caixa de um avião resistem a mais de 20 anos de uso intensivo (60.000 horas de voo) e as locomotivas e os vagões atingem mais de 50 anos de vida útil.
E que não são os programas em si que têem erros ou avariam, mas antes os erros que têm origem em sensores avariados que entregam informações erradas aos processadores.
Todavia, há regras a cumprir.
A fiabilidade tem limites e exige o cumprimento de procedimentos de manutenção.
E existe uma tendência muito forte para deixar as regras de segurança em segundo plano para obter preços mais baixos (não é o que os economistas, dizem, que as empresas existem para dar lucro e só depois para transportar pessoas?) .
Todas as companhias aéreas se queixam de que estão a ter prejuízos (até a British Airways e a Lufthansa) e a tentação para cortar nos custos da manutenção é muito grande.
Para além de interessar que os técnicos encontrem e corrijam as causas dos acidentes , interessa que a opinião pública se sensibilize para uma cultura de segurança.
A cultura de segurança começa nela própria, na opinião pública, que deveria alterar os seus conceitos na segurança rodoviária. É prevalente a ideia de que na estrada qualquer um pode fazer o que quiser desde que cumpra as regras gerais do Código da Estrada. Ineflizmente não pode. Não há regras gerais. Há conceitos que devem ser compreendidos e aplicados sob pena do sistema de transporte rodoviário continuar a ter índices de acidentes intoleráveis. Isso é principalmente com a opinião pública porque os condutores constituem a opinião pública.
Quanto à segurança do transporte ferroviário e aéreo, interessa instilar os conceitos na opinião pública para que seja mais fácil aos gestores que forem nomeados (estranha sina esta, os gestores são nomeados dentre o universo dos que ignoram as regras do negócio…) compreender os factores da segurança.
É simples de seguir , o raciocínio. Se a fiabilidade elevada só se garante com o cumprimento dos procedimentos de manutenção, então não poderemos ir buscar o equilíbrio financeiro de uma empresa de transportes à economia na manutenção. Mesmo que o pagamento das indemnizações aos familiares das vítimas seja inferior aos custos da garantia da manutenção. É uma questão de valorar o benefício das vidas humanas que se poupariam com a exacta medida dos custos da manutenção. Que pensem duas vezes os gestores, quando decidirem reduzir os custos da manutenção ou aumentar os intervalos de monitorização. Não é orgulho reduzir os quadros do pessoal afecto à manutenção.
É o dilema dramático do economista: sabe quanto custa uma coisa, mas ignora o seu valor. Só que na coisa, neste caso, entram vidas humanas.
E que a opinião pública deixe de considerar bom gestor aquele que declara, imediatamente a seguir ao acidente, que já ordenou um rigoroso inquérito, e que todas as conclusões serão aplicadas para melhorar a segurança. Porque o bom gestor é aquele que compreende por que as coisas aconteceram.
No caso dos acidentes aéreos, está-se evidenciando o excesso de confiança na fiabilidade dos equipamentos e dos automatismos. Desconfia-se de algumas fragilidades de utilização dos radares meteorológicos (é necessário proceder a ajustes para conseguir detectar granizos), da fiabilidade dos sensores anemométricos a condições extremas (as sondas Pitot), de automatismos que se sobrepõem à acção dos pilotos durante tempo demais.
No caso dos acidentes ferroviários em Itália e na China, pela fotografias disponíveis, parecerá que os acidentes terão tido origem em zonas de agulhas, onde é maior o risco de descarrilamento se as manutenções não detectaram previamente as falhas no material circulante (qualquer peça que caia pode contribuir para o descarrilamento) ou nas agulhas (não cumprimento de todos os itens da lista de manutenção). No caso de Itália é questionável por que não existe um gasoduto ou pipeline (eles próprios exigem normas de segurança para monitorização das pressões e fugas) entre o porto e o centro de consumo.
No caso do metro de Washington, estranho, depois das conferencias de imprensa em que foram ventiladas a maioria das hipóteses de causas, a insistência numa hipótese pouco provável (avaria do circuito de via detector da presença do comboio embatido, sem que tenham sido notados os comportamentos anómalos que antecedem a avaria total; recentemente aconteceu um caso semelhante no metro de Boston e esses sinais foram detectados) quando se omite por que razão há tanta certeza em que o comboio que embateu seguia em marcha automática. Neste caso vai mesmo ter de se esperar pelo relatório dos investigadores do NTSB.
Analisemos outros casos concretos.
1 – a falta do pipeline para o Aeroporto da Portela - O sucesso da EXPO 98 foi manchado por alguns factos: sobre-construção e desorganização urbanística, inutilização da marina durante 8 anos, e reorganização incorrecta dos depósitos e distribuição de combustíveis. Neste momento, diariamente, 80 camiões descarregam no Aeroporto da Portela o combustível que antes da EXPO 98 era transportado em segurança por pipeline a partir de Cabo Ruivo. Trata-se de uma situação de risco indesejável, que poderia ser reduzido se fosse construido novo pipeline.
2 – Há 30 anos atrás, na cabina dos aviões encontravam-se os dois pilotos e um mecânico de bordo (“flight engineer”. Por razões de economia, suprimiu-se a função do mecânico de voo. Embora os pilotos saibam o que estão a fazer, a concentração nas respetivas funções e uma menor sensibilização já têm sido responsáveis por acidentes graves. O paradigma desta situação foi o acidente da TWA em New York, com um avião que tinha vindo de Atenas com avaria no ar condicionado, o que roubou potencia na descolagem. Duvido que no caso do acidente com o avião da TAM a aterrar na pista curta de Congonhas em S.Paulo sob chuva intensa, com um dos reversers fora de serviço, o mecânico de voo, se existisse, tivesse autorizado a descida.
3 – os trabalhos de remodelação dos cais da estação de S.Sebastião – houve passageiros do metropolitano de Lisboa que estranharam ver andaimes e escadotes e máquinas de pavimentação em plena acção enquanto os comboios passavam em marcha reduzida, sem que entre a zona de trabalhos e os comboios existisse uma vedação protectora. O perigo aqui era o de queda de pessoas ou materiais para a frente do comboio. Felizmente a obra concluiu-se sem problemas, mas, até porque ainda há pouco tempo tinha decorrido a obra de remodelação dos cais da estação Avenida, com vedações de protecção, a diferença de critérios terá sido chocante. Como homenagem aos pedreiros que estiveram sujeitos àquele perigo, transcrevo o poema de Chico Buarque de Holanda, embora deslocado do meio ferroviário para o meio rodoviário.
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado
PS em março de 2022 - confirmou-se posteriormente a falha na origem do acidente do metro de Washington, o aproveitamento de um bastidor de cabos após a instalação de novos circcuotos de via, mas em que o bastidor permitia interferencias que inibiam o ATC de conhecer a posião do comboio parado adiante do comboio que embateu:
post impresionante. Realmente disfruté la lectura de su blog.
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