segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Reportagem na praia





















Reportagem televisiva do primeiro dia de férias do senhor primeiro ministro. Pai de família irrepreensível, mão dada com a esposa, abraços ao senhor que lhe dá alento e diz que tem sido durissimo e a quem o senhor primeiro ministro diz "Todos temos de trabalhar para resolver isso" (qual a relação deste programa de ação com o combate ao desemprego? e na esfera da ideologia económica que o senhor primeiro ministro apreendeu na sua faculdade como se concebe a integração desse tal trabalho? como podem os cidadãos organizar esse trabalho?). A entrevista decorre junto de um pedregulho de mármore, com as arestas esfaceladas e apenas parcialmente trabalhado para ter um toque estético. O pedregulho assinala a inauguração em 2007 da requalificação da praia de que o senhor primeiro ministro tanto gosta. A requalificação teve origem num investimento que beneficiou de fundos europeus, de candidatura submetida pelo governo de Guterres, sendo ministro do ambiente José Sócrates. Que bom seria se a requalificação da praia pudesse beneficiar todos, os que pagam impostos e os que não conseguem rendimentos para os pagar. Que não fosse apenas a classe média com os seus carritos a poder chegar à praia ou a alugar um apartamento ou uma casa por uma semana ou duas. Afinal, "viver acima das possibilidades" também passou por aqui, por beneficiar um sítio de lazer de que o senhor primeiro ministro, tão crítico dos empreendimentos de infraestruturas, tão pródigo em parar obras em curso com fundos europeus e desejoso de os transferir para empresas de "formação" (para que servem as escolas?) tanto gosta. Há-de compreender, o senhor primeiro ministro, que se ele gosta da praia outros gostarão e muitos não podem lá ir, ou quando muito irão num fim de semana de agosto (o senhor primeiro ministro ainda estranhou, preocupado, que "costuma estar mais gente aqui", mas isso foi numa sexta feira à tarde; na noite de sexta feira tambem o movimento de carros foi menor, que a gasolina está cara e os transportes coletivos não têm procura suficiente; mas no domingo o sítio encheu-se de pessoas chegadas de carro, tranquilizando talvez a consciencia do senhor primeiro ministro). Ao fundo, uma construção de madeira que integrou a requalificação, um dos restaurantes de projeto algo pretensioso para substituir os antigos abrigos de praia, cercado agora por uma paliçada abrigando uma discoteca noturna, de volume sonoro contido para não prejudicar o repouso do senhor primeiro ministro. A perspetiva da câmara dá a ilusão que é uma mansão no campo, com a vegetação das dunas a enfeitá-la, mas o terreno que separa o entrevistado do restaurante é apenas um descampado de mato cortado. Onde o meu cão gosta de passear em liberdade, à noite, quando só os frequentadores das discotecas por lá passam, fechados os entretenimentos das crianças. E também gosta muito, o meu cão, de, ao pé do pedregulho comemorativo, alçar a pata e exprimir o que muitos de nós sentimos pela petulancia, o pretensiosismo, a impreparação, a inépcia, a incoerencia entre as promessas eleitorais e a prática, a incapacidade de entender as questões técnicas, a promiscuidade entre o poder financeiro e o poder político e o auto-convencimento excessivo dos decisores que nos condicionam.


A desconsideração canina no mnarco comemorativo dos grandes homens

Sem comentários:

Enviar um comentário