Há uns meses, fui abordado em casa por um senhor ao serviço de uma empresa fornecedora de eletricidade.
Como um propagandista religioso, anunciou-me o apocalipse do fim das tarifas reguladas (que nome, senhores, tarifas reguladas, para designar as tarifas de quem não quer ser incomodado com burocracias de mudanças de fornecedor). Que seria o caos quando todos quisessem mudar.
Contestei que as empresas e o governo deviam pensar por que tantos consumidores se mantinham nas tarifas reguladas (cerca de 50%, 2,5 milhões).
A resposta do senhor foi ofensiva, perto de chamar estúpidos a quem não queria pagar menos, com a liberalização e os descontos que os novos fornecedores ofereciam.
Pacientemente expliquei ao senhor que estávamos perante um caso semelhante ao da anedota do escuteiro que queria ajudar a velhinha a atravessar a avenida; só que a velhinha não queria atravessar a avenida.
As vantagens da liberalização e da concorrência existem nos manuais dos economistas (supostamente para estimular a economia, embora se possa perguntar: então porque não se estimula?) sem as contrariedades que a cruel realidade lhes opõe. Os decisores burocratas da Europa impõem a liberalização para que haja muitas empresas com lugares de direção em quantidade suficiente para albergar quem os suporte, aos decisores europeus. Qualquer mudança num sistema de abastecimento público deveria ter sido objeto de uma análise de riscos com a previsão de todas as vantagens e inconvenientes, de todos os custos e benefícios. Por exemplo, os riscos de apagões por descoordenação entre salas de despacho (gestão das redes nacionais), os riscos de incumprimento das normas de segurança por facilitação de pequenas empresas ou funcionários sem formação adequada, os riscos de abaixamento da qualidade dos serviços de fornecimento de eletricidade e de manutenção das infraestruturas graças a politicas de economia de custos com cortes em recursos materiais e humanos, os riscos de ineficácia da regulação devido a inexperiencia dos reguladores ou ao poder financeiro do fornecedor.
Sem a discussão efetivamente pública (não com prazos formais ineficazes) com a participação real dos consumidores não será aceitável a tal "liberalização".
Confesso que é possível que pense assim por me recordar das aulas de Aplicações de Eletricidade I e II, do professor Domingos Moura, em que nos deixávamos prender pelos mistérios da eletricidade e das suas utilizações para o bem comum. E porque os grupinhos de economistas que ocuparam os postos decisores da burocracia europeia e nacional , muito crentes como apóstolos em leis universais que podem ser aplicadas a qualquer dominio, ignoram na realidade como funcionam as redes elétricas e os equipamentos que elas alimentam.
E sabe-se o que acontece quando a ignorância preside às decisões.
Como desenhou Goya, o sono da razão gera monstros.
Por isso tudo, concordo com a decisão do senhor economista secretário de Estado da Energia, Artur Trindade: "Já não há uma data de fim da tarifa transitória regulada... não vai haver nenhum corte (era o que mais faltava, comento eu) se ainda não tiverem mudado. Podem fazê-lo sem pressas".
Mas, como eu disse ao senhor agente que me incomodou com a sua propaganda,que me candidatava a ser o último a mudar, o novo regulamento (que de forma civilizada termina com essa ideia peregrina das "fidelizações") prevê que só haverá prazo de mudança quando houver apenas 1000 clientes das tarifas reguladas com contratos de 6,9 kVA (30 A em monofásica ou 3x10A em trifásica).
O que a religião da liberalização leva as pessoas sérias a fazer...
Sem comentários:
Enviar um comentário