segunda-feira, 13 de abril de 2020

A conflitualidade juridica IP-CP

No seguimento de um comunicado publicado em 2 de abril de 2020 pela ADFERSIT a propósito da conflitualidade jurídica entre a IP e a CP, retratada na série de reportagens por Carlos Cipriano no Público,  tomei a liberdade de enviar à direção da ADFERSIT o comentário seguinte.




Peço desculpa pelo comentário que vos envio ao comunicado sobre os conflitos jurídicos entre a CP e a REFER/IP.
Não posso fazê-lo na qualidade de técnico com experiencia na ferrovia de longa distancia, dado que a minha vida profissional se limitou ao metropolitano de Lisboa, por natureza excluído das diretivas europeias que regulam o funcionamento da referida ferrovia.
Mas posso fazê-lo como simples cidadão, cujo direito à participação nos assuntos públicos é garantido pela Constituição, e tenho ainda a desculpa de os comboios do metro, apesar da sua muito restrita circulação, ainda pertencerem à classe “pesada” com as suas 13 toneladas/eixo, e são 4 por carruagem, e tudo o que lhes diz respeito obedece às mesmas leis da Física que os comboios da CP, incluindo os princípios básicos da operação e manutenção de material circulante e infraestruturas.
Começo por felicitá-los pela tomada de posição e pelo apelo às duas empresas envolvidas, na expetativa de futura adequação do sistema regulatório.
Graças às excelentes reportagens de Carlos Cipriano, ficámos a saber pormenores dos conflitos de interesse.
Como afirmam no comunicado, não é de estranhar que, depois das intervenções e das restrições no operador e no gestor de infraestruturas se tenha chegado a este tipo de conflitos.
E citam, e muito bem, as diretivas europeias, nomeadamente a 91/440/CEE, como justificação para a separação de operador e de gestor de infraestruturas.
A atualização dessa diretiva, através das 2012/34/EU e da 2016/2370/EU vieram confirmá-la, mas eu gostaria de sublinhar que a separação não era nem é uma imposição das diretivas. Ou melhor, a separação contabilística é mandatória, mas ensinam em qualquer escola de engenharia que de qualquer coisa que se faça tem de se saber o custo, e mais importante que isso, tem de se saber os custos de todas as naturezas, nomeadamente das externalidades, e os benefícios. Por isso ninguém contesta essa imposição.
Aliás, era o que já fazíamos na primeira década do século XXI no metropolitano. Calculávamos desde os custos do passageiro-km e do comboio-km à taxa de utilização da infraestrutura e afetavamo-nos mutuamente, operação, manutenção de material circulante, manutenção de infraestruturas.
Mas, sinceramente, não pensávamos que a separação em empresas independentes trouxesse benefícios. Recordo, claro que com nostalgia, os telefonemas do meu colega da operação, preocupado com deficiências (mal functions) que lhe reportavam os seus colaboradores. Ao que eu lhe respondia que não me preocupava muito o que lhe reportavam, porque quando isso acontecia já as coisas estavam resolvidas ou em vias de resolução, mas o que me preocupava mesmo eram as deficiências de que eu não tinha conhecimento. Isto é, uma ligação direta entre os técnicos das duas áreas é essencial, e separá-las dificulta o trabalho de ambas, embora possa, naturalmente, criar mais lugares de prestigio.
Extrapolando, direi que muitos indícios apontam que os nossos colegas da SNCF e da DB também acham isso, baseando-se na sua experiência profissional, que naturalmente será mais intensa na ferrovia efetiva do que a dos legisladores e gestores da União Europeia (vem a propósito lamentar que não parece resolvida a relação entre as comissões especializadas na área da ferrovia de apoio à Comissão Europeia e as grandes associações profissionais ferroviárias como a UITP e a UIC).
Isto para dizer que as diretivas não impõem a separação física em duas empresas, do operador e do gestor das infraestruturas. Explicitamente consideram-na facultativa ou suscetível de integração numa organização vertical.
Não tenho a pretensão de conhecer todos os dados da questão e portanto se será recomendável a reversão, desfazendo a união REFER-Estradas de Portugal e refundindo a REFER com a  CP/EMEF (já que as diretivas impõem a tração no operador), embora no meu foro íntimo eu assim o intua.
Mas gostaria de ver o assunto debatido com a divulgação dos dados para uma posterior decisão informada.
Entretanto, como referido no vosso comunicado, operador e gestor deverão “pôr em prática um modelo de compromisso de cooperação e de resolução de conflitos”.
No entanto, permito-me observar, com base no histórico de acidentes ferroviários, que um dos fatores que potencia levar os conflitos para os tribunais é a inadmissível rarefação de meios humanos no GPIAFF, o que atrasa a produção de relatórios e nalguns casos a inviabiliza.
Cito o caso relatado por Carlos Cipriano, que o relatório do acidente do descarrilamento do TUA omitiu  a abertura da vala para telecomunicações ao lado da via que já estava em mau estado (desalinhada, falta de tirafundos, travessas podres, a que se juntou deficientes manutenção e estado do material circulante, para além de outros fatores registados).
Cito o caso do atropelamento mortal de duas adolescentes em Vila Nova de Anços, a propósito do qual o GPIAFF declarou que não investigava por não ter meios e estatutariamente não ser obrigado.
Cito o caso do acidente da Adémia, em que para além da evidencia no relatório das deficientes fiscalização e execução por outsourcing dos trabalhos, subsistiram dúvidas sobre a correta manutenção dos vagões do operador de mercadorias.
Para além de ser necessário envolver o sistema regulatório nestas questões e da colocação em prática por operador e gestor do referido modelo, penso que o reforço do GPIAFF com meios humanos é indispensável para a resolução destes conflitos (notar que o objetivo de um inquérito não é apurar responsabilidades civis, é determinar as causas e circunstancias em que se deu o acidente e produzir recomendações para evitar ou atenuar os acidentes).
Gostaria ainda de referir alguns pontos das diretivas invocadas e que têm atualidade, dadas as restrições climáticas que mais cedo ou mais tarde terão de se impor ao tráfego rodoviário de mercadorias para a Europa (a melhor solução seria o transporte ferroviário de camiões ou reboques, cada comboio com capacidade para 30 a 50 camiões):
- as diretivas aceitam nalgumas circunstancias ajudas do Estado às empresas e admitem a criação de um serviço distinto das empresas para a amortização das dívidas, o que, juntamente com os cofinanciamentos comunitários, é compatível com o desenvolvimento de projetos de novas infraestruturas e sua concretização
- as diretivas condenam a limitação do acesso a uma rede a operadores de países terceiros, o que automaticamente põe a necessidade de rapidamente assegurar a ligação a Espanha e à Europa em bitola UIC, uma vez que a solução de eixos variáveis é, para esses operadores, não só pelos custos de investimento como de exploraçaão, um obstáculo à concorrência.
Solicitando mais uma vez a vossa indulgencia para os meus comentários, e felicitando-vos pelo vosso trabalho na ADFERSIT, apresento os meus melhores cumprimentos

Sem comentários:

Enviar um comentário