quarta-feira, 1 de abril de 2020

Nós e os holandeses

Muito melhor do que eu fala Rentes de Carvalho sobre os holandeses ("na Holanda não precisava de me defender da autoridade nem da sociedade porque fazia parte dela"), no seu livro "Com os holandeses", mas eu sou atrevido, e guardadas as devidas distancias, como passei 2 meses na Holanda, num estágio no laboratório de alta tensão Kema, em Arnhem (a da ponte da grande guerra), também vou dizer qualquer coisa.
Gostei muito do estágio. Estudei o gerador de alta tensão de Marx (https://en.wikipedia.org/wiki/Marx_generator ) e fiz algumas experiencias e medidas de rigidez dielétrica de materiais isolantes. Os engenheiros responsáveis pelo estágio foram muito simpáticos e interessados pelo sucesso do estágio. 
Tive pena de não poder desenvolver um estudo prático-teórico sobre o problema dos incendios junto das linhas de alta tensão, mas a importancia do tema não se ajustava a um desconhecido estagiário de um país na ponta da Europa, imerso numa guerra colonial, 25 anos depois do termo da segunda guerra mundial e 15 anos depois da reconstrução do último prédio bombardeado na Holanda (o bombardeamento de Roterdão ficou na História). Estive no laboratório com dois colegas austríacos, também estagiários. 
Um deles parecia mediterrânico, pouco formal nos procedimentos, o outro era rigidamente formal nos procedimentos. 
E eu não sei, porque tive um problema, estava imerso a pensar como montar um circuito experimental, de que já tinha parte em tensáo, quando o engenheiro responsável pelo meu estágio entrou apressadamente a dizer que precisava de um equipamento, já não me lembro qual, e iniciou a sua desmontagem. 
O erro meu foi que não tinha montado um cartaz a dizer "Danger, tension", de modo que o senhor, que primeiro devia ter perguntado se podia retirar o aparelho, apanhou um valente choque elétrico, sem consequencias porque eu desliguei imediatamente a tensão. 
Mas ficámos amigos à mesma, e ele não viu afetada a sua capacidade de pedalar na sua bicicleta no percurso casa-emprego.
No contacto com as famílias em que estive alojado testemunhei a sua simpatia mas também uma certa reserva inicial. 
A guerra colonial não ajudava, e o preconceito disseminado era o mesmo de hoje, que nos países mediterranicos não se gosta de trabalhar.
Isso pode significar uma convicção de supremacia, que, como qualquer supremacia, é antipática, ou pode ter como base o receio do estrangeiro, vulgo xenofobia, que suscita a atitude de defesa.
Ou simplesmente reporta à tradição comercial do norte da Europa, a liga Hanseática precedeu em 3 ou 4 séculos a expansão atlantica para o sul e a India.
Depois de alguns dias de contacto, a relação era normal.
Mas é interessante considerar algumas hipóteses, além da tradição comercial, para justificar o preconceito da supremacia de países como a Holanda, e isso pode tentar-se na análise de episódios históricos.
Por exemplo, existiu uma relação estreita entre a primeira e a segunda dinastia do reino de Portugal e o ducado da Borgonha. O pai de Afonso Henriques, o conde D.Henrique, era borgonhês.
Ao longo da história do ducado da Borgonha, até à sua integração na França, uma vez derrotado Carlos, o Temerário em 1477, que era primo direito de D.Afonso V, os seus senhores feudais tentaram desempenhar um papel central na Europa, fazendo alianças com várias monarquias na sua luta contra a monarquia francesa, que sob Luis XI anexou o ducado, precisamente na altura em que D.Afonso V viajou até França para pedir o apoio de Luis XI às suas pretensões ao trono de Castela
(https://www.academia.edu/25700328/A_diplomacia_portuguesa_no_reinado_de_D._Afonso_V_1448-1481_
pág 169 ).
Curiosamente, dos seus dominios fazia parte o Luxemburgo, Bruxelas, Bruges (um dos entrepostos principais da liga hanseática, uma união económica para o comercio internacional, mas isso era a luta entre os mercadores e os senhores feudais) e a Holanda (as provincias dos Paises Baixos).



A capital do ducado era ao sul, em Dijon

 A aliança do ducado de Borgonha com os Habsburgo (casamento de Maria, avó de Carlos V, com Maximiliano I arquiduque da Austria e imperador do sacro imperio romano-germanico) produziu a ideia de unificação da Europa sob a dominação de Carlos V. Mas isso não resistiu à oposição da França e dos principes e senhores feudais alemães protestantes, e em 1556 o filho de Carlos V, Filipe II (I de Portugal em 1580) herdou o trono de Espanha e os territórios que hoje são o Luxemburgo, a Bélgica e a Holanda. A parte do sacro império ficou para o irmão de Carlos V, Fernando I e já não interessa para aqui. 
Mas é muito importante seguir o caminho dos Paises Baixos sob a dominação filipina. Em 1567 o duque de Alba, o general principal de Filipe I, reprimiu barbaramente uma rebelião. Daí a abertura Egmont de Beethoven, enaltecendo o heroi nacional. Em 1581 independencia parcial da Holanda (as sete provincias dos Paises Baixos). Em 1625, em plena guerra dos 30 anos, o general Ambrosio Spinola, ao serviço de Filipe IV (III de Portugal) tomou Breda (no sul da Holanda) , já sem barbaridades, como documenta o quadro de Velasquez,  mas já sem energias para impedir a independencia total da Holanda no fim da guerra dos 30 anos, em 1648 (coincidindo com a independencia também da Suiça relativamente ao sacro império).
Chegava ao fim a discrepancia do dominio espanhol sobre a Holanda. 


o defensor da praça forte entrega as chaves da cidade ao general espanhol vencedor

De facto, o que os espanhois queriam era dominar militarmente a Holanda, impor a sua religião e dominar as estruturas comerciais de importação e exportação, incluindo as redes coloniais.
Os quadros da escola flamenga (Van Eick, Quentin Massys) mostram a importancia que nos Paises Baixos se dava à atividade comercial:


O casal Arnolfini. O homem era um rico comerciante de ascendencia italiano

O casal de cambistas. A senhora parece mais interessada nas moedas ganhas do que no seu livro de orações


Pelo ar dos retratados talvez se possa inferir que eles aprovariam a prática corrente da Holanda atual de se constituir em eficiente in-shore, onde as empresas acorrem a pagar menos impostos, subtraindo-os assim aos países de origem. Será um bom espírito empreendedor, mas mau comunitário.

Mas havia outra razão para os holandeses desconfiarem dos homens do sul. 
Em 1506 havia uma epidemia de peste negra em Lisboa. Numa cerimónia religiosa na igreja de S.Domingos pedindo o auxílio divino contra a doença, alguém gritou que tinha visto um sinal na face de Cristo. Um cristão novo explicou que era um reflexo de uma candeia acesa e logo foi arrastado para o exterior e morto com frades a instigar à morte dos judeus. E assim aconteceu um massacre de muitas centenas de pessoas por razões religiosas. D.Manuel I que se encontrava fora de Lisboa mandou castigar severamente os criminosos, mas ele próprio não resistiu às pressões dos reis de Espanha para expropriar e expulsar os judeus que não se convertessem. A Inquisição chegou pouco depois e a fuga de judeus para os Paises Baixos cresceu.
O descendente mais notável dessas familias em fuga foi Spinoza, uma mente extremamente avançada para a época. 
No largo de S.Domingos, em Lisboa, existe um pequeno monumento em que se registou o  pedido de desculpas pelo crime cometido. 
Talvez náo fosse má ideia fazè-lo explicitamente num dia destes, aos descendentes das familias emigradas, o que aliás parcialmente se fez ao viabilizar-lhes a concessão da nacionalidade portuguesa.
A memória do massacre de 1506 mantem-se viva na comunidade académica da Holanda, segundo o testemunho dum académico português nos seus contactos com os colegas holandeses.
Tal como a expulsão dos judeus do Brasil que se refugiaram no Suriname holandes.

Existem ao longo da História mais pontos de colisão dos povos da peninsula ibérica com os dos Paises Baixos, especialmente na disputa dos territórios coloniais, manifestando-se sistematicamente a grande diferença entre a capacidade organizativa dos holandeses nas suas expedições maritimas e a dos portugueses.
esquadra da companhia holandesa das indias orientais passando ao largo da costa ocidental de Africa, quadro de Adam Willaerts, 1608
Existem inclusive relatos de autenticas barbaridades, cometidas quer sobre os povos colonizados, quer entre holandeses e portugueses, especialmente depois da união com Espanha. O império espanhol era um inimigo declarado das Provincias unidas.

Mas houve tambem exemplos de colaboração, de intercambio comercial. O comércio com a Flandres é disso exemplo. Não só havia uma feitoria portuguesa na Flandres, como havia em Lisboa um entreposto da liga hanseática. Mesmo sob o dominio dos Filipes manteve-se a exportação de sal (Alcacer do Sal...) para a Holanda através de navios holandeses, que muitas vezes largavam o lastro de pedras com que vinham na foz do Sado.
Outro exemplo é o paço bispal da Figueira da Foz, com azulejos de Delft do século XVIII, ainda o interesse no sal, para conservação dos alimentos.
E ainda mais interessante no século XVIII também, os navios que transportavam o quinto para os reis de Portugal (a quota devida ao rei do ouro do Brasil )  eram holandeses, por várias razões, porque na Holanda havia seguro para o transporte maritimo, porque era preciso compensar de alguma forma os holandeses por terem sido expulsos do Brasil...
Em resumo, é de longe preferivel ter relações comerciais e partilhar conhecimentos do que guerrear ou querer impor formas de vida ou de pensar.

Impunha-se por isso negociar abertamente, argumentar, e especialmente, organizar as coisas com programas de ação de evolução monitorizável.
É possivel, eu trabalhei com colegas de metropolitanos de paises da Europa do norte, de igual para igual.
Mas há regras a cumprir, e o desenrascanço e o auto convencimento à portuguesa não são essas regras...


Ver a propósito e com o mesmo tema este escrito de 2017:
http://fcsseratostenes.blogspot.com/2017/04/tambem-eu-comento-o-senhor-dijsselbloem.html



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