O título poderá fugir à tentação de debater questões políticas, mas eu prefiro destacar os problemas de organização.
Socorrendo-me da comunicação social, verifico que, num intervalo curto, dois assuntos de evidente interesse público, a gestão da floresta e a necessidade de redução da importação de cereais põem em clara divergencia a senhora ministra da agricultura e entidades empresariais, profissionais ou académicos. Será mais um exemplo de dificuldade crónica de organização perante os problemas, com a gravidade das acusações por profissionais ao ministério de incompetência.
Mais grave ainda por se subir na hierarquia, verifica-se um conflito de competências entre o governo e a Assembleia da República, primeiro sobre apoios sociais que o Tribunal Constitucional considerou violar a norma travão que impede despesas para além do orçamentado (dir-se-ia que era da competência da AR "desviar" verbas de outros artigos do orçamento, imitando as famosas cativações, mas certamente que haverá constitucionalistas que me acharão insensato ao escrever isto). Depois, sobre concursos de professores e regimes de recrutamento e mobilidade.
Ora, sobre competências, pode consultar-se a Constituição da República, cuja redação é suficientemente clara para dispensar especialistas.
Mas antes veja-se uma pequena metáfora. Numa embarcação, diz-se que o homem do leme governa a embarcação, isto é, toma decisões sobre o rumo e a velocidade de modo a cumprir o programa do percurso, de ligação entre dois pontos, que pode não ser ele a ter feito, mas antes, por exemplo, pelo proprietário.
O governo governa, é o homem do leme, a AR faz leis, é o proprietário (felizmente apenas por um período de 4 anos).
Ou outra metáfora, esta até citada pelo senhor secretário de Estado. O governo é uma orquestra e o primeiro ministro o maestro. Só que, a partitura deve ser respeitada, e quem escreveu a partitura é a AR.
Os artigos 164 e 165 da Constituição definem as competências exclusivas ou de reserva relativa da AR. Reserva relativa significa que a AR pode autorizar o governo a legislar nessas matérias, por exemplo, a alinea z do artigo 165 estipula que, embora seja da competencia exclusiva da AR legislar sobre as bases da organização do território e do urbanismo, pode autorizar o governo a fazê-lo. Daqui se infere que, se a lei preparada pelo governo não for aprovada pela AR haverá que alterá-la, ou não?
O senhor secretário de Estado adjunto do primeiro ministro Tiago Antunes respondeu militantemente a esta pergunta, com um não assertivo, em artigo no Público de 19 de agosto. Que, sendo o governo o orgão superior da administração pública (art.182) , não tem de receber instruções ou injunções da AR (citando o acordão 214/2011 do Tribunal Constitucional, interpretando injunção como obrigação imposta). Mais diz o art.182 que o governo é o orgão de condução da política geral do país, confirmando a metáfora, o governo como condutor de um veículo. Mas com tal acordão estamos numa pequena questão lógica se invocarmos o estatuto do Provedor da Justiça, que diz que o governo "fica excluído dos poderes de inspecção e fiscalização do Provedor de Justiça ... com excepção da sua actividade administrativa" (art.22 do estatuto). Isto é, o governo pode ser discricionário na sua atividade política, mas na sua atividade administrativa tem baias. Invocando Roma antiga, quem guardará e vigiará o governo político? quem protege os cidadãos do arbítrio do imperador "político"?
Simplifiquemos, o governo mandou para o TC o decreto lei sobre concursos de professores e recrutamento e mobilidade de docentes e o senhor secretário de Estado vem dizer que o art 182 ao dizer que como o governo é o orgão superior da administração pública a gestão dos recursos humanos afetos à atividade administrativa compete exclusivamente ao governo !!! Leia por favor, senhor secretário de Estado, a alínea i do art 164 da CRP: bases do sistema de ensino, competencia exclusiva , reserva absoluta da AR ...
Dirá o senhor secretário de Estado que compete ao governo elaborar planos e regulamentos com base nas leis das grandes opções (art 199 da CRP), mas repare na competencia de fiscalização da AR, alínea c do art 162 da CRP: a AR aprecia, para efeitos de cessação de vigencia ou alteração os decretos lei (exceto os da competencia exclusiva do governo, que são, note-se bem, os relativos à própria organização e funcionamento do governo, como diz o art 198).
De forma mais simples, para utilizar uma expressão que utilizou no seu artigo, a AR pode, segundo a CRP, mandar cessar ou alterar um decreto lei ... ou não será?
Pode ainda alterar ou mandar alterar a proposta de lei do Orçamento de Estado, cuja aprovação é competencia politica da AR (Ups, alínea g do art 161, afinal o pobre governo não pode invocar que politicamente está livre como um passarinho).
De forma mais simples, por force majeure, a AR entendeu alterar o OE. Veio o governo invocar a norma travão que não se pode aumentar a despesa nem reduzir a receita e vá de enviar tudo para o TC. Mas não foi o governo que se lembrou das cativações? quando cortou na aquisição de peças de reserva para as automotoras do metro de Lisboa até elas pararem (2016) não foi uma manipulação do OE? não poderia o senhor ministro das Finanças ir buscar verbas a outras rubricas que pudessem ser cativadas para os apoios sociais decorrentes da forçe majeure da pandemia para respeitar a norma travão?
E por falar em OE. O governo desrespeitou a lei 2/2020, artigos 282 e 283 que mandava suspender em 2020 a construção da linha circular do metro (está lá escrito, com todas as letras) e o governo obtem do Tribunal de Contas o visto favorável para o contrato do1º lote? e pode? decide uma ação administrativa e escapa-se como se fosse uma ação política apesar da competencia politica ser da AR?
Senhor secretário de Estado, não debilite a fé dos cidadãos nas instituições.
Não diga que quem o critica é arrogante nem que está contra governos minoritários. Quem o critica quer apenas que o governo minoritário ouça os cidadãos, que repudie as suas certezas de terem sempre as melhores soluções, que tenha a humildade de reconhecer que o governo é o homem do leme, o condutor do veículo, que se para ir do ponto A para o ponto B achar que é melhor passar pelo ponto C pergunte à AR e à sociedade civil (art 2 da CRP, aprofundamento da democracia participativa) se não haverá outros pontos melhores para percorrer.
Há claramente um problema de incapacidade de organização aqui da responsabilidade das comissões parlamentares. Partilhando essa incapacidade com a maioria dos portugueses. Os deputados não se souberam organizar de acordo com a Constituição, em que o poder legislativo é da AR, não do governo.
É uma crítica que faço aos cidadãos deputados, formulando votos para que recorram ao apoio da sociedade civil nas suas comissões especializadas, para ultrapassar as limitações dos governos, minoritários ou não, mas recorram aos apoios de todas as tendencias, não acreditem apenas em especialistas, ouçam técnicos, empresários, académicos, imprensa especializada, associações profissionais, mas não se agarrem a sábios muito seguros das suas certezas. Organizem-se interdisciplinarmente.
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