Podcast com entrevista do ministro de infraestruturas e
habitação:
Sem desmerecer no entusiasmo posto na defesa da ferrovia,
gostaria de comentar alguns aspetos que me parecem negativos, relembrando
primeiro os principais argumentos contra o “argumento imbatível” do senhor
ministro.
A estratégia do governo recusa novas linhas de bitola UIC e
restantes carateristicas de interoperabilidade, como o ERTMS, conforme os
traçados das redes transeuropeias TEN-T do regulamento 1315/2013 . A oposição a
essa estratégia baseia-se:
- na natureza mandatória dos regulamentos (isto é, são leis
que vinculam os estados membros da EU),
- na insuficiência de vias únicas para responder em termos
de capacidade ao mandado do regulamento 1316 de transferência de cargas
rodoviárias para a ferrovia e marítimo (total de exportações pelos modos rodo e
ferroviário em 2020: 33900 milhões de euros e 16 milhões de toneladas dos quais
para Espanha 13000 milhões de euros e 10 milhões de toneladas, isto é, em
termos de valor, as exportações para Espanha pelos modos rodo e ferroviário são
inferiores a 50% do total)
- na maior eficiência energética de linhas novas com
pendentes inferiores a 1,25% como definido nos regulamentos, o que as linhas
existentes não cumprem, devendo considerar-se nas análises de custos benefícios
os novos valores de penalização do incumprimento das metas de descarbonização,
quer nas ligações aéreas como Lisboa-Madrid, quer nas mercadorias
Aspetos negativos da entrevista:
1 – dizer que a bitola é um bicho de sete cabeças para
alguns, insistindo que não é um problema, é perfeitamente aceitável numa
discussão enquanto expressão coloquial, mas dizer que há um argumento “imbatível”,
o de que Espanha nada tem previsto em bitola UIC para ligação a Portugal, que
“toda a gente percebe”, não será simpático para a inteligência de quem discorda
porque há argumentos (ver pontos seguintes) contra esse argumento “imbatível” que devem ser ponderados, até porque há
outros problemas para resolver, quando se trata das ligações ferroviárias a
Espanha e à Europa para além da bitola, como sejam o ERTMS e o tipo de
alimentação elétrica, e porque infelizmente o pedido de uma audiência para
debate destas questões foi recusado pelo senhor ministro
2 – na entrevista foi referido que na cimeira de outubro de
2020 o governo espanhol afirmou que não tem planos para ligar a Portugal em
bitola UIC, mas o que se viu na conferencia de imprensa foi um primeiro
ministro espanhol confundido pela recusa do primeiro ministro português em
discutir a ligação de alta velocidade Lisboa-Madrid adiando-a “para um dia”.
Igualmente se refere na entrevista que a ligação Madrid-Galiza é em bitola
ibérica. É verdade que se mantem a bitola ibérica entre Ourense e Santiago (em
travessas polivalentes e em traçado para alta velocidade) e o resto da Galiza,
mas de Madrid a Ourense o que está instalado é bitola UIC. Igualmente
prosseguem as obras de ligação em UIC do Y basco e da plataforma de Vitoria à
fronteira francesa para mercadorias e passageiros . Idem no corredor
mediterrânico e nas Asturias-Leon. É verdade que de Caceres para Badajoz está
instalada bitola ibérica em travessas polivalentes em via única e plataforma
dupla, como em Evora-Caia, mas em Plasencia-Caceres já é via dupla embora
ibérica, e no troço seguinte, no sentido de Madrid, está planeada a instalação de raiz de bitola UIC. A falta
de coordenação com Espanha levou a que os investimentos tenham sido desviados
para outras ligações entre regiões espanholas, apesar do orçamento para 2021
prever para a alta velocidade 3000 milhões de euros. Convirá ainda esclarecer
se o projeto de via prevê em Évora-Caia velocidades de 300 km/h como afirmado
na entrevista, porque o que foi divulgado anteriormente era que a velocidade
seria de 250 km/h. Pede-se ainda o esclarecimento sobre a pendente máxima neste
troço, se respeita o limite para mercadorias de 1,25% ou se o ultrapassa.
3 - o problema não é
o de Portugal só poder instalar a bitola UIC quando Espanha tiver planos para a
instalar na direção de Portugal, o problema é que Portugal e Espanha são estados
membros da União Europeia, e esta tem estratégias definidas coletivamente que
se traduzem, sob forma juridicamente mandatória, em tratados, diretivas e regulamentos que
vinculam os estados membros. No caso das interligações ferroviárias na Europa,
existem os regulamentos 1315/2013 e 1316/2013 que definem as redes
transeuropeias TEN-T em Portugal para alta velocidade e mercadorias até 2030 :
Sines/Lisboa-Caia + Lisboa-Porto/Leixões + Aveiro-fronteira para Salamanca e a
obrigatoriedade de transferência de 30% da carga rodoviária de mais de 300 km
para os modos ferroviário e marítimo até 2030. Recorda-se que também França incumpre
a diretiva europeia ao atrasar a nova ligação Dax-Hendaye que permitirá
libertar espaço-canal para os serviços de mercadorias,
4 – da entrevista se infere que a estratégia do governo de
exclusividade da bitola ibérica cobre o médio prazo, pelo menos até 2050, o que
contraria o regulamento 1315, e que as prioridades deste são radicalmente
alteradas pelo governo ao propor a ligação de alta velocidade Lisboa-Madrid por
Aveiro-Salamanca (o que está no regulamento é a ligação em alta velocidade e
para mercadorias por Badajoz) e a ligação de Faro a Huelva ao corredor
mediterrânico (esquecendo que este está a ser construído em UIC). Relativamente
à ligação Porto/Leixões-Vigo evidentemente que foi uma falha não ter sido
incluída no regulamento 1315 no projeto da rede “comprehensive” para 2050, o
que poderá sê-lo, a exemplo do que fez Espanha com a ligação à Galiza, na
revisão do regulamento prevista para 2023. Havendo já traçados bem definidos no
contexto da EU para as redes transeuropeias com todas as carateristicas de
interoperabilidade (incluindo bitola UIC e ERTMS) e o prazo definido de 2030, estar
neste momento a substitui-los por outros introduz uma diversão no tempo que
atrasará irremediavelmente a integração de uma nova rede ferroviária portuguesa
na rede única europeia.
5 – o facto de as exportações pelos modos rodo e ferroviário
para Espanha em valor serem menos de metade do total sugere um forte esforço na
melhoria das condições de atravessamento dos Pirineus, o que implica uma
coordenação com Espanha para programação da construção de novas linhas de
mercadorias e alta velocidade do corredor atlantico interoperável com a rede
europeia, coisa que o outro corredor atlantico gerido pelos agrupamentos
europeus de interesse económico AVEP e RFC4 não garante nas condições definidas
nos regulamentos. É verdade que o governo português conseguiu que o coordenador
do corredor atlantico, Carlo Secchi, se
abstenha de criticar a sua estratégia, mas também é verdade que Portugal e
Espanha não estão a cumprir os regulamentos que têm força de lei, o que é
extremamente grave do ponto de vista jurídico.
6 – As ultimas deliberações da Comissão Europeia e do
Parlamento Europeu são no sentido do Green Deal e da estratégia Fit for 55
(redução das emissões de 55% até 2030). Em consequência, esperam-se penalizações
para os modos mais poluentes e taxação das emissões de CO2 por valores substancialmente
mais altos do que atualmente. Isto altera os resultados das análises de custos
benefícios no sentido favorável à ferrovia, pelo que seria interessante a
alteração da estratégia do governo para melhor integração na rede única
europeia.
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