domingo, 1 de agosto de 2021

Entrevista do ministro das infraestruturas e habitação em 23 de julho de 2021

Podcast com entrevista do ministro de infraestruturas e habitação:

https://www.publico.pt/2021/07/30/economia/noticia/entrevista-pedro-nuno-santos-vamos-conseguir-tirar-gente-automovel-autocarro-meter-comboio-1971996

 

Sem desmerecer no entusiasmo posto na defesa da ferrovia, gostaria de comentar alguns aspetos que me parecem negativos, relembrando primeiro os principais argumentos contra o “argumento imbatível” do senhor ministro.

A estratégia do governo recusa novas linhas de bitola UIC e restantes carateristicas de interoperabilidade, como o ERTMS, conforme os traçados das redes transeuropeias TEN-T do regulamento 1315/2013 . A oposição a essa estratégia baseia-se:

- na natureza mandatória dos regulamentos (isto é, são leis que vinculam os estados membros da EU),

- na insuficiência de vias únicas para responder em termos de capacidade ao mandado do regulamento 1316 de transferência de cargas rodoviárias para a ferrovia e marítimo (total de exportações pelos modos rodo e ferroviário em 2020: 33900 milhões de euros e 16 milhões de toneladas dos quais para Espanha 13000 milhões de euros e 10 milhões de toneladas, isto é, em termos de valor, as exportações para Espanha pelos modos rodo e ferroviário são inferiores a 50% do total)

- na maior eficiência energética de linhas novas com pendentes inferiores a 1,25% como definido nos regulamentos, o que as linhas existentes não cumprem, devendo considerar-se nas análises de custos benefícios os novos valores de penalização do incumprimento das metas de descarbonização, quer nas ligações aéreas como Lisboa-Madrid, quer nas mercadorias

 

 

Aspetos negativos da entrevista:

1 – dizer que a bitola é um bicho de sete cabeças para alguns, insistindo que não é um problema, é perfeitamente aceitável numa discussão enquanto expressão coloquial, mas dizer que há um argumento “imbatível”, o de que Espanha nada tem previsto em bitola UIC para ligação a Portugal, que “toda a gente percebe”, não será simpático para a inteligência de quem discorda porque há argumentos (ver pontos seguintes) contra esse argumento “imbatível”  que devem ser ponderados, até porque há outros problemas para resolver, quando se trata das ligações ferroviárias a Espanha e à Europa para além da bitola, como sejam o ERTMS e o tipo de alimentação elétrica, e porque infelizmente o pedido de uma audiência para debate destas questões foi recusado pelo senhor ministro

2 – na entrevista foi referido que na cimeira de outubro de 2020 o governo espanhol afirmou que não tem planos para ligar a Portugal em bitola UIC, mas o que se viu na conferencia de imprensa foi um primeiro ministro espanhol confundido pela recusa do primeiro ministro português em discutir a ligação de alta velocidade Lisboa-Madrid adiando-a “para um dia”. Igualmente se refere na entrevista que a ligação Madrid-Galiza é em bitola ibérica. É verdade que se mantem a bitola ibérica entre Ourense e Santiago (em travessas polivalentes e em traçado para alta velocidade) e o resto da Galiza, mas de Madrid a Ourense o que está instalado é bitola UIC. Igualmente prosseguem as obras de ligação em UIC do Y basco e da plataforma de Vitoria à fronteira francesa para mercadorias e passageiros . Idem no corredor mediterrânico e nas Asturias-Leon. É verdade que de Caceres para Badajoz está instalada bitola ibérica em travessas polivalentes em via única e plataforma dupla, como em Evora-Caia, mas em Plasencia-Caceres já é via dupla embora ibérica, e no troço seguinte, no sentido de Madrid, está planeada  a instalação de raiz de bitola UIC. A falta de coordenação com Espanha levou a que os investimentos tenham sido desviados para outras ligações entre regiões espanholas, apesar do orçamento para 2021 prever para a alta velocidade 3000 milhões de euros. Convirá ainda esclarecer se o projeto de via prevê em Évora-Caia velocidades de 300 km/h como afirmado na entrevista, porque o que foi divulgado anteriormente era que a velocidade seria de 250 km/h. Pede-se ainda o esclarecimento sobre a pendente máxima neste troço, se respeita o limite para mercadorias de 1,25% ou se o ultrapassa.

3 -  o problema não é o de Portugal só poder instalar a bitola UIC quando Espanha tiver planos para a instalar na direção de Portugal, o problema é que Portugal e Espanha são estados membros da União Europeia, e esta tem estratégias definidas coletivamente que se traduzem, sob forma juridicamente mandatória,  em tratados, diretivas e regulamentos que vinculam os estados membros. No caso das interligações ferroviárias na Europa, existem os regulamentos 1315/2013 e 1316/2013 que definem as redes transeuropeias TEN-T em Portugal para alta velocidade e mercadorias até 2030 : Sines/Lisboa-Caia + Lisboa-Porto/Leixões + Aveiro-fronteira para Salamanca e a obrigatoriedade de transferência de 30% da carga rodoviária de mais de 300 km para os modos ferroviário e marítimo até 2030. Recorda-se que também França incumpre a diretiva europeia ao atrasar a nova ligação Dax-Hendaye que permitirá libertar espaço-canal para os serviços de mercadorias,

4 – da entrevista se infere que a estratégia do governo de exclusividade da bitola ibérica cobre o médio prazo, pelo menos até 2050, o que contraria o regulamento 1315, e que as prioridades deste são radicalmente alteradas pelo governo ao propor a ligação de alta velocidade Lisboa-Madrid por Aveiro-Salamanca (o que está no regulamento é a ligação em alta velocidade e para mercadorias por Badajoz) e a ligação de Faro a Huelva ao corredor mediterrânico (esquecendo que este está a ser construído em UIC). Relativamente à ligação Porto/Leixões-Vigo evidentemente que foi uma falha não ter sido incluída no regulamento 1315 no projeto da rede “comprehensive” para 2050, o que poderá sê-lo, a exemplo do que fez Espanha com a ligação à Galiza, na revisão do regulamento prevista para 2023. Havendo já traçados bem definidos no contexto da EU para as redes transeuropeias com todas as carateristicas de interoperabilidade (incluindo bitola UIC e ERTMS) e o prazo definido de 2030, estar neste momento a substitui-los por outros introduz uma diversão no tempo que atrasará irremediavelmente a integração de uma nova rede ferroviária portuguesa na rede única europeia. Na minha vida profissional por mais de uma vez assisti  a jovens colegas ignorarem planos de ação escrutinados por pares ao longo de anos e proporem alternativas com pior compromisso técnico-económico. No caso vertente, atente-se que para uma velocidade de projeto de 300 km/h o troço Aveiro-fronteira será muito caro devido à orografia do terreno, o que será também o caso na ligação do Algarve a Huelva.

5 – o facto de as exportações pelos modos rodo e ferroviário para Espanha em valor serem menos de metade do total sugere um forte esforço na melhoria das condições de atravessamento dos Pirineus, o que implica uma coordenação com Espanha para programação da construção de novas linhas de mercadorias e alta velocidade do corredor atlantico interoperável com a rede europeia, coisa que o outro corredor atlantico gerido pelos agrupamentos europeus de interesse económico AVEP e RFC4 não garante nas condições definidas nos regulamentos. É verdade que o governo português conseguiu que o coordenador do corredor atlantico, Carlo Secchi,  se abstenha de criticar a sua estratégia, mas também é verdade que Portugal e Espanha não estão a cumprir os regulamentos que têm força de lei, o que é extremamente grave do ponto de vista jurídico.

6 – As ultimas deliberações da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu são no sentido do Green Deal e da estratégia Fit for 55 (redução das emissões de 55% até 2030). Em consequência, esperam-se penalizações para os modos mais poluentes e taxação das emissões de CO2 por valores substancialmente mais altos do que atualmente. Isto altera os resultados das análises de custos benefícios no sentido favorável à ferrovia, pelo que seria interessante a alteração da estratégia do governo para melhor integração na rede única europeia.

 

Informação adicional:

https://fcsseratostenes.blogspot.com/2021/07/contributo-de-um-grupo-de-empresarios.html


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