terça-feira, 17 de agosto de 2021

Viagem de comboio com o senhor ministro do Ambiente (e da Ação Climática)

 Tive de interromper o remanso da praia para ir a Lisboa. Entrei no comboio regional numa das estações do Sotavento algarvio. A um canto do compartimento da velhinha automotora diesel UDD 0450  (UDD - unidade dupla diesel), sentado discretamente, pareceu-me ver o senhor ministro do Ambiente (e da Ação Climática), com a sua calva, óculos de aros finos e barba aparada.

Como ele estava sozinho e ainda faltavam 50 minutos para a chegada a Faro, meti conversa com as trivialidades das promessas da eletrificação da linha do Algarve e da encomenda de novo material circulante. Disse-lhe que não havia muitos anos, apesar da estagnação dos investimentos na ferrovia, os carris desta zona do Sotavento, que eram da instalação primitiva, duma siderurgia belga, tinham sido substituidos, bem como a maioria das travessas.

O senhor ministro respondeu-me muito bem, satisfeito com a politica ferroviária. Vinha de Vila Real de Santo António,  depois de em Monte Gordo ter visitado o viveiro de plantas dunares.

- Vamos dotar todas as dunas das nossas costas com vegetação que estimule o crescimento das dunas e vençam a erosão. E vamos intervir na reflorestação, por exemplo no pinhal de Leiria.

Firme nas convicções, como sempre, pensei eu, enquanto os motores da velhinha automotora desenvolviam honesta e porfiadamente, o binário de arranque pela rampa acima.  Depressa se atingiu um trainel, e os motores sossegaram, mantendo a automotora um andamento vivo graças à inércia e ao pouco atrito das rodas com os carris, à aproximação de Tavira, com o mar à vista, atravessando o estuário e a ponte centenária sobre o Gilão. 

- Mas senhor ministro, o Estado detem menos de 5% da área florestal, e há que prevenir os incendios, concluir o cadastro, comprar aviões de descarga de água de 12 toneladas (os Canadair transportam 6), dinamizar empresas de serviço público para corte, recolha e aproveitamento energético da vegetação, rever a politica florestal (a senhora ministra da agricultura devia ouvir melhor os técnicos) alargar os aceiros, manter uma cobertura razoável de vigilancia direta, com pessoas com binóculos, à antiga, enquanto os drones, o controle por satélite e os circuitos de TV não se afirmam.

- Evidentemente, caro senhor, mas nós já temos os estudos e as melhores soluções e somos pioneiros e os professores na união europeia da neutralidade carbónica em 2050, fomos os primeiros.

- O senhor ministro não se esqueça que só em 2050 poderemos dizer isso, e que o nosso consumo de eletricidade é uma pequenissima fração do consumo alemão, por exemplo...

- Não, não, o relatório intergovernamental das alterações climáticas IPCC já esclareceu, as datas das alterações estão a ser antecipadas, e nós somos pioneiros e professores na descarbonização.

Felizmente o comboio já estava em Tavira e muita gente entrou, rodeando o senhor ministro, que todavia continuou a falar comigo.

- Já fechámos as centrais de carvão e vamos continuar.

- Tambem fecharam a refinaria de Matosinhos, um tiro nas exportações e uma ineficiencia para o aeroporto de Pedras Rubras, que ficou sem o oleoduto. num ano em que se inaugurou na Alemanha uma central de  carvão de alto rendimento, talvez tivesse sido melhor preparar um plano para de forma faseada e calma ir fazendo o fecho sem quebras abruptas de atividades económicas, como o transporte, por exemplo.

Um dos presentes interrompeu a resposta desculpabilizante, que o senhor ministro costuma debitar nestes casos  com as verbas para o PRR, para o questionar sobre os prazos das melhorias da linha do Algarve, não apenas a eletrificação. Parecia bem informado, reivindicando a duplicação da linha, aproveitando a maior parte do traçado, continuando a servir os centros das povoações, servindo também o aeroporto de Faro, e utilizando material circulante ligeiro, do tipo tram-train. Também sabia que o concurso para eletrificação de Faro a Vila Real tinha sofrido um atraso e um aumento de custos (enquanto não for mudada a lei da contratação pública são coisas que acontecem). E quanto à proposta do senhor ministro das Infraestruturas de ligar as capitais de distrito, talvez houvesse investimentos mais urgentes, no âmbito dos planos da Comissão Europeia para as redes transeuropeias da ferrovia para passageiros e para mercadorias. Neste caso, já está prevista na rede TEN-T "comprehensive" ou complementar para 2050 a ligação em via dupla de Lisboa a Beja e Faro, com seguimento para Huelva, mas vai ser uma obra cara, vai ter de furar a serra do Caldeirão.

Rapidamente o senhor ministro do Ambiente (e da Ação Climática) mudou o rumo da conversa para o plano de reforço do abastecimento de água do Sotavento, com base num novo furo junto da foz do rio Chança, mesmo ao lado da barragem espanhola que ainda não se integrou na convenção de Albufeira..

- Senhor ministro, um furo em vez das novas barragens da ribeira do Vascão e da Foupana, E se as associações ambientalistas estão sempre a falar na seca, para quando um plano para centrais de dessalinização?

- Nós no ministério já analisámos os estudos e a melhor solução é a da engenharia natural, deixando os cursos de água correr livremente, para não destruirem a natureza.

- Longe de mim a ideia de destruir a natureza, mas a análise histórica indica que o assoreamento de um  rio e da  sua foz é um acontecimento bastante destrutivo que a engenharia, não propriamente natural mas corretiva, poderá evitar. Faz parte da essencia da engenharia a capacidade de transformar a natureza para o bem comum, se chama a isso destruir a natureza ...

- Não, os estudos das associações ambientalistas são claros, a melhor solução é a engenharia natural, que vamos aplicar por exemplo no Mondego, para evitar as cheias.

- Mas senhor ministro, só conseguimos evitar as cheias com capacidade de retenção, nesse caso com a nova barragem de Girabolhos.

- Barragens não, porque a água não nasce nas barragens e é de água que precisamos e ela evapora-se nas barragens (claro, e depois forma vapor de água na atmosfera , nuvens, e cai sob a forma de chuva...)

Estava pois a discussão num impasse quando a automotora chegou a Faro e os passageiros, nós incluidos, tivemos de fazer o transbordo para o Alfa que nos esperava.

Deitei uma olhada ao aeroporto, não muito longe, imaginando quão dificil seria convencer as pessoas de uma ligação ferroviária em viaduto sobre a ria de Faro ao aeroporto e à universidade, de um oleoduto entre o aeroporto e a estação de Loulé, da duplicação da linha para norte e para sul da atual estação, desenvolvendo na parte sul o apoio ao porto. Mas era apenas imaginação, enquanto nos acomodávamos no Alfa, por sorte lado a lado, o senhor ministro e eu.

O orgulhoso Alfa Pendolino lá foi fazendo o seu  percurso em via única, recolhendo os passageiros do Barlavento, em velocidade contida que nalguns pontos a via acusava intervalos maiores de manutenção.

- Voltando às barragens - retomou o senhor ministro do Ambiente (e da Ação Climática) - os estudos que temos no ministério dizem que foi tempo para as barragens, agora as energias renováveis são a eólica e a solar, assim atingiremos antes de 2050 a neutralidade carbónica, somos pioneiros e os professores da Europa, e vamos fabricar muito hidrogénio.

E assim fomos prosseguindo a viagem, agora já em plena serra algarvia, com demasiados troços em que o Pendolino tinha de se conter a menos de 40 km/h. E não bastará renovar a via, o assunto é mais grave por causa das curvas, terá de ser um novo traçado lá está, o tal plano das redes TEN-T "comprehensive" para 2050... Mas falta fazer os projetos, para que não aconteça o que está a acontecer com o traçado da nova linha Lisboa-Porto. Não se sabe se passa por Coimbra, se desce pela margem esquerda ou direita do Tejo... e sem projetos feitos e sem análises de custos benefícios não há financiamento comunitário...

- Senhor ministro, está sempre a citar conclusões de estudos, mas não mostra os pormenores dos cálculos. Já foi assim com a linha circular do metro, apesar das leis da Assembleia da República e das determinações da Assembleia Municipal. Sabe, isso tem um nome, é o "magister dixit" medieval, que acabou com o método científico, observar, pôr hipóteses, testar, experimentar, escrutínio entre pares...

- Não, caro senhor, nós somos os professores da Europa na descarbonização, somos pioneiros.

A barragem de Santa Clara a Velha já tinha ficado para trás, e o Pendolino pôde finalmene lançar-se a mais de 200km/h nos novos troços.

- Senhor ministro, para quando a nova linha para mercadorias de Sines para Grandola Norte? é que custa muito dinheiro eliminar as pendentes para Ermidas. Pena é não se fazer já com bitola UIC, isso é que seria começar a ligar Sines à Europa, mas o senhor ministro das Infraestruturas não deixa.

- Claro, nós no partido temos sempre as melhores soluções.

Ao passarmos no novo troço do estuário do Sado veio à baila uma das últimas intervenções do senhor ministro do Ambiente (e da Ação Climática), que se iriam colocar 3 milhões de metros cubicos de areia a sul do 5º esporão da praia da Cova na Gala, mas que isso não impediria a adjudicação do novo sistema bypass de transferencia por bombagem de areia desde um ponto no mar a norte do molhe norte da foz do Mondego, por conduta por baixo do leito do rio e deposição de areia na praia da Cova.

- Senhor ministro, na zona de Coimbra as pessoas são muito sensíveis aos exemplos que vêm da Austrália, já foi assim com o malfadado metro do Mondego, ou metrobus, e agora vêm com o sistema de bombagem de areia da Gold Coast na Austrália, uma espécie de Miami em ponto bastante grande, e "artificializado" como o senhor ministro diria. Pode ser que funcione bem, embora a manutenção deva ser cara. Mas eu diria, não sendo especialista de hidráulica, que se a areia falta a sul do 5º esporão, será porque a corrente norte responsável pela retirada da areia quanto há nortada (note que a corrente dominante é de oeste, que arrasta a areia para as praias)  está alinhada entre o molhe norte da foz e o 5º esporão. Isto é, se se ampliar o molhe norte  a retirada de areia da praia a sul do 5º esporão será bastante mais a sul, implicando a construção de um 6º esporão, mas eu sei que esporões para o senhor ministro são "artificializações". Desculpe insistir nisto, mas ampliar o molhe norte teria de ser mais para o interior do mar, de modo a atingir fundos maiores e assim evitar a restinga atual que é geradora de belas ondas para os surfistas, mas que vira traineiras e mata pescadores. E não deixo de lhe recordar que as areias da Caparica se conservariam se se fizesse o fecho da Golada.

Rapidamente chegámos à estação do Pinhal Novo, que numa primeira fase poderia ser aproveitada para término da desejada linha Lisboa-Madrid em bitola UIC e ERTMS (então, quando se considerará que Lisboa não é só a margem norte?). Depois de uma rápida passagem pelas proximidades da Auto Europa o Pendolino hesitou um pouco no Fogueteiro na sua coordenação com os suburbanos da FERTAGUS, que um troço comum nunca é um troço de capacidade infinita como os decisores pensam (vejase a ideia de ligar a linha de Cascais à linha da cintura, felizmente abandonada), mas lá se venceu a dificuldade. 

Saímos na estação de Entrecampos, aproveitando eu para relembrar ao senhor ministro que não tinha valido a pena gastar dinheiro na ligação do Rato ao Cais do Sodré para fechar a nova linha circular, porque a margem sul já está ligada ao metro na estação de Sete Rios e na estação de Entrecampos, faltando melhorar a correspondencia em Roma Areeiro. Mas o senhor ministro não quis saber.

Pelo contrário, esclareceu-me que o grupo que se tinha juntado à volta dele à chegada era uma equipa de comunicação de jovens que tinham escolhido para tema do seu doutoramento em comunicação pública uma série de reportagens em que simulavam discussões de ministros e secretários de Estado com o público sobre políticas públicas e sobre a avaliação dos cidadãos à atuação dos ministros e secretários de Estado em assuntos concretos. E para isso contratavam atores que faziam o papel do governante  enquanto disfarçadamente a equipa filmava a conversa que depois seria passada em podcasts e no youtube. Tudo isso podia contribuir para o governo por um lado e o público pelo outro entenderem melhor os erros e as omissões das decisões.

Aquele que eu pensava ser o senhor ministro do Ambiente (e da Ação Climática) calmamente retirou a sua falsa calva e os óculos caraterísticos, conservando, curiosamente a barba aparada. E despedimo-nos afetuosamente, neste país pioneiro e professor de descarbonização.



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