Mantem-se em vigor o artigo 77 da lei do orçamento do Estado.
Empresas públicas, como o metropolitano de Lisboa, cujas receitas operacionais sejam inferiores às despesas, não podem pagar complementos de reforma aos seus reformados.
Mesmo que esse pagamento estivesse contratado por convenções coletivas de 1973.
Ainda que a regra seja que os contratos são para cumprir e que quando não se cumprem o credor pode exigir ressarcimento.
Apesar de existir legislação europeia que prevê o auxílio oficial a empresas que por insolvencia deixaram de poder pagar os seus planos de pensões.
A burocracia juridica do nosso país tem paralizado as ações que têm sido interpostas.
O governo e os seus propagandistas têm apresentado os reformados do metro como privilegiados que sempre tiveram rendimentos superiores aos outros cidadãos e cidadãs.
Não é verdade, tendo em conta que a maioria dos trabalhadores do metro é qualificada, por razões ligadas à segurança das circulações; mas compete à acusação, para o provar, apresentar dados que cubram toda a realidade e não apenas casos particulares.
E mais valia o governo e os seus propagandistas trabalharem para que a maioria dos portugueses tivesse empregos e vencimentos mais elevados, como diz o artigo 58 da Constituição.
Mas não, as greves do metro têm ajudado o governo e os seus propagandistas a virar a opinião pública contra os seus trabalhadores e reformados. Como um jogador de judo que aproveita a força da indignação de quem protesta para o lançar na condenação pelos passageiros.
Por isso, depois de um ano em que, em média, os rendimentos mensais de cada reformado foram reduzidos de 640 euros, mais uma vez nos encontrámos no átrio de correspondência da estação Marquês de Pombal, na esperança de que as televisões nos mostrassem, que informassem nos seus telejornais o que é ver os seus rendimentos reduzidos, para além dos aumentos de impostos e dos cortes em benefícios sociais, de 640 euros.
Juntámo-nos talvez 300. Cerca de 25% do nosso universo. Que, seguindo a lei natural, se vai reduzindo paulatinamente (o "privilégio" dos complementos de reforma cessou, por contratação coletiva, para as admissões posteriores a 2004). A empresa poupou neste ano cerca de 14 milhões de euros, equivalente a 16% dos seus encargos com pessoal; ou 50% dos custos de fornecimentos e serviços externos; ou 0,8% do serviço da dívida.
Os reporteres das televisões já chegaram. Registam as declarações emocionadas dos oradores, os delegados sindicais, o membro da comissão de reformados, da comissão de trabalhadores. Que o senhor secretário de Estado não se dignou responder à proposta de aceitação de um corte de 9% sobre os complementos de reforma, equivalente a uma TSU, para constituição de um fundo de pensões. Está obsecado pela redução dos custos como preparação para a privatização ou, como agora se lembrou de dizer, a sub-concessão.
Os reporteres vão ouvindo um ou outro de nós.
Eu vejo passar os passageiros. Não mostram enfado connosco, embora certamente se lembrem dos incómodos das greves. Terão emprego, mas estará seguro? Terão os privilégios dos trabalhadores das empresas públicas? Alguns dos que passam, mais jovens, estudantes, tiram fotografias com os seus telemóveis e sorriem. Pergunto-me como será daqui a 30 ou 40 anos, se receberão as suas reformas, se terão os serviços sociais assegurados, ou se predominou a lei da selva em que só os mais fortes resistiram. Lembrar-se-ão deste grupo de velhos, incómodo para as finanças do metro e do país?
- José, como vai?
- Lá continuo nos Brejos de Azeitão . Tenho de tomar conta do meu neto. A minha filha está na Suiça, com o marido e a outra filha. Não ficaram contentes com a valorização do franco suiço porque recebem em euros.
- João, está mais gordo, que é feito? Tem visto o seu amigo de Paris? (brinco com ele, João foi agredido, antes do 25 de abril, numa assembleia nas oficinas do metro, por um agente da PIDE; anos depois, de visita a Paris, deu de caras com ele)
- Nem me fale nisso. Estou à espera que se resolva esta questão dos complementos para ver se vou a Paris ver o meu filho. Não está contente. Tem uma lojinha de informática em Chantilly mas estão sempre a aumentar-lhe os impostos, para manter a valorização da zona.
- Manuel, então?
- Então, estou à espera que o governo mude, para ver se nos pagam ao menos uma parte, para eu pagar as dívidas. Senão desapareço, tenho vergonha se me puserem na rua.
Pergunto a todos com quem falo quantos anos descontaram para a segurança social. A resposta dos não licenciados (havia 40.000 licenciados em Portugal quando entrei para o metro) é sistemática: 41 ou 42 anos de carreira contributiva. São acusados de se terem reformado muito cedo, aos 55 anos. Eu próprio lhes pedia para continuarem, que a sua experiência era útil, mas desarmavam-me com a resposta: comecei a trabalhar com 14 anos, e agora a empresa dá-me a oportunidade de receber os complementos de reforma, vou aproveitar.
Eu penso que os complementos de reforma também são uma compensação por esta barbaridade, pela exploração de trabalho infantil, quando as crianças deviam estar na escola. Muitos dos trabalhadores do metropolitano tinham frequentado escolas técnicas, mas não tinham concluido os cursos. A sua qualificação tinha sido obtida através de ações sistemáticas de formação na própria empresa ou pagas por ela. Muitos dos licenciados do metro orgulham-se da sua ação formativa, de devolver aos beneficiários parte do que tinham recebido na sua juventude privilegiada.
Falam agora os secretários gerais da CGTP e da UGT. Nalguma coisa hão-de convergir... assim convergissem noutros fatores decisivos.
Alguém lembra que hoje, dia 27 de janeiro, se celebram os 70 anos da libertação de Auschwitz pelo exército soviético. Não evito a associação de ideias, apesar da excessiva diferença, quando oiço o apelo dos oradores à resistência, até ao fim, quando eles falam na morte dos velhos por falta de assistencia, na degradação do serviço nacional da saúde e no desvio dos dinheiros públicos para subsidio dos bancos, para a ausencia da taxação das transações financeiras. Nas minhas memórias pessoais está uma revista de propaganda alemã, com data de abril de 1945, que circulava em Lisboa. Uma fotografia de uma fila de racionamento em Berlim, e a legenda engajada: o heroico povo alemão resistindo aos bombardeamentos da aviação aliada. Esquecendo, claro, o drama dos campos de concentração. Aliás, no ano anterior, os organismos internacionais tinham visitado o campo de Teresienestad e concluido que respeitavam a convenção de Genebra. Intolerável, a propaganda dos governos e dos seus arautos.
Fala agora o deputado do PCP. Já tem aparecido em outras reuniões. Repete o seu discurso de apoio, que os trabalhadores não podem ser a peça mais fácil de afastar. Que é preciso parar a fúria privatizadora do governo.
Mas como ganhar os eleitores e os passageiros? Como organizar a alternativa ao governo? porque há alternativa. Mas os partidos e as organizações de cidadãos não se entendem num programa comum contra as medidas da troika e dos seus serventuários.
Passa um dos reporteres ao pé de mim e eu interrompo-lhe o passo.
- Fazemos ao contrário, digo eu, faço-lhe eu a entrevista, o que pensa do nosso caso? Quero saber a sua opinião.
O moço rapidamente ultrapassa a surpresa e responde de um folego:
-É uma injustiça.
É a minha vez de ficar surpreendido.
- Mas vocês na comunicação social estão sempre a dizer que nós somos uns privilegiados, como diz o João Cesar das Neves, ou o José Manuel Fernandes no Observador.
- Claro, a imprensa de direita é muito forte e bem organizada. Claro que faz o jogo do governo e o amplia. Mas a esquerda também emite a sua opinião. Até o Pacheco Pereira vos defende.
E esta? Que surpresa agradável. Pelo sim, pelo não, não digo o nome da estação de televisão. Não vá alguém achar que um reporter não pode pensar pela cabeça dele e solidarizar-se com uns velhos.
Sem comentários:
Enviar um comentário