A rapariga do tuk tuk
O miradouro de Santa Catarina faz parte da lista de locais
por onde passeio a inutilidade da minha reforma.
Gosto de ver aquela pedra, embora não admire o mito do
Adamastor, e de espreitar o Tejo, parcialmente encoberto mas visível parte do
estuário e a barra.
O miradouro é agora ponto de encontro de turistas e de
juventude desocupada. E também de reformados, como eu, que me iludo que combato
a inutilidade que referi com tentativas de escrever qualquer coisa que me ligue
à minha vida ativa passada.
Por isso nos meus passeios de reformado vou pensando em
histórias que mesmo remotamente possam ser associadas às estações de metro
próximas.
Pensei que a rapariga do tuk tuk que estacionava na parte
sobranceira do miradouro, não longe da estação Baixa-Chiado, pudesse ajudar-me.
Sentada no seu veículo, de blusa branca contrastando com o
rosa do tuk tuk, calções claros e ténis brancos, parecia aguardar clientes, por
entre a miríade de turistas que por lá passava.
De óculos escuros, o cabelo apanhado atrás, a cabeça
orientada para a ponte 25 de abril a ocidente,
pousado nos joelhos um smartphone, cheio de ligadores e de fios
abraçados por elásticos, certamente de elevada capacidade, em termos de
processamento e de velocidade de transmissão, os dedos de ambas as mãos
moviam-se com presteza e os lábios pareciam acompanhar uma canção, mas não era
música que ela ouvia.
Acordei com ela um passeio até Belém, à zona dos museus, e
volta. Eu queria estabelecer a relação entre o serviço dos tuk tuks e a
utilização do metropolitano pelos turistas naquela zona da Baixa. E ressaltar a
falta que faz uma ligação rápida entre o Chiado, com o seu museu de arte
contemporânea e igrejas ricamente barrocas e setecentistas, e os museus da zona de Belém, Etnologia,
Marinha, Arqueologia, Coches, passando pelo museu de Arte Antiga.
Estranhei o ligeiro atraso com que respondia às minhas
perguntas, como aquelas correspondentes de televisão nas reportagens por
satélite, e o sincopado com que falava, mas como lhe notei um ligeiro sotaque,
abrindo muito as vogais no fim das palavras e arredondando anasaladamente os
ditongos, ao princípio atribui esse atraso à dificuldade natural de uma jovem
estrangeira com o português.
Enquanto ela conduzia, fui conseguindo perceber que vinha de
Kazan, no Tartaristão, filha de mãe russa e pai tártaro.
Sorriu contente quando lhe disse, Kazan, Kazan, gritava Ivan
o Terrível no filme de Eisenstein.
- Sim, sim, fomos conquistados no século XVI, por Ivan o
Terrível.
Tatiana, sempre com o seu sotaque e a fala sincopada,
respondendo depois de um hiato de segundos e movendo continuamente os lábios,
explicou-me porque decidira abandonar a sua terra, depois do assassínio do pai,
pequeno empresário, por máfias dos negócios. Não encontrara companheiro que
valesse a pena para enfrentar o caos, a anarquia total que se instalara. Todos
os jovens eram desinteressantes e caiam no alcoolismo antes dos 30 anos.
Passara pela Grécia, pela Itália, por Espanha, e agora estava em Portugal.
Tirou os óculos e virou-se brevemente para trás - agora
podemos falar mais à vontade, estão no intervalo - Apreciei os seus olhos
verdes, provavelmente devidos à mãe, e as maçãs do rosto risonhas e salientes,
do seu lado asiático. - Graças à informática e ao meu jeito por línguas
consegui sempre ganhar a vida e viajar muito. Uso a rede de alojamento couchsurfing.
Gosto de conhecer as pessoas. Gosto dos portugueses. Estive nos Açores 6 meses.
Agora em Lisboa monto empresas start up com aplicações para smartphones em
plataformas heterogéneas geograficamente dispersas. Já tenho ganho alguns
concursos.
Percebi que estava diante duma empresária de sucesso no
campo da informática de programação Android e Java, utilizadora frequente da rede do
metropolitano, entre a residência numa comunidade russa na zona de Arroios, a
incubadora de start ups perto do Terreiro do Paço, e a base do seu tuk tuk no
Chiado.
Num instante demos a volta à praça de Belém e Jerónimos.
E se já estava admirado, mais admirado fiquei quando ela me
explicou que tinha estado a servir de intérprete, daí o movimento contínuo dos
lábios atrás de um microfone direcional com filtro de ruídos ambientais, numa
reunião de negócios, ou melhor, numa teleconferência, entre um importador russo
e um exportador americano, cada qual no seu país. Daí as suas respostas
sincopadas e diferidas. A plataforma de comunicação tinha sido desenvolvida por
ela.
Mas não era tudo. Tinha encontrado num dos concursos de
start ups a sua alma gémea, um jovem português que neste momento se encontrava
na Califórnia, a trabalhar numa subsidiária da Google no projeto dos carros de
condução automática. Por isso usava aqueles óculos escuros, na realidade um
minicapacete de realidade virtual em cujas lentes podia ver as recomendações do
processador da condução automática, com base nos sensores de bordo e na ligação
de localização precisa por GPS, em função do contexto que rodeava a trajetória
do tuk tuk. Era um programa em ensaios reais, subrotina do programa de condução
automática integral.
Tatiana era então quase um robô multitarefa com janelas de
tempo partilhado. Uma criação espantosa da Natureza.
Que me conduziu em segurança de volta à pedra do Adamastor.
Despedi-me com um sonoro - Zdorovia, Tatiana - na esperança
de um abraço apertado e dois beijos eslavos.
Mas não, Tatiana riu-se muito, os olhos verdes rasgados
sobre as maçãs do rosto tártaras, acenando com o braço esquerdo em movimentos
rápidos e circulares enquanto com a mão direita atendia o recomeço da reunião
de negócios russo-americana.
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