Com a sua bonomia, o senhor primeiro ministro encenou a transferencia da propriedade (não da dívida) da Carris para a Câmara de Lisboa e chamou-lhe o regresso a casa. As pessoas gostam de ideias como esta, de regresso a casa. Freudianamente será a segurança do conforto maternal, se o indivíduo em estudo se sentir inseguro, e como tal sujeito a reações impulsivas em situações de perigo ou emergencia. Mas o assunto é uma questão técnica, não psiquiátrica, nem sociológica, nem política. O problema é termos fontes de origens, espalhadas por uma vasta região metropolitana (não municipal, nem sequer, pelo seu peso no orçamento de investimentos nacional, intermunicipal) que necessitam de encontrar uma rede de ofertas para as deslocações da população casa-emprego. Porém, as pessoas gostam mesmo de ouvir falar assim. E é verdade, no tempo da bancarrota do fim do século XIX e nos 3 primeiros quartos do século XX, a Câmara tinha concessionado a Carris. Com o 25 de abril pôs-se a questão se se continuava isso ou se se nacionalizavam as grandes empresas de transportes com o objetivo de formar, nas áreas metropolitanas, operadores públicos únicos, reunindo as valências das várias empresas (ou como diz o atual presidente da administração da Carris, aproveitando sinergias, embora uma Carris individualizada seja o antónimo de sinergia, qualquer coisa como entropia, ou desordem, falhanço na construção de um sistema, queda na ineficiência geral, isto para não criar um neologismo rebarbativo como antiergia ou anaergia). Tal objetivo de operador único, à imagem de Paris, Barcelona, Bruxelas, Milão, encontrou oposição e a Carris manteve-se individualizada. Seria interessante investigar historicamente por que razões houve tanta oposição ao operador único. Eu diria que terá sido porque os senhores bem postos da altura se terão sentido ameaçados nas suas esferas de atividade e de poder pessoal, os meus autocarros, os meus elétricos, os meus esquemas tarifários, as minhas áreas de influencia... Mas confesso que a minha observação não é historicamente fundamentada. Posso porém servir de testemunha junto de algum investigador histórico que se interesse pelo tema. E eis o meu testemunho, que retirei das minhas memórias (ficcionadas, claro, que ideia aquela, um ministro a falar comigo, como quaisquer memórias, que não quero conflitos seja com quem for, senhor bem posto ou não):
telefonaram do ministério
Quando
cheguei a casa a minha mulher deu-me o recado.
-
Telefonaram do ministério. Querem falar contigo.
- Não
disseram para quê?
- Não, só
pediram para ires falar com o chefe de gabinete do ministro o mais depressa
possível.
- Engraçado,
não conheço lá ninguém.
Estávamos no
princípio de julho de 1975 e a instalar os últimos componentes do sistema de
travagem automática por ultrapassagem de sinais vermelhos.
Tinha sido
um sonho dos nossos colegas mais velhos, especialmente do diretor da então
direção de desenvolvimento, sempre preocupado com o conceito de serviço da
comunidade e da segurança de exploração, antecipando a política intensiva de
proteção automática dos comboios em função dos sinais que se verificou pouco
anos depois em França, na sequencia de uma série de acidentes por incumprimento
da sinalização ferroviária e dos limites de velocidade à aproximação das
estações.
O próprio
fabricante do sistema acabou por beneficiar com o nosso contrato, não só porque
o aplicou em França como também nos metropolitanos do México e de Caracas.
Tive uma
breve conversa com o chefe de gabinete do ministro Campos do Olival.
Conhecia-o
de vista, por o ver num stand de uma das primeiras festas do Avante, no Jamor.
Queixei-me
do boicote de peças que algumas firmas inglesas, americanas e alemãs faziam,
dificultando a manutenção;
que
reparávamos nós próprios as placas eletrónicas dos reguladores de tensão do
alternador do grupo gerador de emergencia;
que
estávamos a modificar os canais de saída das máquinas de bilhetes para as
adaptar à largura de 42 mm
dos bilhetes para compatibilidade com os
novos obliteradores que a Carris tinha encomendado (não veio a concretizar-se
neste tempo a validade intermodal dos bilhetes);
que a GE
tinha deixado de bobinar os motores elétricos dos comboios por falta de matéria
prima, mas que o metropolitano o fazia agora;
que os
trabalhadores da GE, abandonados pela casa mãe, até desenvolviam trabalho
conjunto connosco, como a reparação dos pequenos motores das máquinas de
bilhetes; aplicavam os contactos dos platinados nos interruptores centrífugos
dos motores (técnica ultrapassada entretanto pela eletrónica de potencia);
que tínhamos
de lançar mão de expedientes para conter as importações, já que eramos uma
empresa de serviços, não de produção de bens transacionáveis;
que nos
concentrávamos para evitar acidentes como o das agulhas de entrada de Santa
Apolónia, por erro de ligações no controle da posição das agulhas, em que
morreu gente;
ou o
acidente também mortal com o autocarro da Carris, com o êmbolo do acelerador
preso por falta de filtragem de ar e introdução de poeiras que prenderam o
êmbolo em aceleração fatal;
que
estávamos a instalar o sistema de travagem automática dos comboios por
ultrapassagem de sinais vermelhos e que estávamos a ajudar os colegas da CP a
fazer o regulamento de sistema análogo na linha de Cascais, mais antigo mas
ainda não regulamentado nem em serviço, e que por causa disso tinha acontecido
recentemente uma colisão entre um comboio e uma caravana de venda de bifanas
numa passagem de nível;
mas
concretamente, porque me mandaram chamar e como se lembraram de mim?
O ministro
Campos do Olival explicou-me que a mulher de um capitão de abril, militante do
partido, me tinha recomendado.
Que tinham
feito a nacionalização das empresas de transporte público mas que queriam
otimizar a sua exploração e desenvolvimento e para isso precisavam também de
nomear a administração do operador único de transportes, desde que fossem
técnicos que se identificassem com a revolução.
O ministro
Campos do Olival era um dos mais destacados membros da ala renovadora do
partido comunista, e ainda não tinha perdido o idealismo e ganho a desilusão
que o fez abandonar o partido e aderir a outro posicionado bem mais à direita.
Insistiu no
carater único do operador que se pretendia, o que vinha ao encontro das
conversas que tínhamos na direção de desenvolvimento com o seu diretor, com os
olhos postos na experiencia francesa da RATP e no seu sucesso como serviço
público.
Eu tinha
encontrado dias antes no metropolitano a Madalena Escoural, colega mais nova de
um curso do IST que casara com o colega também do IST e da academia militar, o
aluno melhor classificado do seu curso.
Ela deve ter
achado graça à comparação que eu fiz entre um sistema de transportes
metropolitano assegurado por Fiats 126 em grande quantidade e um sistema
moderno de metropolitano, em termos de eficiência energética, de tempo de
percurso casa-emprego e de ocupação da superfície.
Dois anos
antes, como oficial miliciano, tinha transmitido ao marido o meu pelotão de
futuros rádio telegrafistas quando o seu grupo de tenentes recem formados da
academia militar desembarcou na escola prática de transmissões do Porto, perto
do jardim da Arca d’Água.
Tivemos
longas conversas sobre a guerra colonial e a posição que os jovens licenciados
com conhecimentos técnicos deveriam tomar para o progresso económico e cultural
do país.
Ele dizia-me
sempre que nada se poderia dizer sem primeiro estar em Angola ou Moçambique.
E eles
foram. Quando voltaram, capitães, o seu discurso era outro e zanguei-me
amigavelmente quando fizeram a revolução sem me informarem do que estavam a
fazer.
Por isso,
era natural que gostasse de mim e o meu nome acabasse por ser proposto a Campos
do Olival.
Disse ao
ministro que não me considerava um condutor de homens, mas que tinha a
veleidade de pensar que sabia como trabalhar em equipa, que sabia motivar as
pessoas e demonstrar-lhes as ineficiências dos exageros infantis, normalmente
por seguimento cego de dogmas, quer fossem de esquerda quer fossem de direita.
Indiquei-lhe
dois nomes de colegas que gostaria de ver no mesmo grupo diretivo do operador
único.
Poderíamos
não ter grande experiencia, mas saberíamos conquistar a confiança dos colegas
mais velhos e intensificar a nossa própria formação através de contactos com a
realidade dos países mais avançados na área dos transportes públicos.
Não pude
deixar de pensar como era curioso que
até muito recentemente os senhores bem postos e bem instalados na vida, seguros
das regras de comportamento e de promoção social, mantinham uma paz podre em
Portugal, com algum crescimento económico, até com alguma evolução social e
respetiva legislação, com isolamento internacional e uma intensa repressão
politica e cultural, não obstante a pequena abertura marcelista, enquanto, e
apesar disso, se morria e se matava na guerra colonial e se prejudicava o
desenvolvimento dos países africanos.
E agora,
jovens inexperientes eram chamados para as administrações de empresas nacionalizadas,
com formação técnica e com alguns conhecimentos sobre o negócio das respetivas
áreas, é certo, mas apenas com o aval da sua fidelidade aos ideais da revolução
e da vontade do governo provisório, dos seus partidos e do movimento militar
de bem
fazer o
serviço público.
No fundo,
que havia que espantasse?
Que
critérios são normalmente usados por esse mundo fora?
O
conhecimento através de filiações partidárias, religiosas, de grupos de
pensamento.
Raramente
por concurso ou por habilitação.
E mesmo
assim, se pensarmos que Fernando Pessoa ficou mal colocado num concurso para
bibliotecário e que Teleman, um dos maiores músicos do barroco alemão, só
ocupou o cargo a que concorreu porque o primeiro classificado, hoje quase
esquecido, desistiu, concluiremos que a seleção dos dirigentes é difícil.
Até porque,
quer se trate de indigitação ou de concurso, quem decide desconhece normalmente
o negócio ou nunca o praticou.
Além de que
subsiste um grave equívoco: não são os dirigentes que movem uma empresa, são as
equipas de gestão e os grupos de trabalhadores que atingem resultados, por mais
fidedignos ou alheados da realidade que sejam os “rankings” das empresas
analistas e as variações das cotações bolsistas ou da opinião pública. Mais
vale escolher bem um grupo de gestão que institua uma gestão participativa numa
empresa do que, messiânicamente, esperar por um líder salvador.
No dia
seguinte o chefe de gabinete de Campos do Olival telefonou-me a dizer que
tinham surgido umas dificuldades, que possivelmente a minha colaboração seria
pedida noutra área, na administração da Rodoviária Nacional que estava reunindo
as principais empresas de camionagem do país, a maior parte delas
descapitalizada pelos seus donos que emigravam para o Brasil como D.João VI.
Estava-se no
verão quente de 1975.
Morria-se em
assaltos a sedes de partidos de esquerda por esse país fora, havia ameaças de
interrupção de estradas e de descida de militares do Porto a Lisboa.
Inconformados
por não poderem deter as rédeas da reforma agrária, os dirigentes do partido
socialista, invocando os perigos da coletivização soviética (e contudo, os
ministros e secretários de estado no governo nomeados pelo partido comunista,
como Campos do Olival, eram o mais pacífico que poderia imaginar-se; por outro
lado, Brezniev já tinha tranquilizado Gerald Ford que não interviria)
organizaram a célebre manifestação da Alameda (“viemos com amor, não viemos de
trator”, era uma das palavras de ordem).
O chamado
Grupo dos Nove do movimento militar, em que se destacava, sábio, Melo Antunes,
conseguiu equilibrar as coisas e conter a fúria anticomunista .
O governo
provisório de que fazia parte Campos do Olival caiu e foi substituído pelo
quinto governo provisório, ainda chefiado pelo engenheiro militar Vasco
Gonçalves, com a missão clara de gerir a coisa pública enquanto, durante os
restantes meses de férias, o Grupo dos Nove, a sua assembleia do movimento
militar e os partidos à direita do
partido comunista se entendiam sobre o sexto governo provisório.
Como bom
engenheiro, Vasco Gonçalves deu prioridade à preparação dos processos para o
desenvolvimento das infraestruturas cujo programa já vinha de trás, como o
aproveitamento do Alqueva, o complexo portuário e petroquímico de Sines, o novo
aeroporto de Rio Frio, a legislação sobre a reforma agrária…
Mas não
houve tempo para o operador único dos transportes de Lisboa…
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