Nos anos 60 do século passado, fazia
parte dos cursos das engenharias, no penúltimo ano, a cadeira de Economia. O engenheiro
Daniel Barbosa, ao tratar da
Normalização, contou que tinha tido muito trabalho, enquanto ministro, para convencer Salazar a autorizar a adesão de Portugal aos
organismos internacionais de normalização. Argumentava o ditador que isso
parecia ser coisa de soviéticos. Mas Daniel Barbosa contrapôs que, quando se
fundia uma lâmpada em S.Bento, a Dona Maria precisava de ter a certeza que o
casquilho da nova lâmpada, comprada numa drogaria da rua de S.Bento, servia no
candeeiro do senhor professor. E Portugal aderiu ao ISO.
Invoquemos o regulamento 1315/2013 (do Parlamento Europeu e do
Conselho relativo às orientações da União para o desenvolvimento das redes
transeuropeias de transporte RTE-T) .
É que na alínea u) do art.3º do
regulamento 1315 define-se “rede isolada” como “a rede ferroviária de um Estado
membro, ou parte dela, com uma bitola diferente da bitola nominal da norma
europeia (1435 mm), para a qual determinados grandes investimentos de
infraestruturas não se justificam...”
É este o espírito do
Manifesto Portugal, uma ilha ferroviária na UE?: nem queremos apenas uma rede
isolada, independentemente de ser inevitável a convivencia e a interligação
durante algumas décadas entre uma rede de bitola ibérica e uma rede de bitola
UIC, nem queremos considerar a
normalização como uma coisa de soviéticos.
Indispensável para os objetivos de ligação à Europa é a
coordenação com Espanha, em moldes diferentes do que se tem feito até
agora nas cimeiras luso-espanholas, para a progressiva instalação da bitola UIC
nos corredores principais do Atlântico para a Europa. A política Espanhola tem
efetivamente desprezado as ligações a Badajoz e a Salamanca, que são duas das
nossas quatro ligações transfronteiriças, prevendo em todas elas a
manutenção nos próximos anos da bitola ibérica.
Diplomaticamente se deverá
fazer ver a Espanha a importancia de cumprir a orientação da UE para os dois
corredores principais, nomeadamente o
início da sua exploração normal enquanto integrante da rede “core”até 2030 (considerando nº 11 do regulamento
1316/2013) e a análise em 2023 do progresso da sua construção (art.54 do
regulamento 1315/2013).
Embora a data de revisão do progresso seja 2023, o ministério do fomento
espanhol está já a preparar o pedido de revisão da rede de corredores
internacionais com o objetivo de 2020, para incluir a ligação à Galiza, em
bitola UIC e tráfego misto, ao corredor
atlantico norte. Esta inclusão sugere a inclusão também de Porto-Vigo
Por falar em diplomacia, evoco a viagem diplomática de Afonso V a
França, no século XV, para pedir a Luis XI apoio contra a casa real espanhola.
Apoio para ultrapassar o obstáculo Espanha, ou mais precisamente, para tomar de
assalto Espanha. Curioso observar que a viagem de AfonsoV se fez por barco,
numa época em que a tecnologia não oferecia melhor solução por terra.
Afonso V, que fracassou na sua tentativa, desastrada porque era primo
direito de Carlos o Temerário, o chefe feudal inimigo de Luis XI, será assim um
antepassado dos nossos agentes económicos que, dispondo agora de uma tecnologia
tanto ou mais eficiente e ecológica do que a marítima (não esquecer a urgente
necessidade de conversão da propulsão marítima do diesel para o gás natural),
defendem a ligação aos países europeus. O objetivo agora não é tomar Espanha,
mas juntos com Espanha exportar para a Europa, e transportar de e para a Europa
o que chega aos nossos portos, por terra ou por mar.
Ainda no capítulo da diplomacia, para
que os resultados sejam diferentes dos de Afonso V, é essencial a coordenação
com França para garantir, no respeito pelas orientações da UE, a passagem dos
comboios de mercadorias para o centro da Europa. Com todo o respeito para com a
experiencia profissional dos colegas que minimizam o efeito e os custos da
mudança de bitola em Irun, ou valorizam os eixos variáveis para mercadorias,
contraponho que a eliminação do constrangimento dos transbordos/mudança de
eixos ou bogies facilita o cumprimento
dos horários, indispensável para a utilização dos canais de transporte, e que os eixos variáveis, tal como o 3ºcarril,
são uma ótima solução para casos pontuais ou temporários por razões de custo,
peso e manutenção, mas não como solução definitiva.
Por outras palavras, o critério
fundamental a seguir é o da interoperabilidade, possibilitando que os nossos
comboios, normalizados segundo os standards europeus, vão aos centros logísticos da Europa central,
que os comboios dos operadores europeus venham aos nossos portos e centros
logísticos, e que os contentores não circulem vazios em nenhum dos sentidos.
Sobre a passagem de comboios por França, podemos inspirar-nos na
recente cimeira franco-espanhola de 4 de setembro de 2017, em que os ministros
francês e espanhol se comprometeram a ter as 3 ligações transpirenaicas a
funcionar em bitola UIC em 2023. Apesar dos sobressaltos catalães, mantêm-se os
objetivos das comunidades valenciana e catalã de acelerar a construção do
corredor mediterrânico em bitola UIC (ligação dos portos de Cadiz, Algeciras,
Málaga e Valencia a Barcelona, e logo a
França).
Encontrando-nos em fins de 2017 e
considerando os prazos de execução, as limitadas disponibilidades financeiras e
a aproximação do período de candidaturas ao quadro comunitário 2021-2027, urge
debater e aprovar o plano de instalação em Portugal das novas linhas de bitola
UIC. O que se propõe no âmbito do debate anunciado pelo governo sobre
infraestruturas.
Não condenamos a
necessária modernização da rede ibérica existente, pelo menos grande parte
dela, criticamos sim a ausencia de planos para a efetiva instalação da bitola
UIC.
Tome-se um comboio tipo teórico de 1400 toneladas de carga útil e façamos
alguns cálculos com base em grandezas e leis físicas, o que quer dizer que os
resultados podem considerar-se como limites.
Para uma velocidade de 100km/h o
comboio oferece uma resistencia ao movimento de 153kN em patamar. Para
transportar a mesma quantidade de mercadorias, necessitamos de 64 camiões com reboque de 3 eixos que para a
mesma velocidade terão em conjunto uma resistencia ao movimento de 398kN.
Considerando um percurso tipo teórico de 270km de patamar, mais 10km de rampa
de 1,5%, mais 10km de declive de 1,5% e mais
10km de curva de 500m de raio, estimo um consumo da ordem de 23000 kWh para o comboio e de 125000
kWh para os 64 camiões. Isto é,
uma diferença de 102000 kWh. Valorizando o kWh a 5 centimos teremos 5100
€ de economia do transporte
ferroviário para aquela distancia de 300 km e carga útil de 1400 toneladas. A
poupança de emissões de CO2 será da ordem de 94 toneladas de CO2.
Mas estas poupanças relativamente
ao transporte rodoviário tanto se verificam para um comboio de bitola ibérica
como de bitola UIC.
A verdade é que a quota do modo ferroviário no transporte de
mercadorias tem vindo a regredir e a estabilizar em cerca de 6,7% do tráfego de
mercadorias nacionais e internacionais (da ordem dos 3% no caso do tráfego
internacional).
Como relacionar o desejado crescimento da quota ferroviária com a
política de investimentos na ferrovia?
A hipótese é que, a médio prazo, a adoção da bitola UIC na ligação
Sines-Europa, em paralelo com o cumprimento da orientação da UE de
transferência até 2030 de 30% do volume de mercadorias transportado pelo modo
rodoviário a mais de 300km para o modo ferroviário, permita inverter essa tendencia.
Isto é, a adoção parcial da
bitola UIC numa rede como a portuguesa não decorre de uma simples análise de
custos-benefícios de variáveis em mercado livre, antes resulta de orientações
estratégicas no âmbito da contenção das alterações climáticas e da garantia da livre circulação dos
operadores ferroviários baseada no critério da normalização da
interoperabilidade.
Recorda-se que a quota do modo
ferroviário em 1995 era da ordem de 10% e que a implementação das autoestradas
ferroviárias, ou transporte de longo curso de camiões com reboque por comboio
em bitola UIC equivale a uma
transferência de modo. Para evitar uma crise grave no setor do transporte
rodoviário de longa distancia, será essencial que os seus operadores adiram às
autoestradas ferroviárias.
Em síntese, a hipótese do Manifesto é a de que a progressiva adoção da
bitola UIC nas ligações internacionais estimulará o desenvolvimento do tráfego
ferroviário viabilizando uma transferencia significativa do tráfego rodoviario para
o modo ferroviário.
Imaginemos 5 cenários, considerando que é extremamente difícil prever a
evolução do transporte de mercadorias em resposta às ações (ou inações) que
forem sendo executadas:
1 – manutenção da rede ibérica existente, com maior ou menor modernização
ou expansão, e aceitação natural da limitação do tráfego internacional a
Espanha (de produção nacional ou descarregado nos portos nacioinais),
considerando os constrangimentos da mudança de bitola em Irun; manutenção da
bitola ibérica na linha Badajoz-Madrid; manutenção aproximada dos volumes de
mercadorias e quotas de repartição atuais;
2 – projeto, submissão a fundos comunitários e execução da obra em bitola
UIC Sines-Poceirão-Caia em 7 anos; transferência, ao fim de 4 anos após a
entrada em serviço da linha de bitola UIC de 10% do volume de mercadorias do modo rodo
para o modo ferroviário;
3 – manutenção da rede ibérica existente, como em 1, mas admitindo um
crescimento anual de 2% do volume de mercadorias transportadas pelos modos rodo
e ferroviário durante 4 anos;
4 – linha de bitola UIC Sines-Poceirão-Caia mas transferência de 30% do
modo rodo para o modo feroviário, conforme o regulamento 1316/2013;
5 - manutenção da rede ibérica nacional existente mas abandono por Espanha da bitola
ibérica nas linhas Badajoz-Madrid e Salamanca-Valladolid após a conclusão das
plataformas logísticas de Badajoz e de Salamanca.
Vou comparar o cenário 2 com 1 e
o cenário 4 com 3. Dado o seu carater
catastrófico, farei como o general austríaco na guerra de 1914 que caraterizou
a situação no seu setor como catastrófica mas ainda não grave, e não tratarei o
cenário 5. Aliás, o manifesto existe para tentar evitá-lo.
Comparação dos cenários 2 e 1 :
Partindo dos valores do INE para o transporte de mercadorias em 2015, estimo
um ganho relativo do cenário 2 (crescimento anual de 16,1% em 4 anos do modo
ferroviário em Mton-km) de 55,7 milhões de euros por ano assim repartidos:
- 40,7
milhões de euros devido à diferença de
custos do transporte da tonelada-km
(3,47 cent no modo rodoviário; 1,62 cent no modo ferroviário)
- 14,8
milhões de euros devido à diferença nas emissões de CO2 contabilizando
30€/tonCO2 (241 gCO2/ton-km no modo rodoviário; 17 gCO2/ton-km no modo
ferroviário)
- 0,2
milhões de euros devido à diferença das taxas de mortalidade em acidentes
contabilizando 0,15 milhões de euros por fatalidade (0,8 fatalidades por 1000
milhões de ton-km no modo rodoviário; 0,2 fatalidades por 1000 milhões de
ton-km no modo ferroviário)
Comparação dos cenários 4 e 3:
Ganho relativo do cenário 4 (crescimento anual em 4 anos do modo ferroviário em Mton-km:
36,2% no cenário 4; 8,2% no cenário 3) de 288,6 milhões de euros por ano assim
repartidos:
- 222,9
milhões de euros devido à diferença de
custos do transporte da tonelada-km (3,47
cent no modo rodoviário; 1,62 cent no modo ferroviário)
- 64,7
milhões de euros devido à diferença nas emissões de CO2 contabilizando
30€/tonCO2 (241 gCO2/ton-km no modo rodoviário; 17 gCO2/ton-km no modo
ferroviário)
- 0,9
milhões de euros devido à diferença das taxas de mortalidade em acidentes
contabilizando 0,15 milhões de euros por fatalidade (0,8 fatalidades por 1000
milhões de ton-km no modo rodoviário; 0,2 fatalidades por 1000 milhões de
ton-km no modo ferroviário)
Tudo isto poderá parecer demasiado teórico, mas se
eu não tiver conseguido convencer as pessoas, ao menos que alguém aceite
corrigir os meus cálculos.
E que ao menos haja
convergencia na necessidade de recorrer aos fundos comunitários, com a inerente
e urgente elaboração dos projetos de execução da bitola UIC, para os
investimentos indispensáveis ao crescimento das exportações, no preciso
respeito pelas orientações ferroviárias da UE.
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