Mas achei que o seu artigo "Socialismo"
https://www.publico.pt/2018/10/25/politica/opiniao/socialismo-1848598
podia ser comentado mais em pormenor.
Eis esse comentário:
Cara Professora
Leio por vezes os seus textos, ou vejo-a na televisão,
defendendo militantemente os seus pontos de vista, sempre com lógica dificilmente
contestável se admitirmos os pressupostos.
Por vezes tenho pensado comentar as suas intervenções, não militantemente
mas apenas como simples cidadão, para mais de formação distinta da sua, e que
frequentemente discorda das suas ideias e das conclusões das suas análises.
Dados os meus cabelos brancos, há muito que não partilho da
ideia de que a verdade, ou mais humildemente, a tentativa de melhor organizar
as comunidades, é exclusiva de alguém ou de um dos lados em que as discussões
normalmente se desenvolvem.
Talvez pense assim pela minha formação, naquela cultura que,
como disse, contrasta com a sua (saudades da minha adolescência e das duas
culturas de Snow). Por exemplo, a teoria ondulatória e simultaneamente
corpuscular da luz, com a agravante de que o conceito de simultaneidade é
incompatível com o de precisão na localização das partículas (Heisenberg).
Não admira portanto que, embora por instinto e por
sentimento rejeite muitas das suas condenações do que comummente se chama
esquerda, eu pense, ou me iludo como se pensasse, que posso analisar as suas
ideias com tranquilidade.
Isto a propósito do seu texto Socialismo, no Público de 25
de outubro.
E porque consegui mesmo vencer a minha preguiça natural e
alinhavar, embora com atraso, nestas
linhas uma crítica ao seu texto?
Talvez porque ao lê-lo me ocorreu, a propósito da ideia das
duas culturas, que a Professora desenvolve a sua lógica longe dos pressupostos
de duas leis que interessam à economia política, embora sejam mais
caraterísticas da estatística uma, e da física outra.
Falo da lei dos rendimentos decrescentes, que reflete outra
lei da matemática, que não há leis universais, que uma lei só é válida no seu
domínio , que devemos definir quando falamos dela, que não há uma lei mestra da
qual se deduzam as outras (Gudel). Newton não podia saber, por falta de
instrumentos de observação, que as suas
leis do movimento não podiam ser aplicáveis ao microcosmos, não podia deduzir
as correções relativistas de Lorentz e Einstein. Marx não podia adivinhar,
embora o entrevisse quando admitiu que o progresso tecnológico aliviaria o
esforço dos trabalhadores, o quanto a tecnologia penetrou nas causas dos
fenómenos sociais e económicos.
A lei dos rendimentos decrescentes, que não é universal,
repito, porque para uns casos pode ser uma reta que sobe indefinidamente, mas
noutros atinge demasiadamente depressa um cotovelo de saturação e por mais
fatores de produção que se invistam não há retorno, e noutros ainda oscila irritantemente, na
região dos pouco numerosos fatores de produção, em torno de uma linha em que abaixo dela é
impossível recuperar o dinheiro investido,
pode justificar (pode, é uma hipótese que deverá ser testada, mas
possivelmente nenhuma instituição irá testá-la) o que lamenta no seu artigo,
que os portugueses ganham pouco e recebem pouco do Estado. Isto é, que estamos
numa abcissa da lei dos rendimentos que conduz diretamente a uma ordenada sem
retorno, melhor dizendo, por mais que investamos e produzamos, o que obtemos é sempre
inferior ao custo do investido e produzido. Embora possa ser apaixonante para
quem não sofra da sua aversão ao estatismo, batalhar numa empresa pública, num
hospital do SNS ou num serviço público de atendimento, pelo aumento da
produtividade e pela redução da burocracia. Esta lei é uma ilustração da armadilha da
pobreza, da qual só se sai com intervenção protetora exterior, como deveria ser
a da EU para com um país em dificuldade, não só de ordem financeira, mas por
ter largos setores (felizmente nem todos, ainda se vai exportando) com
sistemática incapacidade de organização. Apesar da EU não fazer como a reserva
federal perante as dificuldades da Califórnia.
A outra lei é de maior gravidade, e até se relaciona com a
lei desta, e é a lei de Fermat-Weber: num sistema entregue a si próprio,
composto por elementos com diferentes graus de atratividade, a ação de atração
dos de maior atratividade torna-os progressivamente mais atrativos, aumentando
a diferença do poder de atração dos mais fortes relativamente aos mais fracos. Isto
é, é uma perfeita metáfora da antinomia que refere, entre liberdade e igualdade
(a vox populi tinha descoberto uma saída para a antinomia: a minha liberdade
termina onde começa a do outro, mas reconheço que é difícil estabelecer limites,
uns acharão que é mais para cá, outros mais para lá). Como pode a liberdade
individual ser o supremo valor quando a sociedade entregue ao mercado livre vê
sucessivamente aumentar o fosso entre ricos e pobres, diz a lei de
Fermat-Weber? Pese embora a sua condescendência em deixar o Estado limitar a
liberdade individual, com limites de razoabilidade, passe a redundância, com
impostos. Mas não gostará da minha
sugestão, porque provavelmente achará que o Estado deve ser mínimo, em dimensão
e na emissão de impostos, que é a de, para reduzir impostos, deter o próprio
Estado empresas produtivas e lucrativas. Sabe bem para um orçamento de Estado
receber dividendos, de bancos públicos, de empresas da Parpublica… apesar de
ser uma sugestão marxista (Manifesto do partido comunista…).
Talvez me tenha decidido a escrever-lhe as citações com que
começou o texto: de João Chagas (sou democrata e portanto não posso ser liberal,
o que por petulância me leva a dizer que também eu sou não protecionista
precisamente por não ser liberal nem neo-liberal) e de Alexandre Herculano (sou
liberal e não democrata porque a desigualdade é condição das agregações
humanas). Devo agradecer as citações, que não conhecia. Confesso que não
esperava a de Alexandre Herculano, habituado ao seu rigor de historiador; dele,
como proprietário, só conhecia a expressão de empobrecer alegremente com a agricultura (ilustração clara da lei dos
rendimentos decrescentes).
E terá sido isso que me decidiu a escrever-lhe porque
calhou, pouco depois de ler o seu artigo, caírem-me os olhos noutras duas
citações, e logo a primeira de um clássico da economia política, que não poderá
ser confundido nem em parte pequenina, com um socialista, Stuart Mill. A
propósito da apropriação privada das mais valias das decisões administrativas.
Disse ele: “Suponhamos que existe um género de renda
fundiária que tende a aumentar de valor sem qualquer sacrifício ou esforço da
parte dos seus proprietários: eles constituem então uma classe que enriquece
passivamente às custas da restante comunidade. [Assim sucede com os solos
reclassificados de urbanizáveis] Neste caso, o Estado não estaria a violar o
princípio da propriedade privada se recapturasse este incremento de riqueza à
medida que ele vai surgindo. Isto não constituiria propriamente uma
expropriação, mas apenas uma canalização em benefício da sociedade da riqueza
criada pelas circunstâncias colectivas, em lugar de a deixar tornar-se o
tesouro imerecido de uma classe particular de cidadãos. Ora, este é justamente
o caso da renda [diferencial urbanística] do solo.” (Stuart Mill 1848,
Princípios de Economia Política, livro 5, capítulo II , citado em:
Confesso que tenho dificuldade em harmonizar esta citação,
com a qual concordo inteiramente (como disse, sou não protecionista, mas não
sou neo-liberal), com a definição que a Professora dá do seu liberalismo e com
o seu protesto por o Estado socialista estar a “intrometer-se na vida
privadíssima de cada um” e a “ultrapassar o limite do legítimo” a propósito das
medidas contra os prédios devolutos, as quais se bem me lembro, datam de há
vários anos, ainda de antes da pavorosa (ironizo) fórmula governativa. Mas não
posso queixar-me, comecei por escrever que as coisas na Natureza não são
deterministas, não são definidas com fronteiras claras, e aqui concordo, um liberal “vive na incómoda
condição de permanente incerteza moral”
pela necessidade de hierarquizar valores segundo critérios “rigorosamente
equacionados” (quando critérios morais e ideológicos são tão difíceis de meter
numa equação, ou numa inequação, cujos sinais de maior ou menor serão tão
instáveis…). Mas devo confessar, um não neo-liberal, ou como deve preferir, um
“socialista” também vive, pela razão acima exposta do não determinismo, em
“permanente incerteza moral”. Porque já reconhecemos os erros, e por mim peço
desculpa, nas tais tentativas de “visão despótica da sociedade e do mundo” (mas
pôr no mesmo saco uma ideologia que parte do igualitarismo, embora depois o
traia, com outra que parte exatamente do princípio contrário, o da desigualdade
até genética? Que diria Marx, que tão crítico foi da experiência da comuna de
Paris, ao contrário de Victor Hugo?). Reconhecimento que conduz à cooperação
com as outras ideologias, como se vê em governos regionais na Alemanha, e em
câmaras municipais em Portugal, não à supremacia.
Mas vamos à segunda citação, também retirada da mesma fonte:
Kruger 1975, The Political Economy of the Rent-Seeking
Society: “A existência de apropriações de rendas [diferenciais urbanísticas]
afecta consideravelmente a percepção pública do mercado. Se a distribuição de
rendimentos passar a ser vista como uma lotaria na qual os ricos ganhadores são
apropriadores de rendas com bons contactos [na Administração Pública], enquanto
os pobres e perdedores são todos aqueles que não se apropriam de rendas [por
não terem bons contactos], começa a reinar um clima de suspeita generalizada.”
E perante esta citação, dirá a Professora que é por isso que
apesar de mínimo, o Estado tem de assegurar a função reguladora mas, dirá, não
controladora. Aqui tenho de discordar com base na minha formação na outra
cultura: controlar significa o mesmo que regular segundo mecanismos de
retroalimentação; é possível regular simplesmente sem malha de
retroalimentação, regulando segundo limites superior e inferior bem definidos,
por exemplo, mas controlar implica comunicação nos dois sentidos, e é
indispensável para regular um sistema que de outro modo pode embalar, isto é,
sair dos limites do razoável e provocar danos. Ou dito de outro modo, a
entidade reguladora tem de ser suficientemente forte para não se subordinar ao
dictat das empresas mais fortes (veja-se o caso das rentabilidades das PPP e da
EDP), e tem de dispor de know how para não ser enganada. Ora, isso só é
possível, num país e numa economia aberta e pequena, se a entidade reguladora
tiver experiência do negócio, isto é, se o praticar. O que conduz ao problema
de quem guarda o guarda de Juvenal. Depois de muitos anos de desenvolvimento
das técnicas de qualidade nas empresas, é fácil responder. O próprio Estado
pode criar órgãos de controle mútuo, segundo essas normas de qualidade. Mas
entregar-se nas mãos de quem, no mercado, melhor conhece o meio e tem como
objetivo maximizar o lucro (bem, a fé de Adam Smith é que o lucro é sempre
reinvestido para criar mais empregos), não parecerá boa ideia, como o prova a
questão das portas giratórias.
A Professora que me desculpe, mas para a minha decisão de
lhe escrever terá contribuído outra coincidência, a de ter tropeçado na
descrição do funcionamento do mercado livre como uma crença em Santa Claus, no
muito na moda livro de Noah Harari, Homo Sapiens. Eu penso que os intelectuais
portugueses neo-liberais devem ter ficado a detestar o senhor, porque o que ele
diz do mercado livre é muito crítico (cap.16) e a análise que faz das
desigualdades também (cap.8). Claro que também diz verdades desagradáveis de
ouvir para o outro lado, se até chama mito, ou manual de uma ordem imaginária,
à Declaração da Independência dos Estados Unidos de 1776 (cap.6), mas isso é
próprio de quem analisa as questões corretamente sem omissões ou
encaminhamentos propositados, seja enviesamentos. Daí a chamar mito ao artigo
65 da constituição portuguesa e ao seu direito à habitação pode ser um passo se
mal entendida a interpretação.
Por exemplo, quando a Professora diz que o direito à
habitação inscrito no art.65 deve ser
satisfeito pelo Estado com as receitas dos impostos que todos pagam, incluindo
os proprietários dos prédios devolutos, eu estou inteiramente de acordo, mas
não devo deixar de recordar que o mesmo artigo também diz que o Estado “adotará
uma política tendente a estabelecer um
sistema de renda compatível com o rendimento familiar”.
Isto é, o direito é à habitação, não à habitação gratuita, e
o Estado só terá de ter despesa (prejuízo) se o rendimento dos cidadãos for
insuficiente.
E é aqui que concluo, com uma sugestão: para que seja
possível que os cidadãos tenham um rendimento maior, que todas as forças
políticas e grupos de cidadãos cooperem, em vez de se hostilizarem.
Com os melhores cumprimentos e votos de sucesso pessoal
Fernando Santos e Silva