quarta-feira, 3 de outubro de 2018

A especialização de Transportes e vias de comunicação da Ordem dos Engenheiros

Não cometerei nenhuma inconfidência, seguramente pela própria natureza do grupo, ao comentar as conclusões de um encontro de especialistas de Transportes e vias de comunicação da Ordem dos Engenheiros, em 2 de outubro de 2018.
A Ordem tem neste momento 115 especialistas , disseminados pelo país, e estiveram presentes cerca de 20 .

Destaco do encontro a expressão por 3 ex-bastonários da vontade de maior intervenção da engenharia nos processos de decisão, invertendo a tendencia que se vem verificando nos ultimos anos de afastamento dos engenheiros dos centros de decisão e de tratamento de questões estratégicas com critérios demasiadamente mediáticos.
Recordada a rejeição pelo governo de então do estudo validado pela Ordem de localização do novo aeroporto, contrária à solução Montijo.
Também foi posta a tónica em que os grandes investimentos públicos anteriores a 2008 não comprometeram os limites comunitários do défice, enquanto posteriormente o défice subiu sem investimentos.
De assinalar pelo presidente da ANSR a falta de meios para aplicar medidas que contrariem com sucesso o crescimento de mortes em acidentes rodoviários, nomeadamente de duas rodas.

Transcrevo excertos da comunicação que apresentei, com a preocupação de propor temas concretos para atuação, sob a forma de elaboração de recomendações ao governo e aos gestores das empresas de transporte:

“Anos sessenta. Instituto Superior Técnico.
O professor Abreu Faro enchia as suas aulas teóricas de Telecomunicações com as maravilhas do teorema de Shannon, dos diagramas de radiação das antenas, da capacidade dos canais de comunicação, dos princípios da teoria da informação. Não se limitava a expor e demonstrar questões técnicas, evidenciava a função e os conceitos da engenharia como atividade para resolver problemas e aumentar a qualidade de vida das comunidades.
Isso fazia a ponte entre os eletrotécnicos das telecomunicações e das correntes fortes e os civis das pontes e estradas. Para circulação das ideias, das mensagens, dos vetores da energia elétrica e das pessoas e bens, com a preocupação com a integridade dos bits de informação das mensagens, da sinusoide e da fase da onda, dos bens e dos passageiros transportados, na velocidade maior possível, com os fluxos de informação ou de energia ou de mercadorias ou de pessoas mais elevados no canal disponível .
O professor chamava a atenção para que a engenharia necessitava de uma boa base teórica e científica, mas que para resolver os problemas concretos não era muito preciso preocuparmo-nos com o rigor matemático. Os matemáticos teóricos que investigassem a posteriori e estabelecessem a coerência dos teoremas e das definições. Tinha sido assim com a função de Dirac, o impulso de amplitude infinitamente grande e duração infinitamente pequena, ou a função de Heaviside, a função escalão ou degrau. Entidades matemáticas que serviam para resolver problemas físicos, e para criar problemas aos matemáticos que estruturassem a sua coerência.
Dando o devido relevo à distinção entre o acessório e o essencial, num ato de engenharia tem de se seguir o método científico de observação, recolha e tratamento de dados, mas sem necessidade de construir uma tese de dissertação, utilizando valores aproximados e testando os resultados das hipóteses.
Recordo o professor porque se não é condição imprescindível num ato de engenharia a máxima aproximação do rigor matemático ou científico, já um dos procedimentos essenciais na atividade científica é nele indispensável, o método da divulgação e do referendo entre pares.  Aliás, qualquer manual de qualidade estabelece claramente a necessidade de revisão do projeto e a independência dos auditores relativamente à estrutura hierárquica da empresa, e por maioria de razão, relativamente a qualquer orientação da sua direção para uma conclusão.
Aqui surge uma questão interessante do foro deontológico. Até onde pode ir a reprovação de um colega a criticar o trabalho de outro colega, quer seja um auditor formal ou não, quando essa crítica invoca divergências profundas?
E generalizando, como deve reagir um técnico ao ver os critérios de engenharia subordinados a critérios políticos ou económicos que inviabilizem ou dificultem o objetivo de bem servir a comunidade? Deve o técnico calar-se, sabendo que o seu conhecimento técnico colide com a orientação superior, por mais que ministros ou administradores repitam que é a deles a melhor opção?
Ou, lembrando Rudyard Kipling, ao ver distorcidas, amesquinhadas ou desprezadas na comunicação social ou nos centros do poder ou nas direções das empresas, as suas preocupações e as suas propostas, por quem não tem, ou deliberadamente os ignora, conhecimentos técnicos?
Não são os técnicos enquanto pessoas que são amesquinhados quando ignorada a sua formação e experiência. São os contribuintes que, através dos impostos e das privações associadas às desigualdades sociais, pagaram a educação superior e os salários e a absorção de experiência em empresas públicas desses técnicos.
Esta introdução serve para tentar justificar como imperativo deontológico a intervenção da especialização de Transportes e Vias de Comunicação, através de algumas propostas de atuação  no contexto dos problemas de engenharia na atualidade nacional.
Proponho que essa atuação tome a forma de recomendações da Ordem dos Engenheiros ao governo e às respetivas entidades gestoras nos seguintes temas:
1 – Plano de expansão da rede ferroviária nacional de acordo com os critérios de interoperabilidade da UE e integração na rede core 2030 das redes trans-nacionais TEN-T (trans european network – transport), verificando-se, ao ler os relatórios de coordenação da CE, que o governo português parece ter desistido de cumprir esse objetivo. São necessárias análises de custos-benefícios, baseadas no cálculo dos custos do passageiro-km e da tonelada-km . Anoto que a ligação de Sines à Europa deve fazer-se através de um novo troço Sines-Grândola Norte    ( e não Sines-Ermidas) e que a ligação de Aveiro deve fazer-se em linha nova de via dupla por Almeida e não Vilar Formoso

2 – Investigação de acidentes ferroviários e rodoviários com o objetivo prioritário de determinar as causas e circunstâncias do acidente para evitar a sua repetição ou para mitigar as suas consequências, e não para apurar responsabilidades criminais. Anota-se que ainda não há relatório conclusivo do acidente da Adémia em abril de 2017. Anota-se a meritória ação da ANSR infelizmente coartada por falta de meios e de capacidade de divulgação pública e eficaz das suas recomendações

3 – Plano de expansão da rede do metropolitano de Lisboa segundo critérios de eficiência energética e de economia de exploração e de manutenção, com reformulação e submissão a discussão pública e avaliação ambiental de todo o mapa. O projeto de linha circular anunciado baseia-se no mapa de 2009 que não foi sujeito, nem a escolha da linha circular como prioritária, a discussão pública nem avaliação ambiental. O mapa foi elaborado sem audição dos colegas com experiência em operação e manutenção de metropolitanos. Os trabalhos previstos nos viadutos do Campo Grande e na av.24 de julho são altamente onerosos e a linha circular com estas dimensões está sujeita a taxas de perturbações mais elevadas do que em linhas normais.

4 – Introdução da tração por hidrogénio produzido por eletrólise a partir das renováveis para aplicação nas rodovias, ferrovias e navios (e no caso dos navios também por GNL), considerando as soluções técnicas já disponíveis e a necessidade de planear as instalações de produção e distribuição

5 – Análise e discussão pública da lei de contratação pública, principalmente para obviar os inconvenientes do critério do preço mais baixo
6 – outros temas, em que gostaria de ver a Ordem dos Engenheiros tomar posição:
6.1 – reformulação do plano portuário de Lisboa, nomeadamente reanálise do porto fluvial do Barreiro e do terminal Bugio-Cova do Vapor e sua relação com o assoreamento da foz do Tejo e fecho da Golada
6.2 – novo terminal de Sines e ampliação do terminal XXI
6.3 – reformulação do plano aeroportuário de Lisboa, considerando as recomendações da UE contra o ruido dos aeroportos em centros urbanos
6.4 – ligação ferroviária a Lisboa de Beja (possível inclusão na rede complementar de 2050 mas que é urgente)
6.5 – renovação da linha do Douro com as valências turísticas e de transporte de mercadorias
6.6 – desenvolvimento da navegabilidade do Douro e do Tejo "

PS em 4 de outubro de 2018 - Verifiquei durante o encontro que há da parte de alguns colegas relutância em concordar com os procedimentos seguidos pelo grupo do "Manifesto Portugal uma ilha ferroviária na UE?" na tentativa de defesa do desenvolvimento das ligações à Europa segundo os padrões da interoperabilidade. O que parece estranho, uma vez que esse grupo partilha com a Ordem a defesa do interesse nacional. Aliás, como membro desse grupo, uma das razões por que escrevi acima sobre deontologia foi ouvir de um colega com funções diretivas na CP o desabafo, perante a estratégia de defesa intransigente da bitola ibérica pela IP, "Estão a dar cabo disto tudo"... o que me fez lembrar outro desabafo, desta vez de um dos diretores em funções no metropolitano de Lisboa, a propósito do atual plano de expansão, "Nós, técnicos, fazemos aquilo que nos mandam"... Pena os decisores não ouvirem , ou pelo menos lerem, estes desabafos. Podiam pôr a mão na consciência, como se costuma dizer, e tentar não se desculparem como de costume, que é deles, decisores, a melhor opção, e que os críticos são destrutivos.
Talvez as reservas dos colegas relativamente às propostas do grupo do Manifesto Portugal, uma ilha ferroviária na UE? tenham origem no receio de que, abrindo as ligações à Europa aos operadores europeus, com a bitola UIC mais facilmente chegariam aos portos nacionais se se cumprisse o plano da rede core 2030, e as empresas portuguesas, quer ferroviárias quer rodoviárias, seriam seriamente prejudicadas (ao menos pensem num plano de adaptação do transporte rodoviário às autopistas espanholas de passagem por ferrovia dos Pirineus). Igualmente o receio pode ser o de que as importações aumentariam sem que as exportações conseguissem atingir o objetivo mínimo de 60% do PIB (atualmente 40%). Evidentemente que são riscos sérios, mas quando se pensa que o objetivo da UE é transferir 30% da carga rodoviária internacional para o modo ferroviário até 2030, isso é impossível de atingir em Portugal com a bitola ibérica e com as curvas e pendentes da linha de Sines e da linha da Beira Alta . O que é dizer o mesmo que reconhecer que Portugal é e continuará a ser um país periférico com indicadores inferiores aos da média europeia, contrastando com a evolução dos países de leste (talvez com a exceção da Roménia, mais do que a Bulgária), isto para não falar do intenso esforço espanhol no desenvolvimento da sua rede de alta velocidade/mercadorias/bitola UIC. Daí a expressáo ilha ferroviária. Citando Alfredo Marvão Pereira, um país desenvolvido deve afetar 2 a 3% do seu PIB a infraestruturas; se daí retirarmos 1% para infraestruturas novas de transportes, poderiamos dispor de cerca de 1800 milhões de euros por ano. Estimando o plano da rede core 2030 para Portugal em 11000 milhões de euros em 12 anos, não parecerá escandaloso. Embora não impeça quem discordar de continuar a afirmar que não há dinheiro, nem o governo de continuar a querer maravilhar-nos com os sucessos do Portugal 2020 e do Portugal 2030.

                                                                              

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