https://www.publico.pt/2021/06/08/opiniao/opiniao/industria-vigilancia-memoria-estado-novo-1965615
https://www.publico.pt/2021/06/20/opiniao/opiniao/milagre-economia-politica-1966602
https://www.publico.pt/2021/06/27/economia/opiniao/profundidade-historica-atraso-portugues-1967798
email enviado ao jornalista João Miguel Tavares
Caro João Miguel Tavares
Tomo a liberdade de vir vampirizar um pouco e rasgar as vestes também um pouco.
Desculpo-me com a minha idade. Tinha 29 anos quando do 25 de abril de 1974.
Já há uns anos também invoquei o argumento da idade para recordar ao jovem e impetuoso condutor de automóveis João Miguel a razão das limitações de velocidade nos túneis da Av.da República. Que por motivo das curvas verticais e da subsequente distancia de visibilidade tem mesmo de haver limitação de velocidade. Para que a liberdade de acelerar não colida, por manifesta falta de distancia de travagem após deteção tardia do obstáculo escondido, com a liberdade do dono do carro que avariou no fundo da rampa manter a sua integridade física. Ignoro se o liberal que não aceitava a limitação de velocidade imposta pelos planificadores centralizadores do transito, passou a aceitá-la depois da minha exposição. Podia aceitar mantendo o seu liberalismo.
Mas o assunto agora é outro, O João Miguel e o Nuno Palma são jovens, não viveram o Estado Novo (certo, ambos declararam que ele é indefensável, deixe-me seguir o bom exemplo e imediatamente declarar que são indefensáveis regimes leninistas - em termos físicos tão indefensáveis como a mecânica newtoniana aplicada à estrutura atómica, embora a mecânica newtoniana seja defensável para calcular um tempo de reação e uma distancia de travagem - e por maioria de razão regimes como o da Coreia do norte, Venezuela, etc.) .
Devemos agradecer a Nuno Palma ter recordado os gráficos da mortalidade infantil e do analfabetismo acessíveis na PORDATA:
taxa de analfabetismo (geral):
1960 33,0%
1970 25,7%
1981 18,6%
1991 11,0%
2001 9,0%
2011 5,2%
e a taxa de mortalidade infantil
1960 7,75%
1974 3,79%
1980 2,43%
1990 1,09%
2000 0,55%
2010 0,35%
Anoto en passant que 1960 é efetivamente uma amostra dos anos de ouro do crescimento económico de Portugal, e, no seguimento da II grande Guerra, do mundo ocidental.
Mas não vale a pena discutir méritos e deméritos dum lado e doutro (curiosamente, Nuno Palma já tinha exposto as suas ideias sobre o analfabetismo no ECO em abril de 2018 e não houve na altura nenhuma tempestade) porque, já que Nuno Palma citou Pedro Lains, lá vem na introdução, pág.25 (esfera dos livros, Historia económica de Portugal em coautoria com Leonor Freire e Susana Munch) "o crescimento só raramente é definido pelos países individualmente, sobretudo por aqueles que têm uma pequena dimensão como é o caso de Portugal".
O que me leva a escrever-lhe é porém o que me parece grave por afirmações vossas que, a mim me parece, a mim que vivi os factos e que os senti mesmo à minha frente, contrariam esses mesmos factos. Provavelmente porque são afirmações no entusiasmo do arremesso contra a outra trincheira (aos anos que os estrategas já condenaram a tática das trincheiras...).
Vejamos: "a narrativa que o regime democrático construiu associando o atraso do país ao Estado Novo é falsa".
Bem, se foi o regime democrático que a construiu, fê-lo depois do 25 de abril. Como já disse, sou idoso, e vou recordar alguns factos. 1967, cheias de novembro:
Lembro-me de andar numa camioneta Hanomag, da Legião Portuguesa, posta ao dispor da associação de estudantes do IST, a ajudar na limpeza, conforme relatado neste artigo. E a narrativa era, atraso, pelo menos nas zonas degradadas onde morreu mais gente, social e económico.
Mas vamos para mais tarde, já no fim do curso, 1970. Lembrámo-nos de convidar ilustres economistas para comentar a situação de então e o futuro, para sessóes integradas nas festas dos finalistas .. Não foi só viagens de finalistas, havia a consciencia de que havia em Portugal, por junto, menos de 50 000 licenciados ou 0,5% (Carlos Fiolhais, a Ciencia em Portugal, ffms, que recorda os 78% de analfabetismo em Portugal em 1900, a inoperancia da I Republica, a extrema lentidão do Estado Novo e o mérito da reforma de Veiga Simão de 1971) um bom número para "competir" com a Europa.
Tivemos nas sessões, dedicadas principalmente ao condicionamento industrial e como sair dele (Champalimaud da Siderurgia que o dissesse) nomes como Aurora Murteira (de uma grande simpatia para com os jovens convencidos que nós éramos) , Mario Murteira e, se não erro, Francisco Pereira de Moura. Tudo gente que já tinha uma narrativa muito crítica quanto ao desenvolvimento económico do Estado Novo. Cabe aqui recordar nomes como Rafael Duque, Ferreira Dias e tambem Daniel Barbosa, a "puxar" pela economia e a industria perante a pouca compreensão do homem de Santa Comba, e mais tarde o movimento da primavera marcelista, em que se destacaram o malogrado Pinto Bull e Sá Carneiro. Infelizmente tambem com pouca compreensão do delfim do ditador. Dizia-nos o professor de Organização de Empresas, o Marcelo tem medo, era preciso desembaraçar-se das colónias e promover o desenvolvimento económico, mas ele tem medo (poderia ter sido o nosso Adolfo Suarez, teria um lugar na História, mas não quis...), Isto em 1970. Não posso subscrever a afirmação de Nuno Palma, não posso apresentar fontes porque simplesmente se passou comigo, sou testemunha, já havia uma "narrativa" sobre o desenvolvimento económico. Que evidentemente beneficiava da EFTA, que nos ajudava mesmo. Recordar também que pela primeira vez, no 4ºtrimestre de 1973, a balança de pagamentos, graças à crise do petróleo, tornou-se negativa. Isso, o custo da guerra e a pouca qualificação da população (como pode haver produtividade sem educação? comecei a trabalhar no metropolitano em 1974, impressionou-me o nível de escolaridade dos seus trabalhadores, era a empresa que lhes dava formação) .
Voltando ao livro de Pedro Lains e coautoras:
pág 387 - "as críticas à atuação dos governos de Salazar no campo económico começaram a surgir de uma forma mais sistemática e fundamentada precisamente na década de 1960." (e embora mais à frente diga que "alguns não atingiam com as suas críticas o quadro de fundo", a verdade é que, como mostrei no relato da semana de finalistas de 1970, outros alguns criticavam fortemente; Pedro Lains e coautoras foram meigos para o Estado Novo quando escreveram estes alguns; referem também a deslocação maciça da população da agricultura para a cidade e industria, sem qualificação)
pág 395 - "a forte subida do preço do petróleo no inverno de 1973 acabou por ditar o fim de duas décadas de crescimento económico à escala internacional
pág 396 - "os novos problemas não nasceram com o 25 de abril, nem mesmo com a crise dos preços do petróleo em 1973, Já desde finais da década de 1960 que o país conhecia tendencias inflacionistas"
pág 397 - "todavia, o impacto das nacionalizações de 1975 foi relativamente menos importante em comparação com os efeitos da alteração da conjuntura internacional".
Penso portanto haver matéria factual suficiente para Nuno Palma alterar a sua frase, em vez de dizer que a narrativa é falsa, dizer antes, no caso de não querer reconhecer que não é falsa, que alguns elementos lhe parecem indiciar que a narrativa possa ser falsa.
Mas queria focar outro tema, este mais delicado porque, não me sentindo atingido (mais uma vez declaro indefensáveis regimes com KGBs e Stassis) causa-me incomodidade.
Foi o caso da referencia de Nuno Palma aos presos de Peniche, que não eram defensores duma revolução para instaurar a democracia. E pretendeu demonstrar com os exemplos dos regimes comunistas. Ora, salvo melhor opinião, isso é um julgamento de intenções. E os julgamentos de intenção já eram mal considerados no direito romano. Os romanos tinham muitos defeitos, eram esclavagistas (como se não houvesse escravidão nos tempos que correm) mas o direito romano é uma condição necessária para um regime democrático desde que não limitado aos patrícios. Por sinal, há evidencias históricas de que os correligionários contribuiram mesmo para a democracia, em Espanha (coitado do Santiago Carrilho acusado de tão revisionista pelos pacientes infantis, o George Marchais em França (onde De Gaulle, rendido aos "estalos" da Resistencia, dizia que os comunistas fazem tudo o que nós quisermos, e em Itália Berlinguer (Berlinguer lutava por um regime totalitário? ele que podia dizer como Sofia de Melo Breyner em novembro de 1975 com os pacientes infantis a gritarem "fascistas", "quem, eu?"). Mas há evidencias históricas mais perto de nós. A reportagem de Oriana Falacci é uma reportagem, exprimiu a opinião dela, a declaração de Melo Antunes de que era preciso construir a democracia com o PCP, a retirada antes do 25 de novembro de Cunhal da frente de esquerda, a não oposição dos sindicatos à saída dos comandos de Jaime Neves, são factos que me impedem de subscrever tal afirmação (já agora, recordar a queda da ditadura do proletariado num dos congressos do PCP nos anos 60). Nunca fui militante, mas lembro-me duma mensagem do governo civil do Porto para o quartel onde fui colocado, no Porto, avisando que na minha incorporação havia um grupo elevado de milicianos comunistas. Na festa de finalistas (outra vez uma festa de finalistas) dos recrutas que os ditos milicianos tinham formado em Transmissões, em 1972, lá foram os textos que eu escrevi, baseados numa pequena experiencia que o grupo musical de que fazia parte a minha mulher teve no zip zip de 1969, cuidadosamente passados a pente fino pelos oficiais do comando do quartel. O regime já sabia que independentemente dos sucessos económicos a guerra tinha de acabar. É verdade que houve ocupações selvagens e delapidações de património no tempo da Reforma Agrária, mas eu também testemunhei a oposição por militantes do PCP à ocupação antes da votação da lei na Assembleia da República, mais uma vez não posso citar fontes porque vi diretamente, à minha frente.
Mas podemos ir buscar factos que contrariam as teses da incompatibilidade de partidos comunistas com a vida democrática: antes da "geringonça", o Die Linke, recordado pela imprensa portuguesa como constituido "por antigos quadros do partido único da RDA" participa em governos de estados federados. É claro que as pessoas têm todo o direito de desconfiar ou invocar a desigualdade de rendimentos na Alemanha (PIB per capita em 2018: 30.000€ nos estados da antiga RDA, 50.000€ na Baviera) para justificar os votos no Die Linke, mas parece incorreto fazer julgamentos de intenções que desvalorizam o real sofrimento dos prisioneiros políticos.
Em resumo, a minha sugestão é a de que oiçam as testemunhas ainda vivas que conheceram diretamente o Estado Novo, mas que oiçam todos os lados da realidade histórica.
Com os melhores cumprimentos
email enviado ao prof.Nuno Palma:
Caro Professor Nuno Palma
No seguimento de anterior email a propósito da famosa polémica do MEL, lembrei-me de si ao assistir ao programa da RTP2 de 22 de junho cuja ligação lhe envio.
Trata-se da entrevista ao professor António Borges Coelho (momento 22.52). Se ler o meu anterior email, verá que me pareceu que fez um julgamento de intenções aos presos políticos do PCP em Peniche, de que António Borges Coelho fez parte. Basicamente que não estavam a lutar pela liberdade porque quereriam instaurar um regime totalitário. Vendo a entrevista não é o que parece (consta aliás que A.Borges Coelho se desfiliou posteriormente do PCP). Desculpará a insistência, mas ficaria bem reduzir o perímetro da acusação.
Relativamente à continuação da polémica, nomeadamente com Rosas (como dizia Sofia de Melo Breyner, em Lisboa somos provincianos e no Porto bairristas), ficamos a dever-lhe aquele gráfico cuja justificação pormenorizada será sem dúvida interessante (não crescemos no séc.XVI? crescemos assim tanto no fim do séc.XVII e a seguir a 1914?).
Gostaria de comentar que outras razões poderá haver para o atraso, independentemente de ações liberais ou de planeamento centralizado (como se diz no marketing, às vezes a melhor solução é um mix, e aplicando a teoria liberal sem limites, a lei de Fermat-Weber asfixiará os mais fracos que até podiam ser os melhores). No caso presente, citando um exemplo que acompanho, os países bálticos estão empenhados (com a Finlandia) em combater a sua periferia com a construção do Rail Baltica, uma linha de caminho de ferro de alta velocidade/mercadorias de bitola standard (são países com bitola russa) que projetam para 2030. Nós por cá, orgulhosamente sós, projetamos linhas em bitola ibérica e não queremos saber da ligação em alta velocidade/mercadorias para a Europa. Quando era essencial dar condições às exportações para crescerem. Talvez porque não temos nos lugares de planeamento decisores com visão estratégica ou que pelo menos aceitem as propostas que os cidadãos possam fazer.
Com os melhores cumprimentos
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