O navio Mondego e a missão
abortada às ilhas Selvagens
Há muitos anos, ainda não havia GPS, nem radiotelefones, nem
relógios eletrónicos, nem sequer sextantes rigorosos, apenas astrolábios e tabelas
astronómicas pouco fiáveis, o método preferido pela marinha britânica, então em
pleno desenvolvimento da sua expansão imperialista, para a localização dos
navios no oceano, era a barquinha. A barquinha era uma pequena boia a que se
ligava um cabo de comprimento bem definido. À medida que o navio se deslocava, a
barquinha ia ficando para trás (para a ré, stern, em inglês) e o cabo ia-se desenrolando.
Contando o tempo que ele tinha levado a desenrolar-se (já havia relógios, que
diabo) tinha-se a velocidade a que o navio se deslocava e generalizando, podia-se
estimar o espaço percorrido (espaço igual a velocidade vezes tempo).
Evidentemente que era um método incerto, e aconteceu que
numa tempestade, os navios da esquadra de um grande almirante tiveram de fazer
uma arriscada viagem da Britânia para a irlanda. O marinheiro da barquinha fez
as suas contas e avisou o almirante, pelos canais próprios, claro, que a
manter-se o rumo ia bater-se nos escolhos de uma das muitas ilhas britânicas.
O almirante, do alto da sua sabedoria, da sua experiência de mar e da pirâmide
hierárquica, e em nome de sua majestade real, discordou. Perante a insistência
do marinheiro, mandou enforcá-lo por desrespeito ao representante de sua
majestade.
Imediatamente a seguir à cerimónia do enforcamento (não
havia tubarões como nos mares da Bounty, e preferia-se por isso o enforcamento
para que todos respeitassem a hierarquia), o navio almirante bateu com fragor
nos escolhos anunciados pelo marinheiro e perdeu-se. O real almirantado da Marinha britânica
reagiu bem, perguntou à Academia das Ciências o que fazer e os académicos
explicaram que se se medisse todos os dias a altura máxima do sol (o sol está
mais alto ao meio dia, desde que não haja uns intelectuais a dizer que o melhor
é mudar a hora) comparando a hora local do meio dia com a hora no fuso de
Londres (Greenwhich) lida num relógio seguro, ter-se-ia a distancia ao fuso de
Londres, isto é, a longitude. Se a memória não me falha, era uma das funções de
Marlon Brando, na revolta da Bounty, ir registando as horas do relógio da longitude
quando o sol estava mais alto.
Por exemplo, no momento em que se fizesse uma medição com o
sol mais alto e o relógio com a hora de Londres marcasse 8 minutos depois do
meio dia, isso queria dizer, se não erro muito, que o navio estava a 220 km do fuso de Londres
(longitude 2º). Quanto à latitude, para
isso havia o sextante entretanto aperfeiçoado e as tabelas astronómicas, idem.
Toda esta história me veio à lembrança ao ver hoje a notícia
que o navio Mondego saiu atrasado do Funchal, possivelmente por reparação, para
as ilhas Selvagens e teve de regressar pouco depois rebocado.
Isto é, o senhor almirante chefe, agora português, que foi de
modo expedito, com pompa e muita circunstância, ralhar aos 13 marinheiros que o informaram de que o navio não
estava em condições, terá ignorado, com a preocupação de ressalvar a santa
hierarquia, uma tradição não confessada na Marinha, possivelmente porque nos
submarinos, onde fez carreira, ela não é aplicável dada a natureza dos
submarinos. A tradição diz que os desastres que acontecem têm uma causa estranha,
que é o comandante que traz o azar, por mais competente que seja. Talvez por
isso o jovem comandante do Mondego não fez o que devia ter feito, com medo de
comprometer a sua carreira, informar por escrito o seu superior hierárquico que
o navio não estava em condições, e que se quisesse, o superior hierárquico, que
o navio saísse, que fizesse o favor de escrever que era o que queria tomando
nota do parecer do senhor tenente comandante do Mondego.
Infelizmente para o senhor almirante chefe a realidade veio
demonstrar que eram os 13 marinheiros que tinham razão, não ele, como no caso do
almirante britânico anterior ao cálculo das longitudes.
Guardadas as devidas proporções, quando eu estava ao serviço, não na Marinha, mas no Metropolitano, cumpria o que me
mandavam desde que ficasse escrito que quem mandava conhecia a minha discordância.
Nada de novo à superfície da terra, foi o que fez o coronel Dax, mais
precisamente Kirk Douglas, no filme Horizontes de glória, quando o general
mandou disparar sobre as próprias tropas se retirassem (enfim, de vez em quando,
no processo histórico, apodera-se das
mentes o ideal dos heróis que defendem nas guerras os valores de quem os manda
para lá).
Quanto à afirmação do senhor almirante, que os navios de guerra têm redundâncias, é verdade, mas quando estão em condições mínimas de sair para o mar, isto é, se dois motores estão operacionais, há redundância, se só há um não há (esta teoria aplica-se também aos navios de cruzeiro, pela negativa, nem sempre têm redundância, que no caso da energia é essencial para equilibrar o navio em caso de tempestade). Ainda guardadas as devidas proporções, quando eu tive um veleiro de 6 m, tinha dois motores fora de borda (essenciais para as saídas ou entradas ou falta de vento e excesso de corrente) e só saía se os dois estivessem a funcionar. Redundâncias ...
CONCLUSÃO E RECOMENDAÇÃO – Permito-me estabelecer uma
correlação entre esta história e as consequências dos desinvestimentos em sistemas
e equipamentos sociais. No caso da Marinha, existem obrigações de defesa que
pelo TFUE, considerando as caraterísticas das regiões insulares e a debilidade
da estrutura socio económica, justificam uma franca cooperação entre a EU e Portugal.
Do lado nacional, tem de haver a coragem de exigir a
participação financeira da União Europeia, mas mais ainda, é necessária a
coragem para dinamizar a produção dos projetos e os planos sem os quais não há
comparticipação financeira, por mais que isso custe a quem beneficie do statu
quo das coisas.
Do lado da EU não é aceitável que os seus órgãos se
desculpem com as opções diferentes do governo português nem se deixem conduzir
pelos comissários que o governo português lhes envie.
O caso do acidente de comboios na Grécia (existem ainda em
Portugal troços com cantonamento telefónico em via única e não está clara a
substituição ou convivência do sistema CONVEL com o ERTMS via STM) mostra que
não pode haver complacência com a negligencia dos governos em cumprir as
diretivas comunitárias sobre a ferrovia como aconteceu na Grécia com a falta do
controle automático da posição e da velocidade dos comboios. Em Portugal também
não é clara a resposta ao procedimento de infração por insegurança nas
passagens de nível (não venham com os suicídios, as mortes de adolescentes pelo
efeito de sucção ou de um jovem atropelado quando corria para apanhar o comboio
para escola não são suicídios, e quem
atrasar a solução pode ser considerado cúmplice).
O recente relatório do Tribunal de Contas Europeu, ECA dá-me
razão, a ferrovia na Europa está muito longe de retirar as mercadorias da
estrada (o que por sinal é uma diretiva, mas os governos criam manobras de
diversão em termos estratégicos e a EU negligencia o cumprimento das diretivas:
https://www.eca.europa.eu/Lists/ECADocuments/SR-2023-08/SR-2023-08_EN.pdf
Recomenda-se alteração das estratégias e atenção aos
pormenores indispensáveis para o planeamento e a realização.