terça-feira, 21 de março de 2023

Os navios elétricos da Transtejo/Soflusa

De repente, o Tribunal de Contas desencadeou uma polémica com a queixa que fez seguir para o Ministério Público sobre a compra dos navios elétricos pela Transtejo/Soflusa.

A polémica é muito desigual, porque a opinião pública maioritariamente parece escandalizada e partilha os argumentos do TdC condenando a administração demitida, e muito poucos comentários têm aparecido dizendo que o TdC poderá ter bem fundamentado juridicamente o seu parecer, mas não tem competência técnica, entendida como de engenharia, para utilizar certos termos na comunicação que divulgou.

Também eu não poderei avaliar se o processo de aquisição dos 10 navios foi juridicamente bem conduzido, mas posso comentar algumas afirmações do TdC :

1 - “A Transtejo comprou um navio completo e nove navios incompletos, sem poderem funcionar, porque não estavam dotados de baterias necessárias para o efeito. O mesmo seria, com as devidas adaptações, comprar um automóvel sem motor, uma moto sem rodas ou uma bicicleta sem pedais, reservando-se para um procedimento posterior a sua aquisição”  
                          -  tomemos então o exemplo do automóvel. Poderá dizer-se que ele está completo, na aceção que   parece ser a do TdC, de que um veículo só está completo se puder funcionar, se o depósito de combustível estiver vazio? que deixou de estar completo de a gasolina falta a meio da viagem? Simplifiquemos, o automóvel não está completo se não tiver um depósito de combustível, assim como um automóvel elétrico não estará completo se não tiver a bateria de tração (que equivale tecnicamente ao depósito de combustível, este armazena a energia potencial da gasolina, a bateria armazena a energia elétrica; até existe a equivalencia, 1 litro de gasolina equivale mais ou menos a 10 kWh de eletricidade). Só que não se pode dizer que um navio elétrico sem bateria equivale a automóvel sem motor. Motor, do latim motorius, é o que move. Segundo uma definição mais técnica, motor é o conversor de energia que converte, por exemplo,  a energia química potencial da gasolina na energia mecânica do movimento, ou a energia elétrica no movimento. A bateria converte a energia recebida através de uma corrente e de uma tensão elétricas em, através duma reação química, energia elétrica potencial. Motor é uma coisa, bateria é outra coisa. A comparação correta seria automóvel sem depósito de combustível. Também a citação de navios sem leme não parece correta, uma vez que existem navios sem leme, e se não me engano, até funcionam na Transtejo, com turbo-propulsores azimutais, isto é, grupos moto-propulsores que giram em torno de um eixo vertical fazendo as vezes do leme.
E se em vez de comprar navios de baterias a Transtejo tivesse encomendado navios a hidrogénio? Viriam completos, com a sua célula de combustível que  converteria o hidrogénio em eletricidade, mas também não funcionavam sem a instalação em terra de eletrolisadores que produzissem hidrogénio a partir da água (no pressuposto que por razões ambientais o hidrogénio não deveria ser produzido a partir de eletricidade com origem em centrais de gás natural).Só que ainda não se difundiram em Portugal os eletrolisadores para produção local de hidrogénio, e é sempre um risco adotar uma tecnologia nova sem grande experiência em condições reais. Mas até se pode considerar a hipótese de alguns dos 10 navios virem a ser adaptados (evidentemente pelo seu fabricante) para tração híbrida, baterias de menor capacidade e hidrogénio.

2 - “a Transtejo disse ao Tribunal de Contas, num curto período de tempo, uma coisa e o seu contrário para justificar os contratos que submete” e até “faltou à verdade” quando submeteu o primeiro contrato a fiscalização prévia.“Os pressupostos em que o tribunal tomou a decisão de concessão de visto [no primeiro contrato submetido] foram incorretos, porque a entidade faltou à verdade. Sendo que se tivessem sido prestadas ao tribunal as informações corretas - como deveria ter sido feito - a decisão do tribunal poderia ter sido -, à luz do que se acabou de expor e da própria jurisprudência do tribunal nesta matéria - a de recusa do visto”.
              - evidentemente que é possível que o TdC tenha razões para se sentir "enganado" na altura do visto no primeiro contrato. No entanto, deveria ponderar que o contrao foi feito numa altura de evolução da tecnologia das baterias e do seu preço. Ignoro os termos do contrato, portanto tenho de reconhecer a possibilidade do erro e do engano induzido, mas também posso admitir que os colegas que fizeram o caderno de encargos da Transtejo também estivessem enganados, o que é aceitável tratando-se de uma tecnologia nova e evolutiva,  ao admitir que o fornecimento separado de baterias podia ser através de um concurso público. Como se verá adiante, por razões de segurança as baterias devem ser fornecidas pelo fabricante do navio, pelo que, a ter havido engano, poderá ter sido em boa fé e não por má fé. Até porque o argumento invocado pela administração demitida da Transtejo é válido, o custo de produção das baterias estava a baixar.


3 - "Recorrendo a regras de experiência e de conhecimento, mesmo básico, da realidade empresarial, a resposta só pode ser uma: havendo um intermediário, aumenta o preço” 
                      -  concorda-se que um conhecimento básico chegue a esta conclusão, um intermediário aumenta o preço, mas um raciocínio secundário deter-se-á em aspetos importantes. Por exemplo, numa aquisição de uma tecnologia complexa e recente como esta, a existência dum intermediário que detenha conhecimento técnico que previna soluções erradas ou perigosas pode justificar-se. Os custos dessa consultoria podem ser inferiores aos custos de um acidente por ignorancia na aquisição (estou aqui a fazer a equivalencia entre um consultor, ciente por exemplo dos riscos de integração de baterias suscetíveis a incendio, e o fabricante dos navios). Curiosamente, foi recentemente divulgado que algumas marcas de automóveis elétricos baixaram os custos de produção graças à incorporação das baterias na carroçaria do automóvel (lá está, o automóvel está completo com as baterias fabricadas pelo fabricante do automóvel, embora na industria automóvel seja normal o fabricante ser uma espécie de assemblador de peças fabricadas por subfornecedores), mas com o grave inconveniente de uma pequena colisão poder danificar o conjunto das baterias de tal modo que não terão reparação possível. Mas não é esta a única possibilidade de, ao evitar-se um intermediário competente e ir-se displicente e negligentemente cair nos braços dum subfornecedor mais barato, cometer um erro grave. Não foram divulgadas as caraterísticas técnicas dos navios. Ignoro por isso a capacidade das baterias e a autonomia, admitindo que possam ser de 1500 a 2000 kWh e à volta de 20 km de autonomia. Trata-se de valores que exigem muita confiança nas referências do fornecedor, que no caso da Corvus Energy, afirma ter 750 navios equipados.

4 - “o comportamento da Transtejo, com a prática de um conjunto sucessivo de decisões que são não apenas economicamente irracionais,mas também ilegais, algumas com um elevado grau de gravidade, atinge o interesse financeiro do Estado e tem um elevado impacto social” O contrato inicial, com o prazo de execução de três anos, foi celebrado, após concurso público, com a empresa espanhola Astilleros Gondán, empresa a que a Transtejo entendeu, através de uma aditamento no contrato, comprar posteriormente, por ajuste direto, as “nove baterias que não faziam parte, por opção sua, do contrato de aquisição dos navios (e uma bateria)”. A Gondán, por sua vez, compraria as baterias ao fabricante, a Corvus Energy, para as revender à Transtejo. A Transtejo alegou que já teria tentado comprar as baterias, por ajuste direto, ao fabricante, mas este recusou. Quanto ao aditamento ao contrato para a aquisição das baterias, o TdC não tem dúvidas: “É ilegal com dois fundamentos: a violação dos princípios da concorrência e da igualdade”, porque iria criar “uma dependência da entidade pública relativamente a um fornecedor”, e a violação do Código dos Contratos Públicos, por falta de preenchimento dos requisitos para a modificação objetiva do contrato.
                       - Um dos maiores erros da engenharia portuguesa, não na conceção ou no projeto, mas na planificação da obra e na fiscalização, foi o desastre do tunel do metropolitano no Terreiro do Paço, em 2000. O túnel já tinha sido construido por um empreiteiro, mas teria de ser ligado à estação que ainda não tinha sido construida. Essa obra deveria ter sido feita pelo mesmo empreiteiro pela simples razão da garantia do túnel. Mas a administração da altura achou a proposta muito elevada e fez um concurso público. Quem ganhou o concurso subcontratou os carotadores que abriram os buracos para injeção de betão e consolidação de estacas sem a presença dos diretores e fiscais da obra, provocando a destruição parcial do túnel. Felizmente não morreu ninguém. Foi um exemplo de que pruridos jurídicos virtuais não devem sobrepor-se às razões técnicas reais.
Conto este episódio porque a analogia é evidente, as baterias de iões de lítio têm um problema grave. Defeitos de fabrico ou excessiva concentração de modo a subir a densidade energética em Wh por kg pode tornar as baterias suscetíveis a incêndios espontâneos por fusão do lítio, que funde a 180ºC, provocando dendrites e curto circuitos entre os elétrodos. As baterias de fosfato de lítio/ferro terão maior imunidade aos incêndios, mas a sua densidade energética é cerca de metade da dos iões de lítio o que é decisivo na tração. 
Os incendios podem tambem ter origem em colisões ou falta de ventilação. São do domínio público incêndios em automóveis de uma conhecida marca, quer espontâneos, quer na fase de carregamento rápido, quer na sequencia de colisões. Igualmente se verificaram espontaneamente incêndios em autocarros elétricos ao serviço da RATP em Paris. Não admira assim que deva ser o fabricante dos navios a responsabilizar-se pela garantia das baterias. As baterias para navios não são como rodas de bicicleta, o seu nível de capacidade exige rigor no fabrico para evitar o risco de incendios e não devem ser fornecidas fora da garantia do conjunto.
Aliás é um paradoxo na argumentação do TdC, se as baterias são parte integrante do navio, há que comprá-las ao vendedor dos navios. 

Mas não interessa esta discussão aos passageiros. 
Há que resolver o problema em nome dos utilizadores e substituir a queixa ao MP (arquivar a queixa, como se diz), cujos fundamentos técnicos deixam a desejar e revelam insuficiências de conhecimento técnico, por uma auditoria independente com técnicos conhecedores de engenharia naval e de tração elétrica, que desenvolva o seu trabalho com divulgação pública interativa fase a fase do respetivo progresso.
Devemos defender o princípio da separação de poderes, incluindo a independencia do poder judicial, mas também a interdependencia com os outros poderes, para que o poder judicial não queira considerar-se infalível e acima da realidade técnica, mantendo a confiança dos cidadãos (que não se repitam casos como a aposição do visto do TdC ao contrato da linha circular do metro em 2020, logo a seguir a uma lei da República, a 2/2020 que mandava suspender a construção da linha circular; a teoria do "cavaleiro" numa lei do orçamento que pretende inibi-la é uma teoria, não é uma disposição constitucional, o TdC não detém o poder da infalibilidade nem é uma turris eburnea acima de escrutíneo).


PS em 23 de março de 2023 -  apesar da divulgação de muita informação (ver notícia abaixo) continua sem se saber a capacidade das baterias, 1500 kWh? com um peso de 20 toneladas incluindo proteção mecânica? qual  a sua autonomia, 20 km ? com um consumo de 50 kWh/km?  qual a potencia (tensão e corrente) e o tempo de carregamento? segurança dos  postos de carregamento relativamente aos passageiros? qual a velocidade máxima e tempos de viagem para o Montijo (13 km) e para o Seixal (8 km)? 22 nós? 16 nós?
Pode ser que em caso de falhanço se possam adaptar as fuell cells para tração por hidrogénio. A Corvus Energy também fabrica, já que numa situação delicada da evolução tecnológica ficamos mesmo dependentes de um fornecedor. 
Salvo melhor opinião, evidentemente , a intervenção do TdC está a atrasar tudo e portanto a ferir o interesse público. Não seria a primeira vez. 


Informação adicional:

- fabricantes e caraterísticas de baterias para ferries:







- notícia sobre o processo de aquisição pela Transtejo


.




Sem comentários:

Enviar um comentário