Caro Colega, secretário de Estado das Infraestruturas
Mais uma vez lhe peço que não leve a mal eu dirigir-me a si de modo informal e escudado nos meus cabelos brancos.
Mas não resisto a comentar a sua intervenção na AR em 10 de março de 2023.
Tentemos um exercício de semiótica. A energia com que repetidamente a sua mão direita corta o ar, sublinhando claramente a determinação em ter as linhas de alta velocidade Porto-Lisboa e Porto-Vigo prontas em 2030, enquanto inclina a cabeça sem olhar para a assistência, indiciam (indiciam, não provam, apresso-me a declarar) o que poderá ser uma evidencia num país em que a modernização da linha do Norte se eterniza, isto é, que o estimado secretário de Estado não acreditará no que com tanta veemência diz :
https://canal.parlamento.pt/?cid=6700&title=reuniao-plenaria (momentos 00.43.14 - 00.43.25)
Não se escandalize com o que escrevo. Mais solidário é quem chama a atenção para as incorreções do que os pouco confiáveis amigos que acriticamente batem palmas às incorreções.
Permita-me que renumere os argumentos por que escrevo incorreções.
Andámos na mesma alma mater, embora à distancia de muitas gerações (muitas considerando o tempo da evolução técnica), e lá nos ensinaram para quê e porquê a Normalização. Sabemos que em Portugal se menospreza a Normalização, que achamos que temos especificidades que dispensam o cumprimento das normas, mas se esse é o senso comum, não é o do conhecimento técnico.
E neste caso, a normalização é o regulamento da União Europeia 1315, em fase de revisão, que inclui a construção em Portugal da sua parte das redes TEN-T (redes transeuropeias de transportes, no PFN chama-se-lhes RTE-T). Como objetivos principais temos a redução das emissões por substituição das viagens aéreas para Madrid e pela transferência da carga rodoviária para a ferrovia, beneficiando as exportações portuguesas. Sabemos todos a oposição a estes objetivos dos operadores aéreos e dos operadores rodoviários e da força dessa oposição.
Também lá nos ensinaram na alma mater que a complexidade técnica é um fator de avaliação mas não pode ser eliminatório, sob pena de descredibilização da profissão (para que serviria a engenharia se não quisesse resolver problemas complexos de transformação da matéria e aproveitamento da energia?).
Trago à discussão a complexidade técnica porque foi a expressão que usou no PFN para afastar a bitola UIC, apesar, como também referiu, das "inegáveis vantagens no transporte de mercadorias de longa distância". Et pourtant, são inegáveis, com o que se concorda, mas intangíveis, do que se discorda.
E mais escreveu no PFN que a "migração" da bitola tem "custos muito elevados, pode criar perturbações no tráfego ferroviário... com enorme risco associado" e que, considerando a posição geográfica de Portugal, poderiam criar-se "fatores adicionais de isolamento ao quebrar a continuidade da rede ferroviária no interior da Península ibérica" (julgo que se referia à hipótese do corredor sul ser construido em bitola UIC no lado português e em bitola ibérica no lado espanhol, assumindo que Espanha não quer cumprir o regulamento 1315, quando é Portugal que não o cumpre).
Por Mercúrio e por São Cristóvão, não quero pensar no que poderia acontecer se na minha vida profissional tivesse recebido um documento técnico dos meus colaboradores tratando um problema técnico com argumentos retóricos. Eu compreendo que os defensores a outrance da bitola ibérica insistam no termo "migração", mas ninguém propôs a migração, o que se propõe é a construção em UIC das linhas novas do plano do regulamento 1315 das redes TEN-T, conservando a rede ibérica existente, como aliás é patente em várias zonas no país vizinho em que coexistem troços em bitola UIC, em bitola ibérica ou com 3 carris, até para evitar o referido risco das "perturbações no tráfego" ao mudar a bitola nas travessas polivalentes . E construir de raíz uma linha em UIC não fica mais caro do que em ibérica.
Deixe-me que comente as suas palavras nas entrevistas ao jornalista Carlos Enes:https://cnnportugal.iol.pt/videos/2030-era-irrealista-comissao-europeia-adia-financiamento-da- linha-de-tgv-entre-porto-e-vigo/640cd7590cf2665294d98fea
https://cnnportugal.iol.pt/videos/exclusivo-tgv-em-risco-de-financiamento-comissao-europeia-corrige-linha-lisboa-porto/640a3b9d0cf2cf9224fcaf68
Perante o afastamento pela comissária dos transportes Adina Valean do financiamento de linhas novas que em 2030 não estejam em serviço em interoperabilidade plena com a rede europeia, incluindo bitola UIC (caso da linha Lisboa-Porto), o estimado secretário de Estado reafirma, embora com pouca convicção, que existem exceções. Afirma nomeadamente que o próprio regulamento prevê que possa construir-se em bitola ibérica e depois realizar uma análise de custos benefícios que possa concluir pela negativa, isentando o país de fazer a "migração" de bitola.
Não quero apoucar o raciocínio, mas aparentemente estamos já perante uma decisão anterior ao resultado da avaliação que obsessivamente rejeitará outra solução que não seja a exclusividade da bitola ibérica, como a experiência das sucessivas consultas públicas tem vindo a demonstrar. O que tem a gravidade de permitir a suspeita de que é possível manipular os cálculos das avaliações de modo a conduzir aos resultados pretendidos. Vem a propósito citar Paul Mees, para quem este tipo de avaliação pode vir envolta num nevoeiro de deslumbramento das pessoas pelo virtuosismo dos cálculos.
Vejamos o que diz o número 1 do artigo 16a da proposta de 6dez2022 de revisão pelo Conselho europeu do regulamento 1315 : que as linhas a construir integrantes das redes TEN-T terão até 2030 de estar em bitola UIC - é o caso da linha Lisboa-Porto e, para a linha Porto-Vigo, 2040.
Como exceção, diz o número 2 do artigo 16a: que não estando planeadas linhas de ligação a uma fronteira à data da entrada em vigor do regulamento revisto (provavelmente será 2024) o Estado membro elaborará no prazo de 2 anos (2026?) num plano de linhas de ligação à fronteira com uma avaliação que inclua uma análise de custos benefícios que possa justificar a não construção das linhas em bitola UIC - não é o caso, por já estarem planeadas, das linhas Lisboa-Porto, Porto-Vigo, Aveiro-Salamanca e Évora-Badajoz, isto é, não se põe a hipótese da análise de custos benefícios negativa (espero que concorde, o traçado definitivo vem depois do planeamento, que inclui um traçado prévio suscetível de acertos).
Vejamos então o que diz o número 3 do artigo 16a: os Estados membros com uma rede de bitola diferente da bitola UIC identificarão, numa avaliação a elaborar coordenadamente com os Estados vizinhos até 2 anos após a entrada em vigor do regulamento revisto (2026?), as linhas existentes ou cuja construção tenha começado, que se sobreponham aos corredores internacionais das redes TEN-T, com vista à sua migração para bitola UIC. Tal avaliação incluirá uma análise socio-económica de custos benefícios sobre a viabilidade dessa migração e uma avaliação do impacto sobre a interoperabilidade.
Diz ainda o número 3 do artigo 16a que nessa avaliação se basearão os Estados membros para, no prazo de 1 ano (2027?) elaborarem um plano claramente calendarizado de migração para a bitola UIC.
A que troços será aplicável o número 3 do artigo 16a? Entramos no domínio da subjetividade, tal o rebuscado das propostas de alteração do regulamento, provavelmente por influencia dos governos finlandês e português, ciosos das suas redes de bitola diferente da UIC. Propostas de alteração perfeitamente dispensáveis, considerando as preocupações da União Europeia de conetividade, coesão territorial e interoperabilidade transfronteiriça de regiões periféricas, explícitas nas alíneas b) e d) do artigo 12. Curioso os países bálticos não terem dúvidas dobre a Rail Baltica.
Será aplicável ao troço Évora-Badajoz cuja construção já foi iniciada, mas duvido que seja aplicável a Aveiro-Pampilhosa-Mangualde-Salamanca, isto é, a atual linha da Beira Alta, uma vez que ela não coincide com o traçado previsto no regulamento 1315, até porque se pretende um novo traçado com pendentes iguais ou inferiores a 1,2% .
Igual raciocínio para os troços Lisboa-Porto e Porto-Vigo. Isto é, o número 3 do artigo 16a apenas requererá uma análise de custos benefícios para a migração para UIC do troço Évora-Badajoz. Mas isso é uma redundância porque este troço faz parte do corredor atlântico conforme os mapas do regulamento revisto e o artigo 13 define como prioridade dos corredores europeus "a interoperabilidade plena da rede de mercadorias através da União" e "o desenvolvimento de uma rede de alta velocidade para passageiros ligando centros urbanos através da União".
Em resumo, não parece dever ter-se muita esperança em análises de custos benefícios para evitar uma rede UIC em Portugal. No entanto, o número 5 do artigo 16 vem lançar alguma confusão (espera-se que até à aprovação o texto seja simplificado e clarificado ou simplesmente eliminado) quando admite isenções temporárias, de extensão a definir discricionariamente pela Comissão Europeia com base numa análise de custos benefícios negativa. O que daria esperança ao estimado secretário de Estado de poder manter a bitola ibérica quando afirmou que há exceções ao objetivo de bitola UIC até 2030.
Contudo, a resposta da Comissária foi clara, pode construir a linha Lisboa-Porto em bitola ibérica, mas em 2030 ela deverá estar em UIC, isto é, conclui-se a linha em ibérica e encerram-se logo a seguir troços para mudar para UIC - por favor, levante a indeterminação e siga os mapas das redes TEN-T do regulamento europeu.
Ainda uma observação sobre as análises de custos-benefícios. Sem prejuízo da metodologia referida no PFN, conviria seguir as orientações comunitárias recomendadas pelo Tribunal de Contas Europeu (ECA) e realizar uma ACB abrangente para o conjunto das redes TEN-T em Portugal, não limitada a troços regionais.
Convirá igualmente considerar os argumentos do estudo socio-económico e ambiental "Smart and Affordable High Speed Services in the European Union" promovido pela Europe's Rail Joint Undertaking (EU-Rail) e executado por Ernst & Young/Universitá Bocconi/Blue Arches Consultancy :
https://rail-research.europa.eu/publications/smart-and-affordable-rail-services-in-the-eu-a-socio-economic-and-environmental-study-for-high-speed-in-2030-and-2050/
Assim, propõe-se uma análise de custos benefícios análoga ou melhorada da apresentada no 10ºcongresso do CRP no LNEC, em julho de 2022, incluindo a comparação do
valor das exportações por ferrovia para a Europa além Pirineus, por um
lado, com os constrangimentos atuais e a
quota inferior a 2% de mercadorias para a ferrovia quando comparada com a
rodovia, e por outro lado, com a linha nova Aveiro-Salamanca-Irun em linha nova
com pendentes inferiores a 1,25% e uma quota de
30% para a ferrovia :
https://1drv.ms/b/s!Al9_rthOlbwewRhhykTGy-BDVeEY?e=fYXuf1
Aceite os melhores cumprimentos com votos de que até outubro possa haver um debate participado e aberto com argumentos técnicos e disponibilidade para aceitar concessões
Notas :
1 - comentários às propostas de revisão do regulamento 1315 :
https://1drv.ms/w/s!Al9_rthOlbwewkTzOOWX0f-NKXRG?e=hz21jN
2 - a perspetiva de Espanha do corredor atlântico
http://fcsseratostenes.blogspot.com/2023/03/o-corredor-atlantico-na-perspetiva-de.html
PS - Mais uma vez a cimeira luso espanhola de 15 de março, nas Canárias, evitou o tema de uma efetiva coordenação da estratégia ferroviária de ligação à Europa. Trata-se de um erro muito grave, e não podemos assacar grandes culpas aos nossos vizinhos
.
Grande lição acaba de explanar ao sr. Secretário das Infraestruturas.
ResponderEliminarO problema é que outras vozes, mais mandantes, o obrigam a justificar que o Bom é Mau, bem acolitado pela IP a sua conselheira técnica.
Como saberá, e tão bem se aplica à quase totalidade da nossa classe politica, "O PIOR CEGO É AQUELE QUE SE NEGA A VER ".~
Valha-nos a santa Adina Valean e o seu cofinanciamento, para se conseguir fazer o que tem de ser feito.
Felicitações . Mais um grande texto este seu. Abraço.