terça-feira, 28 de março de 2023

O navio Mondego, a missão abortada às ilhas Selvagens e mais uma vez a correlação desinvestimento-acidentes

 

O navio Mondego  e a missão abortada às ilhas Selvagens

https://www.msn.com/pt-pt/noticias/other/navio-mondego-sofre-nova-avaria-e-aborta-miss%C3%A3o-ao-largo-da-madeira/vi-AA19atCD?ocid=mailsignout&pc=U591&cvid=d3103ea11ce34eefb057fbd50d116662&ei=45

 (PS em 7abr2023 - lamentavelmente, o senhor almirante chefe do Estado Maior veio dizer que a missão abortada às Selvagens foi causada por erro humano que "estão a investigar". Outro senhor oficial "esclareceu" que alguém não tinha visto ou tinha lido mal o sensor de combustível. Portanto tivemos uma tripulação que vai ser castigda e outra que a substituiu que comete erros humanos. Escrevi lamentavelmente porque me ensinaram na tropa que um comandante defende primeiro os seus homens em vez de os condenar publicamente, e depois em sede própria faz o que tem a fazer. Entretanto o advogado de defesa da primeira tripulação vem informar que o motor de estibordo não engrena e se aguardam peças) 

 

Há muitos anos, ainda não havia GPS, nem radiotelefones, nem relógios eletrónicos, nem sequer sextantes rigorosos, apenas astrolábios e tabelas astronómicas pouco fiáveis, o método preferido pela marinha britânica, então em pleno desenvolvimento da sua expansão imperialista, para a localização dos navios no oceano, era a barquinha. A barquinha era uma pequena boia a que se ligava um cabo de comprimento bem definido. À medida que o navio se deslocava, a barquinha ia ficando para trás (para a ré, stern, em inglês) e o cabo ia-se desenrolando. Contando o tempo que ele tinha levado a desenrolar-se (já havia relógios, que diabo) tinha-se a velocidade a que o navio se deslocava e generalizando, podia-se estimar o espaço percorrido (espaço igual a velocidade vezes tempo).

Evidentemente que era um método incerto, e aconteceu que numa tempestade, os navios da esquadra de um grande almirante tiveram de fazer uma arriscada viagem da Britânia para a irlanda. O marinheiro da barquinha fez as suas contas e avisou o almirante, pelos canais próprios, claro, que a manter-se o rumo ia bater-se nos escolhos de uma das muitas ilhas britânicas. O almirante, do alto da sua sabedoria, da sua experiência de mar e da pirâmide hierárquica, e em nome de sua majestade real, discordou. Perante a insistência do marinheiro, mandou enforcá-lo por desrespeito ao representante de sua majestade.

Imediatamente a seguir à cerimónia do enforcamento (não havia tubarões como nos mares da Bounty, e preferia-se por isso o enforcamento para que todos respeitassem a hierarquia), o navio almirante bateu com fragor nos escolhos anunciados pelo marinheiro e perdeu-se.  O real almirantado da Marinha britânica reagiu bem, perguntou à Academia das Ciências o que fazer e os académicos explicaram que se se medisse todos os dias a altura máxima do sol (o sol está mais alto ao meio dia, desde que não haja uns intelectuais a dizer que o melhor é mudar a hora) comparando a hora local do meio dia com a hora no fuso de Londres (Greenwhich) lida num relógio seguro, ter-se-ia a distancia ao fuso de Londres, isto é, a longitude. Se a memória não me falha, era uma das funções de Marlon Brando, na revolta da Bounty, ir registando as horas do relógio da longitude quando o sol estava mais alto.

Por exemplo, no momento em que se fizesse uma medição com o sol mais alto e o relógio com a hora de Londres marcasse 8 minutos depois do meio dia, isso queria dizer, se não erro muito,  que o navio estava a 220 km do fuso de Londres (longitude 2º).  Quanto à latitude, para isso havia o sextante entretanto aperfeiçoado e as tabelas astronómicas, idem.

Toda esta história me veio à lembrança ao ver hoje a notícia que o navio Mondego saiu atrasado do Funchal, possivelmente por reparação, para as ilhas Selvagens e teve de regressar pouco depois rebocado.

Isto é, o senhor almirante chefe, agora português, que foi de modo expedito, com pompa e muita circunstância, ralhar aos 13 marinheiros que o informaram de que o navio não estava em condições, terá ignorado, com a preocupação de ressalvar a santa hierarquia, uma tradição não confessada na Marinha, possivelmente porque nos submarinos, onde fez carreira, ela não é aplicável dada a natureza dos submarinos. A tradição diz que os desastres que acontecem têm uma causa estranha, que é o comandante que traz o azar, por mais competente que seja. Talvez por isso o jovem comandante do Mondego não fez o que devia ter feito, com medo de comprometer a sua carreira, informar por escrito o seu superior hierárquico que o navio não estava em condições, e que se quisesse, o superior hierárquico, que o navio saísse, que fizesse o favor de escrever que era o que queria tomando nota do parecer do senhor tenente comandante do Mondego.

Infelizmente para o senhor almirante chefe a realidade veio demonstrar que eram os 13 marinheiros que tinham razão, não ele, como no caso do almirante britânico anterior ao cálculo das longitudes.

Guardadas as devidas proporções,  quando eu estava ao serviço, não na Marinha, mas no Metropolitano, cumpria o que me mandavam desde que ficasse escrito que quem mandava conhecia a minha discordância. Nada de novo à superfície da terra, foi o que fez o coronel Dax, mais precisamente Kirk Douglas, no filme Horizontes de glória, quando o general mandou disparar sobre as próprias tropas se retirassem (enfim, de vez em quando, no processo histórico,  apodera-se das mentes o ideal dos heróis que defendem nas guerras os valores de quem os manda para lá).  

Quanto à afirmação do senhor almirante, que os navios de guerra têm redundâncias, é verdade, mas quando estão em condições mínimas de sair para o mar, isto é, se dois motores estão operacionais, há redundância, se só há um não há (esta teoria aplica-se também aos navios de cruzeiro, pela negativa, nem sempre têm redundância, que no caso da energia é essencial para equilibrar o navio em caso de tempestade). Ainda guardadas as devidas proporções, quando eu tive um veleiro de 6 m, tinha dois motores fora de borda (essenciais para as saídas ou entradas ou falta de vento e excesso de corrente) e só saía se os dois estivessem a funcionar. Redundâncias ...

 

CONCLUSÃO E RECOMENDAÇÃO – Permito-me estabelecer uma correlação entre esta história e as consequências dos desinvestimentos em sistemas e equipamentos sociais. No caso da Marinha, existem obrigações de defesa que pelo TFUE, considerando as caraterísticas das regiões insulares e a debilidade da estrutura socio económica, justificam uma franca cooperação entre a EU e Portugal.

Do lado nacional, tem de haver a coragem de exigir a participação financeira da União Europeia, mas mais ainda, é necessária a coragem para dinamizar a produção dos projetos e os planos sem os quais não há comparticipação financeira, por mais que isso custe a quem beneficie do statu quo das coisas.

Do lado da EU não é aceitável que os seus órgãos se desculpem com as opções diferentes do governo português nem se deixem conduzir pelos comissários que o governo português lhes envie.

O caso do acidente de comboios na Grécia (existem ainda em Portugal troços com cantonamento telefónico em via única e não está clara a substituição ou convivência do sistema CONVEL com o ERTMS via STM) mostra que não pode haver complacência com a negligencia dos governos em cumprir as diretivas comunitárias sobre a ferrovia como aconteceu na Grécia com a falta do controle automático da posição e da velocidade dos comboios. Em Portugal também não é clara a resposta ao procedimento de infração por insegurança nas passagens de nível (não venham com os suicídios, as mortes de adolescentes pelo efeito de sucção ou de um jovem atropelado quando corria para apanhar o comboio para  escola não são suicídios, e quem atrasar a solução pode ser considerado cúmplice).

O recente relatório do Tribunal de Contas Europeu, ECA dá-me razão, a ferrovia na Europa está muito longe de retirar as mercadorias da estrada (o que por sinal é uma diretiva, mas os governos criam manobras de diversão em termos estratégicos e a EU negligencia o cumprimento das diretivas:

https://www.eca.europa.eu/Lists/ECADocuments/SR-2023-08/SR-2023-08_EN.pdf

Recomenda-se alteração das estratégias e atenção aos pormenores indispensáveis para o planeamento e a realização.

 

1 comentário:

  1. Muito importante considero o seu penúltimo parágrafo e o seu link ( abaixo digitalizado ), sobre a recente auditoria 8 / 2023, do Tribunal de Contas Europeu, sobre a INTEROPERABILIDADE FERROVIÁRIA PARA MERCADORIAS, do qual tirei o seu pdf , que li em parte, e dele extraí também uns quantos sub-anexos.

    Claro que Portugal nem é sequer mencionado naquilo que fui lendo. Digamos também que com o "mole" do Carlo Secchi, o italiano nomeado Coordenador para o Corredor Atlântico, FOI O PIOR QUE NOS PODERIA TER ACONTECIDO e o MELHOR PARA ESTE NOSSO (DES)GOVERNO.

    Felicitações pelo descoberta deste recente documento

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