sexta-feira, 3 de outubro de 2014

No equinócio do outono de 2014, ainda os complementos de reforma

Alguém teve a ideia, uma vigília.
Numa estação de metro, para chamar a atenção dos passantes e, mais uma vez, da comunicação social.
Uma espécie de uma pequena "occupy a metro station", nada que se compare com a "occupy wall street", ou a "occupy Hong Kong", que desgraçariam a policia do senhor ministro Macedo.
E assim foi que nos encontrámos na estação do marquês, bem cedinho, ainda não eram as sete da manhã, quando os desprezados pelos senhores importantes do governo viajam nos transportes coletivos, saindo das tarefas noturnas de limpeza ou de manutenção, ou caminhando para a abertura e o apoio das células de produção.
Como escreveu Carlos Oliveira ao descrever o acordar de Lisboa:

Acordam pouco a pouco os construtores terrenos,
gente que desperta no rumor das casas,
forças surgindo da terra inesgotável,
crianças que passam ao ar livre gargalhando.
Como um rio lento e irrevogável,
a humanidade está na rua.


Receei que das correntes de gente que se deslocavam apressadas na correspondencia entre as duas linhas, escoando-se por entre os reformados com cartazes, saissem vozes criticas e discordantes.
È que o corte médio nos 1400 reformados foi de cerca de 640 euros, valor superior ao do vencimento de muitos dos que passavam.
Mas não, adivinho a contrariedade em alguns rostos, aqui ou ali uns resmungos, mas até comentamos entre nós que aos poucos as pessoas compreendem que o mal é a política de desvalorização dos salários que nos é imposta pela troika e pelos seus seguidores cegos, que prejudica todos os que trabalham em empregos não de favor.
Esta deflação mata-nos, porque os  preços baixos perseguidos pelo BCE e pela Alemanha só se conseguem com desemprego elevado, que faz baixar a procura nas regiões periféricas, enquanto nas regiões centrais e mais ricas condiciona o crescimento.
Muitos de nós já não aguentam muito tempo de pé. 
Sentamo-nos na esplanada do quiosque dos croissants e cafés. 
As reporteres da TV aproveitam para entrevistas que depois serão cuidadosamente visionadas antes da transmissão para não desagradar aos acionistas principais ou aos delegados do governo, no caso da RTP (estou a chamar delegados do governo aos admiinistradores, já que não foram nomeados após concurso público, como o é, por exemplo, o governador do banco do UK), a quem interessa que a opinião pública considere os reformados do metro uns privilegiados.
Um de nós explica pacientemente à reporter que se finge desinformada que os complementos de reforma se destinavam a aproximar o valor recebido após a reforma do ultimo salário, de acordo com uma fórmula válida no acordo coletivo da empresa desde 1973 e que deixou de ser aplicada aos novos empregados depois de janeiro de 2004.
E que a própria empresa, para apresentar indicadores de redução do quadro de pessoal, se empenhou em facilitar as saidas antes da idade da reforma.
 Isto é, havia um contrato em vigor que deixou de ser cumprido por uma das partes, e que agora a justiça nacional é rica em obstáculos que impedem o que se faz quando um contrato não é cumprido: ação de penhora sobre os bens imobiliários, que os há, ou sobre as rendas comerciais não ligadas ao transporte, que também as há (aluguer de fibra ótica, de espaços comerciais, de publicidade, de utilização do parque de sete rios para a camionagem).
Que era uma cláusula de privilégio? 
Sim, era, mas contratada numa altura em que os salários no metro eram inferiores ao das outras empresas públicas ou privadas.
E agora num sistema em que se mantem a exploração descarada dos trabalhadores menos qualificados (lá está, a bíblia da competitividade). E em que existem planos de pensões, de complementos e de créditos fiscais mais favoráveis em empresas como a PT, a EDP, o banco de Portugal, os CTT, a TAP...
E que se deve nivelar por cima e não por baixo, como os passageiros do metro compreendem.
Há casos em que o rendimento de um eletricista reformado era de 1400 euros brutos e foi reduzido de 700 euros, apesar de 42 anos de descontos. De um engenheiro com 40 anos de descontos que recebia 2000 euros e lhe foram cortados 1000 euros.
E quanto aos trabalhadores ativos atuais, apresentados pela comunicação social como privilegiados que absorvem os dinheiros dos contribuintes? 
Um maquinista próximo do nível máximo ganha menos de 1400 euros brutos; com os subsidios, nomeadamente de quilometragem, notando-se que estes não contam para o cálculo da pensão, pode chegar aos 2800 euros brutos.
No caso de um eletricista de sinalização, o vencimento não chega a 1200 euros e, com os subsidios, pode chegar a 1900 euros.
Mas tem de se reparar que são profissões que exigem qualificação, uma formação rigorosa em procedimentos de segurança, e que erros nesta profissão podem provocar acidentes.
Estranham-se estes vencimentos e estas pensões?
Então o que se deve fazer? pergunta a reporter, ao que o entrevistado responde: a primeira coisa a fazer é demitir o governo, para encetar politicas de crescimento.
Acho que essa parte foi cortada, bem como aquela em que o colega, já um pouco exaltado, dizia que era engenheiro, e não reconhecia competencia ao secretário de Estado Sergio Monteiro para opinar sobre as maravilhas das privatizações ou concessões das empresas ferroviárias de transporte,  nem ao senhor ministro Maduro para discutir e decidir quais os investimentos para os fundos comunitários, porque são assuntos de engenharia, não juridicos nem politicos.
Indiferente à discussão, o colega reformado especialista de telecomunicações, que se tem mantido atualizado, aproveitava o wi-fi gratuito na estação para seguir no seu smartphone o programa da rtp2 sociedade civil, dedicado, nem de propósito, aos idosos.
O sociólogo explica que o conceito de violencia sobre os idosos alargou-se, há por exemplo a violencia financeira... (como se aplica aos reformados em geral pelas pequenas reformas, e em particular aos reformados do metro, pela redução brutal dos rendimentos) ... e esta ideia desgraçada da centralização hospitalar, ajudando a desertificar o interior... (pois, para poupar impostos aos habitantes das cidades)...
Mas eis que vejo vinda do corredor do tapete rolante a figura do professor Cesar das Neves.
Eu simpatizo com o senhor.
Não é o caso do meu colega reformado que resmunga, aquele malandro, anda a dizer que somos uns privilegiados, como se não nos tivessem já imposto sacrifícios que não impuseram a outros. Como se a ameaça da concessão não seja por si só suficiente para os  protestos. Ele que se informe sobre o resultado das privatizações e concessões em Londres.
Mas eu simpatizo porque o vejo a frequentar os transportes coletivos.
Não é como o seu colega professor que foi um efémero ministro da economia mas que se desloca de carro com motorista para assistir a uma sessão num museu da Baixa ou para se deslocar das suas consultorias para as suas universidades. Nunca se lhe ouviu uma palavra sobre a insustentabilidade da importação de combustíveis fósseis para fazer deslocar carros com motorista de um lado par ao outro de uma cidade de tráfego automóvel saturado nas horas de ponta.
É isto que digo ao professor Cesar das Neves quando ele diz que não há dinheiro depois da bebedeira dos gastos com infraestruturas públicas como o metro.
Como justificar a compra de 10 000 automóveis ligeiros por mês para encher as cidades e as vias rápidas de acesso às cidades?
São mais de 2 000  milhões de euros por ano.
É verdade que o negócio dos importadores não iria gostar.
Que me diz, professor, do primeiro anuncio na TV a seguir ao programa do doutor Medina Carreira em que ele se cansa a dizer que não há dinheiro para as despesas sociais seja o Mercedes classe C de quase 40 000 euros?
É que há dinheiro, mas em segmentos bem delimitados da sociedade.
Não no grupo de reformados do metro a quem cortaram duma vez entre 40 a 50% do seu rendimento, a que se deve adicionar o corte geral nas pensões de segurança social, independentes dos complementos de reforma.
Mas o professor não me responde, embrenhado na discussão com outros reformados, a quem faz questão de garantir que compreende porque estão revoltados e sentidos.
Diz isso porque é cristão, e  é a sua maneira de aliviar através do perdão a sua consciencia.
Eu gostaria de lhe dizer, mas não posso, que ele já se perde na corrente dos passageiros que se engolfam nas escadas para  linha amarela.
Que também já fui cristão, e que penso ter conservado a compaixão, a solidariedade e o espirito de igualdade depois de me ter desligado das obrigações da fé.
E que por isso me comovo quando leio citações como esta, que encontrei no livro "os dez erros da troika em Portugal, a austeridade, sacrificios e empobrecimento", de Rui Peres Jorge, ed. a esfera dos livros:

"orgulhamo-nos hoje de ser suficientemente duros para infligir sofrimento aos outros. Mas se observassemos um costume antigo segundo o qual ser duro consistia em suportar o sofrimento em vez de o impor aos outros, talvez pensassemos duas vezes antes de tão friamente preferirmos a eficiencia à compaixão"  Tony Judt, em Ill fares the Land 

São já cinco da tarde.  
Continua uma presença significativa de reformados.
Já passaram por aqui deputados dos partidos que não os do governo, delegações da CGTP, da UGT, da APRE, do MRPP.
Salva-nos Tatiana e as suas colegas, que operam o quiosque de croissants, cafés e merendinhas.
Este governo vai manter o corte dos complementos. 
Total. 
Não quer saber da redução brutal de 60% a 70% dos rendimentos, entre 2013 e 2014. Preocupar-se-á com medidas de maior impacto mediático para se preparar para as eleições de 2015.
Vai manter a hipocrisia de "suspender" os complementos enquanto os resultados liquidos do metro forem negativos. 
Claro que, da forma como são contabilizados, com indemnizações compensatórias e distribuição de receitas arbitrárias, sem contabilizar os benefícios da poupança de emissão de CO2 e de importação de combustíveis fósseis, claro que são negativos.
Não há metropolitanos no mundo que os tenham assim positivos. 
Isto digo ao meu colega reformado, apoiado na sua bengala mas felizmente muito melhor depois da operação.
Ah, mas reparo agora, vindo dos lados da EDP, cuja sede ainda não se deslocalizou para a zona da Boavista e São Paulo, com vistas para o rio, a roubar campo de visão ao miradouro de Santa Catarina, que se aproxima Sergio Figueiredo, um dos administradores da fundação da EDP, que ainda não se deslocalizou para a beira do rio, a nascente do museu da eletricidade. Projeto  à beira rio de integração estética, oportunidade e razoabilidade financeira duvidosas.
Não é reconhecido pelos meus colegas porque não entra em programas de televisão como Cesar das Neves.
Mas eu sigo a coluna dele no DN e apreciei imenso a análise que ele fez da evolução do PIB dos USA e do UK depois da crise de 1930, do Japão depois da crise de 1992 e da zona euro depois da crise de 2008.  Relacionou a duração antes da retoma com as medidas tomadas, crescimento após investimentos públicos, para aplaudir as orientações de Draghi e do BCE para os ditos investimentos públicos.
Por isso me chocou o artigo que dedicou às empresas de transporte, às medidas do senhor secretário de Estado, acreditando que vai poupar as indemnizações compensatórias,  e à divida de 20.000 milhões das empresas públicas de transporte, 3 vezes superior á do BES.
Deu-me a impressão de que falava sobre o que não sabia.
Ignorará que a enorme hemorragia da dívida do metro se deve aos investimentos do Estado nas infraestruturas dos tuneis que foram indevidamente levados à conta do metro e não às contas públicas (embora o Estado tivesse dado o aval)? Ignorará que foram os comissários politicos nomeados pelos governos (porque não sujeitos às regras dos concursos públicos) que contrataram os swaps?
Mas valerá a pena argumentar, quando a dívida da EDP é de 17.500 milhões de euros e o défice tarifário que lhe compete é da ordem de 2.400 milhões de euros (pois, o preço do título de transporte no metro também está abaixo do custo de produção)?
Valerá a pena argumentar que sim, o transmontano paga com parte dos seus impostos o  metro de Lisboa, assim como eu pago com parte dos meus impostos o serviço nacional de saude em Trás os Montes, que no interior é por definição de economia de escala economicamente menos eficiente.
Isto me preparava eu para discutir com Sérgio Figueiredo quando ele se deteve a ler os cartazes colados nos pilares, "alguns dos reformados do metro estão em dificuldades", "o complemento de reforma era um contrato desde 1973" ...  mas num instante retomou o passo e desapareceu na multidão.  
Em breve eram oito da noite.
Rarefaziam os reformados presentes, que era dia de jogo na TV.
Tatiana recolhia os restos nas mesas da esplanada.
Ajudei-a a apanhar uns guardanapos de papel do chão.
Tinha apreciado a melhoria do negócio do dia que os reformados lhe tinham trazido, mas não estava certa de concordar com a iniciativa, embora lhe parecesse que os cortes dos complementos eram apenas uma faceta da politica de desvalorização do fator trabalho que também a afetava a ela, e que, de acordo com o que aprendera, nós, os reformados, eramos credores e não parasitas.
Assim como assim, licenciara-se em sociologia, não chegava a ganhar 300 euros mas tinha esperança de ser chamada para um projeto em que se inscrevera numa universidade de Madrid, para inquéritos e estatísticas sobre a mobilidade de pessoas e seu relacionamento com o urbanismo, a implantação industrial, a circulação automóvel, segundo os critérios que os discípulos de Durkheim utilizam, diferentes das demagógicas opiniões dos nossos politicos e comentadores. 
Os últimos membros da comissão de reformados embrulharam os cartazes, os últimos grupos despediram-se com o jogo no pensamento, e eu desci as escadas com o nosso colega animado com a recuperação da operação que fizera no serviço nacional de saúde, até à próxima manifestação.

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