Meu caríssimo DN
Escrevo-lhe para lhe chamar a atenção para o perigo em que vem incorrendo já há uns tempos em dar guarida nas suas páginas a perigosos esquerdistas de grupos internacionais de interesses inconfessáveis que põem em causa a excelência das medidas e das orientações do atual governo e seus patronos do BCE,FMI e UE.
O perigo é, concretamente, permitir que cheguem ao público leitor, que também é eleitor, informações e dados que demonstram a falta de fundações sólidas para a versão do atual governo.
Corre-se assim o risco de, nas próximas eleições, os eleitores não votarem nos partidos que compõem a atual maioria.
Não bastavam as citações de prémios Nobel como Stiglitz e Krugmann, embora a sua credibilidade outros colaboradores do DN já foram apoucando.
Também foi dado pelo DN algum relevo a Thomas Picketti e ao seu Capital no século XXI, baseando-se em dados reais demonstrativos de que as desigualdades só podem aumentar enquanto o crescimento do rendimento da parte financeira for superior ao de quem trabalha. Mas como o livro tem quase 900 páginas e é duro de roer, talvez não haja problema com o sentido de voto dos eleitores.
Mais grave foi o DN ter publicada há pouco uma análise de um editor do Financial Times, Munchau, demonstrando que as ferramentas macroeconómicas dos decisores europeus são inuteis.
Que escandalo, contestar assim, despudoradamente, os dogmas trazidos á humanidade por Haiek, Friedman e ou fundamentalistas da escola de Chicago.
É verdade que o DN tem quem lhe responda a um nível superior, como aquele senhor diretor de uma revista espanhola que acredita na regressividade dos impostos e no sucesso da iniciativa privada por si só, ou como o evangélico João Cesar das Neves, para quem os reformados acima de 600 euros são uns privilegiados (já naquela historieta se contava que o ministro sueco teria respondido a Otelo, orgulhoso por ter acabado com os ricos em Portugal, que na Suécia tinham optado por acabar com os pobres).
É verdade que só fica bem a um governo ter uma comunicação social que lhe aponte erros ou omissões, desde que o faça de modo a não atingir a essencia da sua governação.
Esta é, como se sabe, a transferencia do controle da atividade económica e financeira (o pouco que resta) das entidades públicas para entidades privadas, dizendo sempre que o Estado fica com a função de regulador (apesar de só poder exercer a função de regulador quem tem "know how" e este só se consegue se se exercer o mesmo negócio).
Deixar que o interesse individual dos acionistas das empresas privadas, por iluminação divina como Bossuet dizia da origem do poder do soberano absoluto, contribuam para o interesse coletivo.
Repetir isso muitas vezes para que os eleitores acreditem com muita fé, por mais que os dados e a realidade da degradação do serviço nacional de saúde, da segurança social, do sistema educativo, dos níveis do emprego, mostrem o contrário.
Mas há que não exagerar, que não ultrapassar linhas vermelhas.
A entrevista a Mazzucato foi uma ultrapassagem da linha vermelha. A senhora vem demonstrar que para termos crescimento temos de ter, apesar da dívida pública, investimento não só privado mas também público, porque este gera, arrasta, aquele. Além de atacar o desemprego. E sabe-se que isso é verdade, se olharmos para a fórmula do saldo orçamental, igual ao investimento privado ou com fundos comunitários, menos as poupanças, menos as importações e mais as exportações.
Aqui, porém, o comportamento do DN tem sido irrepreensível, uma vez que tem dado destaque às orientações do senhor professor de direito da universidade de Florença que, sem experiencia industrial, tem desviado os fundos comunitários dos investimentos nas infraestruturas que fazem falta ao país para miríficas medidas de aumento de competitividade. Omitir assim as recomendações europeias nos corredores ferroviários de passageiros e mercadorias e no privilégio da produção de energia elétrica a partir de fontes renováveis é um bom contributo para que o país mantenha o seu ritmo lento de crescimento quando comparado com a restante UE, embora naturalmente se repita à saciedade que essas orientações estão no papel e são discutidas nas cimeiras (não se passa é à fase seguinte, sem a qual não há fundos comunitários, que é a elaboração dos projetos,coisa desagradável para quem não tem formação técnica).
Espera-se assim que a entrevista de Mazzucato caia no esquecimento, para que o atual governo possa continuar a repetir que só os investidores privados sabem gerir bem os investimentos. E que não se fale muito no investimento público do KfW, o banco de fomento alemão que se farta de investir em energias renováveis, nem no financiamento público do GPS, do Google Earth, da NASA, nem da Apple nos seus tempos de garagem, nem no financiamento das ligações entre a ciencia e a industria dos centros Fraunhofer alemães, sem esquecer o caso das comunicações por satélite da rede Iridium. Nem que se explique como, sendo a produtividade um quociente, tal como a relação dívida por PIB, a maneira de aumentar a produtividade é aumentar a produção (o numerador) a um ritmo mais elevado do que o fator de produção (o denominador, os recursos humanos, por exemplo, em vez de os despedir). E que para baixar a relação dívida por PIB, o melhor é aumentar o PIB (o denominador) a um ritmo mais elevado do que a dívida (o numerador).
Ainda por cima, a senhora veio dizer que os sábios dirigentes europeus fizeram um diagnóstico errado (polarizado na questão quem gasta demasiado ou não) e deram receita errada (limite de 3% para o défice, que nem a Finlandia cumpre) em vez de "obrigar" a investimento público em atividades inovadoras (produção renovável, ligação ciencia-industria).
Não devemos portanto contrariar o atual governo quando repete que os dirigentes europeus que impuseram a austeridade "tout court"é que sabem. Talvez porque, se se realizasse a reforma estrutural de que falou Mazzucato, a distribuição da nova riqueza deixaria de se fazer como atualmente e é natural que haja oposição a essa mudança de paradigma, desde os grandes escritórios de advogados/deputados, á classe politica oriunda das juventudes partidárias, ao setor não transacionável.
Com os melhores cumprimentos
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