Manta Rota é uma pequena localidade
da freguesia de Vila Nova de Cacela, entre Tavira e Vila Real de Santo António,
com uma praia atualmente muito procurada.
Tentando reconstituir a história
das três últimas gerações, talvez possa dizer-se que a geração mais antiga se
dedicava predominantemente à agricultura. A terra junto da costa é boa, existiam
muitos poços de água doce, e a estrada 125 para Vila Real e par Tavira não
estava saturada e facilmente escoava os produtos. Alguns grandes proprietários dos
terrenos até à serra exploravam calmamente as suas amendoeiras e alfarrobeiras.
Lembro-me de ver pequenos proprietários cultivando batatas a 300 metros da
praia. Havia também um grupo de pescadores, de pesca artesanal, que saiam à
noite para aproveitar a acalmia do vento (forte de norte de manhã e forte de
sudoeste de tarde), em canoas de 5 metros, de tábuas embricadas, construídas ali
ao lado, na praia de Altura, e reparadas em barracões das artes da pesca. Os barcos
eram retirados da água já por tratores que substituíram as juntas de bois da
geração anterior. Os veraneantes eram poucos, predominantemente da classe de
grandes proprietários de terras ou da classe alta alentejana que preferiam o
sossego da Manta Rota ao casino de Monte Gordo.
A segunda geração poucas
alterações teve relativamente à mais antiga, continuaram a cultivar-se batatas
junto da praia, mas por cidadãos cada vez mais idosos, e começou a assistir-se ao aparecimento de novas
construções que paulatinamente, muito lentamente, foram ocupando os terrenos de
cultivo no interior da povoação porque as preferências da classe média
emergente do país orientavam-se mais para o Barlavento, Albufeira, Quarteira,
enquanto a classe alta se entretinha por urbanizações seletivas .
A geração atual é diferente, já
desistiu da pesca artesanal o último pescador, ainda jovem. Dedica-se agora a
um restaurante de apoio de praia. Assa peixe e frangos no grelhador do
restaurante, abandonadas as armadilhas para polvos que se amontoam junto dos
barracões que foram das artes da pesca. Formou-se uma pequena classe média na
povoação de quem aluga casas e apartamentos aos veraneantes, depois da explosão
construtiva desde os anos 80 e 90 do século XX. Outros exploram cafés e
restaurantes e empresas de limpeza e manutenção. Ainda existe uma pequena
quinta incrustada na povoação, com animais de quinta e produção vegetal. Mas a
ameaça é a cobertura total dos terrenos por moradias e blocos de apartamentos.
Esta geração tinha uma escola para os seus filhos pequenos, a 200 metros do
acesso da praia principal. Quando alguém, com poder para isso mas sem
legitimidade humana para o fazer, decidiu que as escolas primárias com menos de
20 alunos fechariam, eu vi, num intervalo das aulas, 21 crianças no recreio da
escola. Mas a escola foi fechada, com os retransmissores dos decisores
poderosos a tranquilizar os pais, que um autocarro da câmara faria a ligação
até à escola de Vila Nova de Cacela. Este é o problema fundamental da
logística, comparar os custos de transporte para o centro com os custos de
manutenção das unidades deslocalizadas, só que é difícil os decisores de
educação terem noções de transportes, nomeadamente do valor, não custo, da
economia do transporte para o centro, embora gostem de falar em “descarbonização”.
E assim a última geração assistiu ao fecho da sua escola primária e ao
surgimento em seu lugar de uma série de moradias muito orgulhosas da sua
proximidade da praia, de uma ribeira e do centro da povoação, para usufruto dos
veraneantes da classe média de Lisboa, do centro e do Porto, apenas nas 6
semanas de férias, penando solitárias nos restantes meses do ano.
Será bom para economia este
estilo? Talvez estejam na hora de ponta na praia 10.000 pessoas. O que
significará uma rotação de 6 (semanas) x 10.000 = 60.000 pessoas por verão. Não
há dúvida, contribui para o PIB, só arranjar alimentação para tantas bocas, mas
os agricultores, os pescadores que deixaram de produzir?
Ou vendo de outra perspetiva,
como se fosse uma metáfora, fecharam a escola, cortaram na proximidade das 21
crianças, que sobrecarregaram com duas deslocações diárias dispensáveis. A
metáfora é que se isto terá sido como economizar na construção de uma pista de um
aeroporto, em vez de a fazer com 4000 metros, fazê-la com 2400 metros.
Economizaram, mas cortaram nas possibilidades da pista. Fechar uma escola é
cortar nas possibilidades de uma comunidade, e dispersar as crianças é limitá-las
nos seus voos.
Mas que importa isso? O ambiente
da Manta Rota no verão é brilhante, a multidão, feliz, preenche os próprios requisitos
de felicidade e de cumprimento de rituais, que o próximo, pelo menos é o que se
ouve discutir mas conversas próximas, é onde vão passar a primeira semana de
setembro, uns aos Açores, outros a Budapeste, outros à Estónia. Alegremente se esquecem os sinais
de prudencia e se reverenciam as virtudes cristãs da fé e da esperança em cada
vez melhores dias, graças às maravilhas da internet e das companhias aéreas
low-cost. Pedi numa esplanada uma tosta mista, uma cerveja e um café, e paguei
4,10 euros. É barato. Não admira que a inflação vá atrás das taxas de juro
negativas e já é deflação nos produtos alimentares. Os senhores economistas que
nos governam, ou, como a metáfora da escola, nos limitam e desgovernam, tinham
obrigação de perceber que algo vai mal. É muito bom ter um baixo custo de vida,
mas isso significa que os salários são baixos e que ninguém investe para ter de
vender o seu produto abaixo do custo de produção e distribuição. E deveriam
especialmente ouvir a senhora que se sentou a meu lado na sala de espera do
hospital de Faro, perguntou-me se eu era estrangeiro, porque precisava de
falar, de desabafar. Que era a quarta vez que lá ia por causa do pé que tinha
torcido ou partido, tinha caído em casa e mostrava-me os dois pés. Levantando-os
à altura do assento da cadeira, numa posição que seria cómica se não fosse
ultrajante, para que eu visse como o entrapado e com uma ligadura estava
inchado. Mas os médicos náo tinham querido engessar e ela com o RSI de 190
euros não conseguia pagar a luz e a água e nem sequer lhe tinham emprestado uma
canadiana porque assim não podia andar, era de Matosinhos mas há sete anos que
vive no Algarve. Contou-me quem eu fui acompanhar à ortopedia que o médico, de
forma simpática e triste, afirmou que eram 21 ortopedistas no hospital de Faro,
mas agora eram só 6, e que não havia ambulância durante a noite para transportar
o doente para Lisboa onde poderia ser operado se quiser esperar uma duas
semanas, por causa das prevenções contra os incêndios e os acidentes
rodoviários. No fundo, é a metáfora da escola primária de Manta Rota, entre
cortes e cativações fecha-se o que for necessário para ficar com o que for
possível, no triunfo das desigualdades.
Espero que tenha ajudado a senhora que aufere apenas 190 euros de RSI com a sua reforma milionária de 3000 euros.
ResponderEliminar
EliminarNão se proporcionou. Não me importaria aliás, já o faço com alguns familiares e conhecidos. Apesar da senhora estar com limitações, enquanto eu me virei para um lado para observar outros doentes, ela levantou-se e foi para a consulta juntamente com uma amiga. Mas pela troca de impressões, ela não estaria interessada em pedir ajuda, apenas que lhe consertassem o pé para que pudesse voltar a trabalhar. Isto é, no combate às desigualdades ela não alinharia em posições do tipo “frondeuse”, como dizem os franceses. Provavelmente estaria do lado de Olof Palm no seu encontro com Otelo, preferível erradicar a pobreza que a riqueza. Cumprimentos.