terça-feira, 13 de outubro de 2020

As ligações ferroviárias à Europa na cimeira da Guarda de 10 de outubro de 2020

 Exmo Senhor Primeiro ministro

A probabilidade de este texto vir a ser lido por V.Exa é muito próxima de zero. Assim como a probabilidade condicional de, no caso improvável de o ler,  considerar a sua mensagem como válida.

É que é conhecida a determinação de V.Exa na defesa da orientação que no seu grupo restrito decidiu, mas ficará este texto para memória futura.

Escrevo grupo restrito porque também é conhecida a sua preferência por debates das questões à porta fechada, sem a participação cívica prevista no artigo 48.2 da Constituição da República Portuguesa.

Será talvez a tradição maçónica, que já desde a revolução liberal de 1820 se entrosou nos orgãos decisórios do país.

Por formação profissional, seguindo a tradição dos que no século XVII impuseram aos membros da Academia das Ciências que pusessem em comum tudo o que descobrissem, não posso propor uma melhor ou única solução técnica. Tenho de estudar 2 ou 3 hipóteses, para cada uma aplicar uma análise multicritério (uma solução pode ser boa segundo um critério mas má segundo outro, como já  Tribunal de Contas divulgou ao criticar a adjudicação à proposta mais barata sem atender à qualidade) e uma análise de custos-benefícios (ou SWOT, como é mais fino dizer).

Por isso não gosto de ver as soluções que descem das instancias superiores, que foram decididas sem ouvir os argumentos de quem tem ou teve alguma experiência nos respetivos temas.

Por isso me entristeceu aquela parte da cimeira ibérica de 10 de outubro de 2020 em que o senhor Primeiro Ministro, respondendo a uma pergunta de uma representante espanhola da comunicação social,  diz que Portugal "seguro que un dia no continuará apartado de la rede ibérica de Alta Velocidad", mas que isso só na altura própria, e que não será uma ligação ponto a ponto, mas país a país.

Antes de mais, quero dizer-lhe que apoio inteiramente todas as outras decisões da cimeira que V.Exa e o seu homólogo espanhol comunicaram. São medidas muito válidas para a promoção das regiões e populações fronteiriças, bem como as amarrações dos cabos de fibra ótica a África e à América do Sul e a exportação de energia elétrica com origem renovável para a Europa (mas deixe-me excetuar essa ideia do transporte do hidrogénio para a Europa; peça aos seus assessores técnicos para o informarem sobre o estado atual e a eficiência energética da tecnologia do transporte do hidrogénio a grandes distancias).

Mas no capítulo da Alta Velocidade, verifico que mantém a posição que manifestou em entrevista em fevereiro de 2020. Tal como agora disse, "na altura própria" , "um dia". E entretanto o país perde sucessivamente fundos dos programas comunitários para a coesão (só há cofinanciamento se e só se forem apresentados projetos e análises de custos beneficios e nem sequer há projetos). Deixe-me corrigi-lo, quando se fala em Alta Velocidade, não é só para passageiros, é também para mercadorias (evidentemente com limtação de velocidade a 120 km/h) , para recompensar o esforço dos nossos exportadores.

Deve ter lido o que Olivier Blanchard disse, que não foram só as condições favoráveis das taxas de juro que evitaram o agravamento da crise em Portugal, foram as exportações.

Repare, ou peça aos seus assessores para consultarem as estatísticas do INE, desde 2019 que o valor das exportações por todos os modos para o conjunto Alemanha e França supera o valor das exportações para Espanha. 

E nos primeiros 8 meses de 2020, apesar da pandemia, os nossos exportadores venderam bens a Alemanha e França no valor de 8722 milhões de euros, mais 2,3% do que relativamente a Espanha. Não se trata de ligações ponto a ponto, é verdade (contudo, a ligação Lisboa-Madrid justifica-se pela maior eficiencia energética por comboio relativamente ao avião, mas terá de ser Alta Velocidade), mas é mais do que ligar Portugal a Espanha, é ligar os dois países à Europa, numa altura em que a Comissão Europeia tem o mapa dos corredores europeus ferroviários definido no plano das redes TEN-T (naturalmente em bitola UIC, sem os subterfúgios das travessas polivalentes do troço Évora-Caia) que V.Exa não quer cumprir porque não é a altura, quiçá, como disse, porque não há condições políticas. Numa altura em que o plano da Comissão prevê a transferência de 30% da carga de longa distância rodoviária para a ferrovia até 2030, o que já é tarde para preparar. 

Se não é altura agora, quando será? 

Provavelmente V.Exa não tem a experiencia real de acompanhamento de um investimento desde a definição de uma estratégia, de um programa, de estudos prévios comparativos, de elaboração dos projetos (sem os quais não há cofinanciamento), de procedimentos concursais, adjudicações, fabricações, instalações, ensaios ... longo caminho da ordem de 10 anos. Se a tivesse, essa experiência, talvez não falasse assim.

O ministro de V.Exa das infraestruturas não quer ouvir falar do, diz ele, falso problema da bitola, mas, senhor primeiro ministro, se não acreditam em quem critica a vossa estratégia, oiçam a própria IP, que até publicou um estudo sobre a redução de custos na exploração de uma linha de mercadorias entre Leixões e Paris. Embora o recurso à bitola UIC não seria tão rentável como a possibilidade dos cruzamentos de comboios de 740 metros, ainda assim a adoção da bitola UIC traduzir-se-ia numa economia de 7% nos custos da tonelada-km. É a IP que o diz, nem foram os críticos.

Não é altura agora? Depois de V.Exa responder à jornalista do Europress, "um dia Portugal seguramente que não ficará isolado da rede (ibérica) de Alta Velocidade - ver minuto 1.16 no quarto video em

https://www.rtp.pt/noticias/mundo/cimeira-iberica-plano-de-cooperacao-transfronteirica-nao-e-uma-estrategia-abstrata_n1265745

deixou o seu amigo Pedro constrangido, sabe-se lá se a pensar no desabafo do embaixador de Filipe II de Espanha no regresso a Madrid, depois de apresentar em Lisboa a candidatura ao trono português,"los portugueses son gente muy extraña"     (ver por exemplo

https://fcsseratostenes.blogspot.com/2012/03/dona-ana-e-don-alvaro.html.        )

Não é altura agora? um dia Portugal não ficará isolado? mas quando? e obrigou o seu homólogo a dizer que vão ter de encontrar caminhos, formas de conexão... 

Vão ter de encontrar? o mapa das redes TEN-T está feito há mais de 10 anos, o que se poderá discutir são as alterações, por exemplo, o tal eixo atlantico de que falou Pedro Sanchez, não confundir com o corredor atlantico, Sines-Madrid-Irun-Paris-Mannheim-Strasbourg. O eixo atlantico refere-se à ligação da Galiza a Leixões/Porto, uma vez que Leixões/Porto-Lisboa/Sines está incluido no mapa base (core) das redes TEN-T.

E quando Pedro Sanchez diz que têm de começar a pensar no corredor mediterrânico? Já começaram a pensar; o seu ministro Abalos já se comprometeu de Algeciras a Barcelona em bitola UIC  e de Valencia a Barcelona já em 2025.

Senhor Primeiro Ministro, perdoe-nos a linguagem rude, mas deixe-nos fazer uma análise semiótica das suas expressões ao responder à jornalista. O vinco na testa, as sobrancelhas descaídas, os músculos da face descontraídos, os olhos em alvo, são indícios da pouca convicção do que diz.

Senhor Primeiro Ministro, repare bem no que o seu homólogo disse, que Espanha há muitos anos que tem uma aposta forte na Alta Velocidade (e acrescentamos nós, começam agora a ter uma aposta forte tambem nas mercadorias, precisamente com o corredor mediterrânico, com o Y basco, com a reivindicação junto dos franceses da nova linha Bordeus-Hendaye e da terceira travessia dos Pirineus por Canfranc). 

E Portugal, não pode ter por enquanto?  Só quando "los Extremeños tienen su ferrocarril digno?" (um anterior ministro do Fomento espanhol dizia, estou a construir uma linha para Lisboa, não para Badajoz).

Como está longe a cimeira de Talin de 17 de outubro de 2013, entre os primeiros ministros de Portugal, Espanha e França, comprometendo-se com os corredores ferroviários para Mannheim em bitola UIC.

Provavelmente V.Exa não tem a experiência real de acompanhamento por dentro de uma empresa de transportes que tenha continuamente de se adaptar à evolução tecnológica e das condições externas (por exemplo, o desafio da eficiência energética para combate às alterações climáticas). Mas olhe para o exemplo de Espanha, a gestora das infraestruturas ADIF, tem um ramo ADIF rede convencional, e outro ramo ADIF Alta Velocidade. Uma empresa tem de ter uma área específica para manutenção  e outra área para novos investimentos com orçamentos completamente independentes. Para que não se diga que não se pode projetar desde já a nova rede porque se está a remediar a rede velha.

Desculpe esta linguagem rude, contrastando com a linguagem diplomática num bonito dia de sol, às portas da sé da Guarda, mas discordamos frontalmente da estratégia do  seu governo e de quem o aconselha. 

Continuaremos a insistir no cumprimento em Portugal do plano das redes core TEN-T .

Hasta la próxima cumbre.

3 comentários:

  1. Subscrevo na íntegra e pela oportunidade.
    Há que divulgar através da comunicação social não submetida ao jugo deste governo.
    Que tal o Observador ?

    Um abraço,
    LCS

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  2. Link enviado a jornalistas de vários orgãos de comunicação social, incluindo o Observador. Mas as matérias de mais interesse são o OE e o Covid
    Abraço

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  3. O link para o vídeo não está a funcionar no Firefox clicando com o botão direito do rato e a seguir em "abrir noutro separador" (se se fizer isto vamos parar às últimas notícias do site), mas só copiando o endereço e colando na barra do navegador. Pelo menos foi o que me aconteceu várias vezes.

    Fui ver o vídeo. Não sabia que o António Costa falava tão mal Português que precisasse de se exprimir em "españiol". E isto em território nacional!

    Excelente artigo, como sempre, caríssimo Sr. Engenheiro!

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