Há duas questões a que atribuo grande importancia pelos constrangimentos que introduzem no desenvolvimento de empreendimentos:
1 - o secretismo dos decisores, a quase todos os niveis, com particular gravidade ao nivel ministerial e ao nivel da alta direção das empresas, quer públicas, quer privadas
2 - a reivindicação, a nível do governo, da exclusividade de competências, quando constitucionalmente não é assim
Em consequencia destas duas atitudes, graves prejuizos são provocados em atividades de interesse público.
1 - o secretismo
Existe de facto uma cultura do segredo. O provérbio diz que "o segredo é a alma do negócio". Mas não será, pelo contrário pode ser a morte do negócio. Graças ao desenvolvimento do método científico, aquilo que se descobre deve ser posto ao serviço das comunidades (século XVIII, criação da Academia das Ciencias na Inglaterra, com essa obrigatoriedade). Nesta perspetiva, a apropriação de um segredo para fins lucrativos constitui crime contra o interesse público. O argumento que o interesse do lucro estimula a criatividade e a concorrencia e acaba por beneficiar o interesse público tem consistência, mas recorda-se o exemplo do criador da vacina contra a poliomielite, já recebo o meu ordenado no laboratório da minha universidade, não preciso de registar nenhuma patente.
Mas não é preciso discutir motivações, consideremos o artigo de Paulo Pena/Investigate Europe no Público de 2020-12-19:
de que destaco as críticas da provedora (European Ombudsman) da União Europeia, Emily O'Reilly : a falta de transparência torna " praticamente impossível que os cidadãos saibam como surgiu uma lei", o que " mina o seu direito de pedir contas aos seus representantes eleitos" e "visa o próprio cerne da legitimidade da União Europeia".
Trata-se de uma situação muito grave que contraria os artigos do TFUE (tratado de funcionamento da UE) :
- o art.10.3 : "Todos os cidadãos têm o direito de participar na vida democrática da UE. As decisões são tomadas de forma tão aberta e tão próxima dos cidadãos quanto possível "
- o art.15.3 : "Todos os cidadãos da União e todas as pessoas singulares ... que residam ... num Estado-Membro têm direito de acesso aos documentos das instituições, órgãos e organismos da União,"
É desgostante ver os governantes continuarem a invocar o segredo. Apesar das insistências dos partidos, continua a ignorar-se o conteúdo do contrato de venda do BES. É ilegal, porque as disposições legais da União prevalecem de per si sobre quaisquer cláusulas de confidencialidade, mas permanece a ilegalidade. Citando João Costa Pinto, também no Público, de 20 de dezembro: "Infelizmente continua a prevalecer entre nós uma cultura que muitas vezes não favorece o escrutínio público e a avaliação transparente de atos e decisões que envolvem interesses públicos relevantes. Questão de importância crítica em democracia."
É desgostante ver, à medida que se desce na escala hierárquica de decisões, o zelo secretista dos funcionários.
Os deputados municipais da câmara de Lisboa requisitaram há anos ao metropolitano de Lisboa os "estudos" que fundamentaram o EIA e a aprovação da linha circular. Não foram fornecidos.
Pessoalmente solicitei à CML informação sobre os procedimentos de monitorização da estabilidade do túnel do metro e dos edificios envolventes nas obras de remodelação. Não recebi a informação.
Relativamente a grandes investimentos públicos de transportes, existe informação sobre os planos, por exemplo o Ferrovia 2020 e o PNI 2030, mas é muito geral e não são patenteados os pormenores de projeto, ou pelo menos dos estudos prévios. Aliás, as decisões são tomadas em secretismo de modo a tornar irreversíveis as opções, sem que os cidadãos possam comparar com as alternativas. Por exemplo, o XXII governo e o metropolitano de Lisboa receberam a incumbência, pela lei 2/20 do orçamento de Estado para 2020, de estudarem planos de expansão para o metro e para a mobilidade na AML. Foi tornado público que o metropolitano estava a estudar o prolongamento da linha vermelha para Alcântara Terra/Santo Amaro, e que a CML tinha assinado um protocolo com 3 câmaras da AML. Mas todos os intervenientes se escusam a divulgar pormenores para que os cidadãos pudessem avaliar alternativas.
É a cultura do secretismo e da encenação de revelações fruto de um trabalho aturado e acima de qualquer crítica.
Eu diria que pode ser uma consequência da crença exgerada nas virtudes de pertença a um grupo restrito em cuja integração se compensam as inseguranças individuais, se vai consolidando a opinião dos membros em torno de uma opção do decisor máximo de inspiração ad hoc, e se ignora a gravidade de manifestações dissociativas em relação à realidade.
2 - a reivindicação pelo governo da exclusividade de competências
Trata-se de uma opção classificada por muitos como arrogante e supremacista a que o governo dá enfase quando contrariado por uma decisão da Assembleia da República, queixando-se, como menino contrariado, que lhe querem usurpar as competências, que não respeitam o princípio da separação de poderes.
Isso aconteceu , como referido acima, com a lei 2/20 do orçamento de Estado para 2020 aprovada pela AR. Imediatamente distintos dirigentes do partido do governo foram para a televisão dizer que decidir os traçados de uma rede de metro era uma competência exclusiva do governo. Será? Pensar que há dezenas de anos que nalguns países a decisão é por referendo popular...
Cito palavras do 1º ministro do XXII governo a propósito da hipótese de discutir o plano de reestruturação da TAP na Assembleia da República: "quem governa em Portugal é o governo" e "não vale a pena o governo ter a ilusão de que pode transferir para outro orgão de soberania aquilo que só a ele lhe compete fazer ... seria aliás um erro que assim fosse".
Não sei se o senhor primeiro ministro tem alguma cultura náutica, mas governar uma embarcação, ir ao leme, significa levar a embarcação segundo um rumo decidido por quem o deve decidir, e que muitas vezes não é quem vai a governar, ao leme (que tem, digamos, o poder executivo, de executar o dito rumo).
Mas centremo-nos no aspeto jurídico, que é aliás a formação do senhor primeiro ministro, começando pela Constituição da República Portuguesa :
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