sábado, 2 de janeiro de 2021

Intervenção política sob a forma de comentário sobre duas questões técnicas a que estou ligado

 Há duas questões a que atribuo grande importancia pelos constrangimentos que introduzem no desenvolvimento de empreendimentos:

1 - o secretismo dos decisores, a quase todos os niveis, com particular gravidade ao nivel ministerial e ao nivel da alta direção das empresas, quer públicas, quer privadas

2 - a reivindicação, a nível do governo, da exclusividade de competências, quando constitucionalmente não é assim

Em consequencia destas duas atitudes, graves prejuizos são provocados em atividades de interesse público.

1 - o secretismo

Existe de facto uma cultura do segredo. O provérbio diz que "o segredo é a alma do negócio". Mas não será, pelo contrário pode ser a morte do negócio. Graças ao desenvolvimento do método científico, aquilo que se descobre deve ser posto ao serviço das comunidades (século XVIII, criação da Academia das Ciencias na Inglaterra, com essa obrigatoriedade). Nesta perspetiva, a apropriação de um segredo para fins lucrativos constitui crime contra o interesse público. O argumento que o interesse do lucro estimula a criatividade e a concorrencia e acaba por beneficiar o interesse público tem consistência, mas recorda-se o exemplo do criador da vacina contra a poliomielite, já recebo o meu ordenado no laboratório da minha universidade, não preciso de registar nenhuma patente.

Mas não é preciso discutir motivações, consideremos o artigo de Paulo Pena/Investigate Europe no Público de 2020-12-19:

https://www.publico.pt/2020/12/19/mundo/noticia/conselho-ue-segredo-regra-atinge-legitimidade-ue-1943521

de que destaco as críticas da provedora (European Ombudsman) da União Europeia, Emily O'Reilly : a falta de transparência torna  " praticamente impossível que os cidadãos saibam como surgiu uma lei", o que " mina o seu direito de pedir contas aos seus representantes eleitos" e "visa o próprio cerne da legitimidade da União Europeia".

Trata-se de uma situação muito grave que contraria os artigos do TFUE (tratado de funcionamento da UE) :

-  o art.10.3 : "Todos os cidadãos têm o direito de participar na vida democrática da UE. As decisões são tomadas de forma tão aberta e tão próxima dos cidadãos quanto possível "

- o art.15.3 :  "Todos os cidadãos da União e todas as pessoas singulares ... que residam ... num Estado-Membro têm direito de acesso aos documentos das instituições, órgãos e organismos da União,"

É desgostante ver os governantes continuarem a invocar o segredo. Apesar das insistências dos partidos, continua a ignorar-se o conteúdo do contrato de venda do BES. É ilegal, porque as disposições legais da União prevalecem de per si sobre quaisquer cláusulas de confidencialidade, mas permanece a ilegalidade. Citando João Costa Pinto, também no Público, de 20 de dezembro: "Infelizmente continua a prevalecer entre nós uma cultura que muitas vezes não favorece o escrutínio público e a avaliação transparente de atos e decisões que envolvem interesses públicos relevantes. Questão de importância crítica em democracia."

É desgostante ver, à medida que se desce na escala hierárquica de decisões, o zelo secretista dos funcionários.

Os deputados municipais da câmara de Lisboa requisitaram há anos ao metropolitano de Lisboa os "estudos" que fundamentaram o EIA e a aprovação da linha circular. Não foram fornecidos.

Pessoalmente solicitei à CML informação sobre os procedimentos de monitorização da estabilidade do túnel do metro e dos edificios envolventes nas obras de remodelação. Não recebi a informação.

Relativamente a grandes investimentos públicos de transportes, existe informação sobre os planos, por  exemplo o Ferrovia 2020 e o PNI 2030, mas é muito geral e não são patenteados os pormenores de projeto, ou pelo menos dos estudos prévios. Aliás, as decisões são tomadas em secretismo de modo a tornar irreversíveis as opções, sem que os cidadãos possam comparar com as alternativas. Por exemplo, o XXII governo e o metropolitano de Lisboa receberam a incumbência, pela lei 2/20 do orçamento de Estado para 2020, de estudarem planos de expansão para o metro e para a mobilidade na AML. Foi tornado público que o metropolitano estava a estudar o prolongamento da linha vermelha para Alcântara Terra/Santo Amaro, e que a CML tinha assinado um protocolo com 3 câmaras da AML. Mas todos os intervenientes se escusam a divulgar pormenores para que os cidadãos pudessem avaliar alternativas.

É a cultura do secretismo e da encenação de revelações fruto de um trabalho aturado e acima de qualquer crítica.

Eu diria que pode ser uma consequência da crença exgerada nas virtudes de pertença a um grupo restrito em cuja integração se compensam as inseguranças individuais, se vai consolidando a opinião dos membros em torno de uma opção do decisor máximo de inspiração ad hoc, e se ignora a gravidade de manifestações dissociativas em relação à realidade. 


2 - a reivindicação pelo governo da exclusividade de competências

Trata-se de uma opção classificada por muitos como arrogante e supremacista  a que o governo dá enfase quando contrariado por uma decisão da  Assembleia da República, queixando-se, como menino contrariado, que lhe querem usurpar as competências, que não respeitam o princípio da separação de poderes. 

Isso aconteceu , como referido acima, com a lei 2/20 do orçamento de Estado para 2020 aprovada pela AR. Imediatamente distintos dirigentes do partido do governo foram para a televisão dizer que decidir os traçados de uma rede de metro era uma competência exclusiva do governo. Será? Pensar que há dezenas de anos que nalguns países a decisão é por referendo popular...

Cito palavras do 1º ministro do XXII governo a propósito da hipótese de discutir o plano de reestruturação da TAP na Assembleia da República: "quem governa em Portugal é o governo" e "não vale a pena o governo ter a ilusão de que pode transferir para outro orgão de soberania aquilo que só a ele lhe compete fazer ... seria aliás um erro que assim fosse".

Não sei se o senhor primeiro ministro tem alguma cultura náutica, mas governar uma embarcação, ir ao leme, significa levar a embarcação segundo um rumo decidido por quem o deve decidir, e que muitas vezes não é quem vai a governar, ao leme (que tem, digamos, o poder executivo, de executar o dito rumo).

Mas centremo-nos no aspeto jurídico, que é aliás a formação do senhor primeiro ministro, começando pela Constituição da República Portuguesa :

- art.2º - "A República Portuguesa é um Estado de direito democrático ... visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa"

Não queiramos uma utopia a curto prazo, contentemo-nos se o governo considerar o conceito de "participativo", ao menos para não desconsiderar quem acredita do artigo 2º .
- art.37º.1 - " Todos têm o direito ... de ser informados, sem impedimentos nem discriminações"

- art.48º.2 - "Todos os cidadãos têm o direito de ser esclarecidos objetivamente sobre atos do Estado e demais entidades públicas e de ser informados pelo Governo e outras autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos

- art.65º.5 - "É garantida a participação dos interessados na elaboração dos instrumentos de planeamento urbanístico e de quaisquer outros instrumentos de planeamento físico do território"

- art.162º.a) - "Compete à Assembleia da República, no exercício de funções de fiscalização ... apreciar os atos do Governo e da Administração"

-art.165º - "É da exclusiva competencia da Assembleia da República legislar sobre ... m) Regime dos planos de desenvolvimento económico e social ... z) Bases do ordenamento do território e urbanismo"

Como diz em resumo a descrição de competências no site do Parlamento, a AR "Tem competência legislativa exclusiva em matérias constitucionalmente determinadas (para além de poder legislar concorrencialmente com outros órgãos em todas as restantes matérias, com exceção das relativas à organização e funcionamento do Governo), para além de ser sua a atribuição de fiscalização da atividade do Governo e da Administração".

Em correspondência com a postura do seu primero ministro, a senhora ministra da coesão territorial exprimiu claramente o sentimento de superioridade e de apropriação pelo governo da verdade única como solução de um problema técnico ao definir a prioridade da ligação ferroviária Lisboa-Porto-Vigo em detrimento do plano comunitário das redes transeuropeias:

Donde, perante estes exemplos, a proclamação pelo governo de que são competência exclusiva sua as decisões sobre as redes ferroviárias de ligação à Europa (privilegiando o litoral em detrimento da coesão do interior)  ou a linha circular do metro (que contraria o PROTAML como base do ordenamento do território) ou o plano de reestruturação da TAP (ligado essencialmente aos planos de desenvolvimento económico) , considerando as disposições da Constituição da República, um leigo jurídico como eu é levado a supor que se trata antes de um caso de Ministério Público (ou a separação de poderes é apenas uma ilusão).

Podemos sempre ensaiar uma interpretação do foro da psicologia do comportamento social, que não será simpática para o governo, por colocar a hipótese de uma perturbação dissociativa da realidade que o impede de reconhecer a ilegalidade dos seus atos. Um pouco como o criminoso que entende como normal o seu modo de vida de assaltar pessoas, e cujo advogado poderá invocar a inimputabilidade como consequencia do disturbio dissociativo, citando casos interessantes da história: 
- a fidelidade fundamentalista e cega da seita do século XI dos Asasiyun (origem da palavra assassino)
- a crença que esfregando as mezinhas recomendadas pelo grande chefe zulu as armas do inimigo seriam inúteis, 
- a síndroma de McArthur Wheeler que achava que a câmara de video não o reconheceria no assalto ao banco porque tinha esfregado o rosto com sumo de laranja, 
- a síndroma de Dunning-Kruger, autores da experiencia de grupo com a realização de vários testes e  o pedido aos participantes para estimarem a classificação que mereceriam em cada teste; os que tinham piores resultados eram os que melhor se autoavaliavam, isto é, quando se é demasiado incompetente, não se é capaz de reconhecer a própria incompetência (créditos: David Marçal no Público de 27dez2020).




  

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