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Tribunal de Contas
em 25fev2021
Exmos Juízes Conselheiros do
Tribunal de Contas
Tomo a liberdade de vir ao
contacto de V.Exas na condição de antigo técnico do metropolitano de Lisboa por
não me sentir esclarecido sobre o processo de construção em curso da linha
circular.
Faço-o, de minha exclusiva
responsabilidade e reconhecendo as minhas limitações no domínio das ciências
jurídicas, por acreditar na validade dos artigos 37.1 e 48 da Constituição da
República Portuguesa ao reconhecer a qualquer cidadão o direito à informação e
participação em assuntos de natureza pública, como o é, certamente, o caso da
construção de linhas de metropolitano ao mobilizar dinheiros públicos.
Reconheço que é difícil
evidenciar as razões do foro da engenharia que podem justificar ou contrariar
uma solução técnica para a complexidade de um problema multidisciplinar como a
expansão de uma rede de metro. As variáveis envolvidas são muitas e da sua
interação podem não resultar certezas. Mas tenho a pretensão de, no meu
percurso profissional no metropolitano, ter recolhido experiências em áreas
como o planeamento de redes, a manutenção de equipamentos e infraestruturas
específicas de metropolitanos, a sua operação, a coordenação da colocação em
serviço de novas linhas e respetivo processo de homologação.
Curiosamente, vivendo-se a
euforia das redes sociais, um dos dirigentes de topo do metropolitano, ao defender o projeto da
linha circular das minhas críticas, escreveu numa delas que eu nunca tinha tido
experiência de planeamento de redes. Quando foi precisamente o acompanhamento
do trabalho dos consultores Siemens-Deconsult, na elaboração do plano de desenvolvimento
do metropolitano de Lisboa de 1974, uma das minhas primeiras tarefas no metro.
Outro dirigente de topo, provavelmente devido à sua juventude, afirmou numa
sessão pública que a linha circular fazia parte do plano de 2009 mais
abrangente que veio suprir a falta de um plano de expansão. Quando o plano de
1974, apesar de vários desvios que casuisticamente foram sendo cometidos, não
chegou a ser concluído numa das suas vertentes essenciais, o prolongamento para
Alcântara com correspondência com a linha de Cascais (a correspondência com a
linha de Cascais, na estação Cais do Sodré, é uma das principais fundamentações
da linha circular).
Dispensando-me de pormenorizar as
contraindicações do projeto da linha circular, desde as inconformidades, não
reconhecidas no RECAPE, do Estudo de Impacto Ambiental ao contrariar o PROTAML
de 2002 enquanto dizia que o cumpria, até à comparação com alternativas
escolhidas de antemão como perdedoras ou a afirmações sobre a frequência de
passagem dos comboios tecnicamente incorretas, vou resumir numa imagem as
razões por que uma linha circular restrita no centro de uma cidade
metropolitana não é uma opção prioritária enquanto as periferias não estiverem
servidas.
Considere-se o braço direito
estendido para a frente e a mão direita com a palma para a frente e na
vertical, com o polegar na horizontal, apontando para a esquerda. Nesta
configuração topológica representando Lisboa, o polegar é a linha de Cascais, o
indicador a linha de Sintra, o médio a linha amarela/Odivelas, o anelar a linha
verde (com a limitação do dedo se supor dobrado visto que não atinge a
periferia) e o dedo mínimo a linha da Azambuja/do Norte.
A linha circular do projeto do
metro vai ligar as bases dos dedos médio e anelar e descer até ao pulso, ponto
de encontro das radiais, onde faz a correspondência com a linha de Cascais (ou,
na linguagem mais imaginativa de alguns defensores do projeto, onde esta se
rebate na linha circular).
É agora fácil de ver, se uma das
principais justificações da linha circular é a ligação da linha de Cascais à
zona de serviços mais procurada de Lisboa, a base do dedo médio (Avenida da
República), então para os moradores da linha de Cascais chegarem mais cedo a
esse destino seria a correspondência não no centro do pulso, mas na raiz do
polegar, isto é, à entrada da cidade (por exemplo em Alcântara), fazendo-se a
ligação através de uma circular de raio superior (por exemplo, o prolongamento
da linha vermelha ou amarela para Alcântara).
Este problema topológico é o
mesmo que se pôs para as ligações rodoviárias e portanto mais fácil de mostrar
as implicações. É a segunda circular de Lisboa que foi prioritária (IC19-Campo Grande-A1),
não a primeira circular (Av.Ceuta-Av.Berna-Areeiro-Olaias), já de si sucessora
da primitiva Av.Infante Santo-Rato).
Justificou-se o senhor ministro
do Ambiente que só havia dinheiro para um percurso curto (por sinal com um
custo unitário de construção superior), mas eis que o Plano de Recuperação e
Resiliência permite esperar um cofinanciamento para uma expansão compatível com
uma visão integrada da mobilidade metropolitana, enquanto a própria Comissão
Europeia esclareceu que o cofinanciamento de 83 milhões de euros do POSEUR pode
ser atribuído pelo governo português a outros investimentos, desde que concluídos
até 2023.
Mas centrando-me no tema
principal desta comunicação, as minhas dificuldades com a interpretação correta
das disposições da lei 2/2020 de 31 de março de 2020 do Orçamento para 2020, cujo esclarecimento,
se aceite, respeitosamente venho solicitar.
Dizia o art.282 da lei 2/2020:
“Investimentos e expansão da rede do metropolitano de Lisboa
1 – O Governo promove, durante o ano de 2020, as medidas necessárias junto da
empresa Metropolitano de Lisboa, EPE para suspender o processo de construção da
Linha Circular entre o Cais Sodré e o Campo Grande, devendo ser dada prioridade
à expansão da rede de metropolitano até Loures, bem como para Alcântara e a
zona ocidental de Lisboa.
2 – Durante o ano de 2020, o Governo:
a) Realiza, através da Metropolitano de Lisboa, EPE:
i) Um estudo técnico e de viabilidade económica, que permita uma
avaliação comparativa entre a extensão até Alcântara e a Linha Circular;
ii) Os estudos técnicos e económicos necessários com vista à sua expansão
prioritária para o concelho de Loures;
iii) Uma avaliação global custo-benefício, abrangendo as várias soluções
alternativas para a extensão da rede para a zona ocidental de Lisboa;
b) Elabora um estudo global de mobilidade na Área Metropolitana de
Lisboa, nomeadamente quanto às redes de transportes públicos, à ligação dos
modos de transporte, à intermodalidade e interfaces; c) Com
vista ao normal funcionamento do metropolitano de Lisboa, procede:
i) À contratação urgente dos trabalhadores necessários, tendo em conta
as diversas áreas onde se verifica carência de pessoal;
ii) À reposição dos materiais necessários à manutenção e reparação do
material circulante e dos equipamentos;
iii) À realização urgente de obras nas estações que necessitam de
intervenção, principalmente devido às infiltrações.”
E tropeço aqui num problema de
lógica. Diz o artigo, “durante o ano de 2020”:
·
“… suspender o processo de construção da linha
circular”,
·
“ … realiza (através do Metropolitano) … um
estudo … que permita uma avaliação comparativa entre a extensão até Alcântara e
a linha circular”
·
“… elabora … um estudo global de mobilidade na
Área Metropolitana de Lisboa”,
e isso significa que passando o
ano 2020 o Governo deixa de estar obrigado a cumprir a lei de 2020? Ou isso acontece
porque entretanto foi aprovado o orçamento para 2021 e nele não constam estas
obrigações? ( a lei 75B/2020 do orçamento de 2021 fala em expansão da rede e
aquisição de material circulante e sistema de sinalização, não fala em linha
circular). Mas como se o orçamento de 2021 foi aprovado ainda em 2020, quando o
Governo ainda estava obrigado ao cumprimento do art.282? E que acontece se
expirado o ano 2020 o Governo não apresenta o trabalho encomendado? É como se
não tivesse sido encomendado? Ou reconhece a falta? Ou insiste na desculpa de
que a definição dos traçados das linhas de metro são competência exclusiva do
Governo e a AR está a violar o princípio da separação dos poderes
intrometendo-se? (registe-se a politicamente correta afirmação do senhor ministro
do Ambiente e Alterações Climáticas de que os traçados competem às áreas
metropolitanas, criando aparentemente uma zona de indefinição com o CSOP e subtraindo
daquela esfera de competências a linha circular)
Para além do problema lógico (ou
de interpretação semântica) depara-se-me aqui o problema jurídico, para cuja
análise já confessei as minhas limitações mas de cuja abordagem não desisto. Se
a AR é o órgão legislativo (art.165.1 da CRP: “É da exclusiva competência da
Assembleia da República legislar sobre … z) bases do ordenamento do território
e do urbanismo” ), então o Governo, enquanto poder executivo, executa, passe a
redundância. E sofre naturalmente a condição de ser fiscalizado pela AR
(art.162.a) ). Existe uma analogia interessante com a navegação, o homem do
leme governa a embarcação, mas o rumo é definido pelo comandante; governar não
é decidir o rumo, pelo menos a médio e longo prazo.
Eis porque, seguindo esta
sequência, não consigo entender a existência de justificação lógica para o
visto do Tribunal de Contas ao contrato do primeiro lote da linha circular,
aposto ainda em 2020.
Admitindo que a lei 75B/2020 de
2020-12-31, do orçamento de 2021, não extingue as obrigações da lei do
orçamento de 2020 (transferindo-as para anos subsequentes no caso de não prever
verbas para 2021 embora estejam disponíveis verbas dos apoios comunitários) ,
ou que não foi apresentado justificativo razoável para o não cumprimento, a
incompreensão estende-se aos dois vistos do Tribunal de Contas concedidos já em
2021 aos restantes dois lotes da linha circular, até porque a aprovação da lei
pela AR data de 26 de novembro de 2020, portanto dentro do prazo imposto pela
lei 2/2020. De facto, entre abril e dezembro de 2020 teria sido possível ao
Metropolitano executar o estudo requisitado, e ao Governo promover um concurso
público internacional para execução do plano global de mobilidade; isto é, não
foi cumprida a lei 2/2020.
Ainda por uma dedução lógica, a
ausência desse plano global de mobilidade fere de inconsistência relativamente
aos mecanismos institucionais de organização do território os programas de
novos traçados divulgados por três câmaras da AML em julho de 2020 e plasmados
no PNI 2030 e, recentemente, na proposta do Plano de Recuperação e Resiliência.
Acresce, adicionando gravidade ao
incumprimento exposto, que também ao art.283, apesar de publicas afirmações de
que se está a trabalhar, no Metropolitano, para equipamento de todas as
estações com meios de acesso e instalações sanitárias para pessoas com mobilidade
reduzida (sendo verdade que nalgumas, poucas, se vêem obras que se espera
incluam esses objetivos), não se seguiu a apresentação de um plano credível em
datas para a sua execução.
Art.283 da lei 2/2020:
“Promoção
da acessibilidade no metropolitano de Lisboa
Tendo em vista o cumprimento da legislação
sobre acessibilidades e para que sejam progressivamente eliminadas as barreiras
existentes, o Governo promove a concretização de obras nas estações do
metropolitano de Lisboa já existentes, por forma a torná-las totalmente
acessíveis a cidadãos com mobilidade reduzida, nomeadamente através da
instalação de elevadores e/ou plataformas elevatórias para cadeira de rodas e
da adaptação dos corrimãos para leitura em braille do número de degraus.”
Em síntese, considerando como
técnico do domínio da mobilidade urbana que o processo de aprovação da linha
circular menorizou provavelmente para além do razoável as deficiências técnicas
do projeto da linha circular, julgo que como cidadão tenho a obrigação moral de
transmitir ao Tribunal de Contas as minhas preocupações, na expetativa de que
eventuais erradas interpretações minhas das questões jurídicas conexas possam
ser esclarecidas por V.Exas.
Com os melhores cumprimentos
Fernando Santos e Silva
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