domingo, 28 de fevereiro de 2021

Mensagem enviada ao Tribunal de Contas sobre a construção da linha circular do metropolitano de Lisboa

 

   Enviado pelo formulário on line do site

 do  Tribunal  de  Contas  em  25fev2021

Exmos Juízes Conselheiros do Tribunal de Contas

 

Tomo a liberdade de vir ao contacto de V.Exas na condição de antigo técnico do metropolitano de Lisboa por não me sentir esclarecido sobre o processo de construção em curso da linha circular.

Faço-o, de minha exclusiva responsabilidade e reconhecendo as minhas limitações no domínio das ciências jurídicas, por acreditar na validade dos artigos 37.1 e 48 da Constituição da República Portuguesa ao reconhecer a qualquer cidadão o direito à informação e participação em assuntos de natureza pública, como o é, certamente, o caso da construção de linhas de metropolitano ao mobilizar dinheiros públicos.

Reconheço que é difícil evidenciar as razões do foro da engenharia que podem justificar ou contrariar uma solução técnica para a complexidade de um problema multidisciplinar como a expansão de uma rede de metro. As variáveis envolvidas são muitas e da sua interação podem não resultar certezas. Mas tenho a pretensão de, no meu percurso profissional no metropolitano, ter recolhido experiências em áreas como o planeamento de redes, a manutenção de equipamentos e infraestruturas específicas de metropolitanos, a sua operação, a coordenação da colocação em serviço de novas linhas e respetivo processo de homologação.

Curiosamente, vivendo-se a euforia das redes sociais, um dos dirigentes de topo  do metropolitano, ao defender o projeto da linha circular das minhas críticas, escreveu numa delas que eu nunca tinha tido experiência de planeamento de redes. Quando foi precisamente o acompanhamento do trabalho dos consultores Siemens-Deconsult, na elaboração do plano de desenvolvimento do metropolitano de Lisboa de 1974, uma das minhas primeiras tarefas no metro. Outro dirigente de topo, provavelmente devido à sua juventude, afirmou numa sessão pública que a linha circular fazia parte do plano de 2009 mais abrangente que veio suprir a falta de um plano de expansão. Quando o plano de 1974, apesar de vários desvios que casuisticamente foram sendo cometidos, não chegou a ser concluído numa das suas vertentes essenciais, o prolongamento para Alcântara com correspondência com a linha de Cascais (a correspondência com a linha de Cascais, na estação Cais do Sodré, é uma das principais fundamentações da linha circular).

Dispensando-me de pormenorizar as contraindicações do projeto da linha circular, desde as inconformidades, não reconhecidas no RECAPE, do Estudo de Impacto Ambiental ao contrariar o PROTAML de 2002 enquanto dizia que o cumpria, até à comparação com alternativas escolhidas de antemão como perdedoras ou a afirmações sobre a frequência de passagem dos comboios tecnicamente incorretas, vou resumir numa imagem as razões por que uma linha circular restrita no centro de uma cidade metropolitana não é uma opção prioritária enquanto as periferias não estiverem servidas.

Considere-se o braço direito estendido para a frente e a mão direita com a palma para a frente e na vertical, com o polegar na horizontal, apontando para a esquerda. Nesta configuração topológica representando Lisboa, o polegar é a linha de Cascais, o indicador a linha de Sintra, o médio a linha amarela/Odivelas, o anelar a linha verde (com a limitação do dedo se supor dobrado visto que não atinge a periferia) e o dedo mínimo a linha da Azambuja/do Norte.

A linha circular do projeto do metro vai ligar as bases dos dedos médio e anelar e descer até ao pulso, ponto de encontro das radiais, onde faz a correspondência com a linha de Cascais (ou, na linguagem mais imaginativa de alguns defensores do projeto, onde esta se rebate na linha circular).

É agora fácil de ver, se uma das principais justificações da linha circular é a ligação da linha de Cascais à zona de serviços mais procurada de Lisboa, a base do dedo médio (Avenida da República), então para os moradores da linha de Cascais chegarem mais cedo a esse destino seria a correspondência não no centro do pulso, mas na raiz do polegar, isto é, à entrada da cidade (por exemplo em Alcântara), fazendo-se a ligação através de uma circular de raio superior (por exemplo, o prolongamento da linha vermelha ou amarela para Alcântara).

Este problema topológico é o mesmo que se pôs para as ligações rodoviárias e portanto mais fácil de mostrar as implicações. É a segunda circular de Lisboa  que foi prioritária (IC19-Campo Grande-A1), não a primeira circular (Av.Ceuta-Av.Berna-Areeiro-Olaias), já de si sucessora da primitiva Av.Infante Santo-Rato).

Justificou-se o senhor ministro do Ambiente que só havia dinheiro para um percurso curto (por sinal com um custo unitário de construção superior), mas eis que o Plano de Recuperação e Resiliência permite esperar um cofinanciamento para uma expansão compatível com uma visão integrada da mobilidade metropolitana, enquanto a própria Comissão Europeia esclareceu que o cofinanciamento de 83 milhões de euros do POSEUR pode ser atribuído pelo governo português a outros investimentos, desde que concluídos até 2023.

Mas centrando-me no tema principal desta comunicação, as minhas dificuldades com a interpretação correta das disposições da lei 2/2020 de 31 de março de 2020  do Orçamento para 2020, cujo esclarecimento, se aceite, respeitosamente  venho solicitar.

Dizia o art.282 da lei 2/2020:

“Investimentos e expansão da rede do metropolitano de Lisboa

 

– O Governo promove, durante o ano de 2020, as medidas necessárias junto da empresa Metropolitano de Lisboa, EPE para suspender o processo de construção da Linha Circular entre o Cais Sodré e o Campo Grande, devendo ser dada prioridade à expansão da rede de metropolitano até Loures, bem como para Alcântara e a zona ocidental de Lisboa. 

2 – Durante o ano de 2020, o Governo: 

a) Realiza, através da Metropolitano de Lisboa, EPE: 

i) Um estudo técnico e de viabilidade económica, que permita uma avaliação comparativa entre a extensão até Alcântara e a Linha Circular; 

ii) Os estudos técnicos e económicos necessários com vista à sua expansão prioritária para o concelho de Loures; 

iii) Uma avaliação global custo-benefício, abrangendo as várias soluções alternativas para a extensão da rede para a zona ocidental de Lisboa; 

b) Elabora um estudo global de mobilidade na Área Metropolitana de Lisboa, nomeadamente quanto às redes de transportes públicos, à ligação dos modos de transporte, à intermodalidade e interfaces; c) Com vista ao normal funcionamento do metropolitano de Lisboa, procede: 

i) À contratação urgente dos trabalhadores necessários, tendo em conta as diversas áreas onde se verifica carência de pessoal;  

ii) À reposição dos materiais necessários à manutenção e reparação do material circulante e dos equipamentos; 

iii) À realização urgente de obras nas estações que necessitam de intervenção, principalmente devido às infiltrações.”

 

 

E tropeço aqui num problema de lógica. Diz o artigo, “durante o ano de 2020”:

·         “… suspender o processo de construção da linha circular”,

·         “ … realiza (através do Metropolitano) … um estudo … que permita uma avaliação comparativa entre a extensão até Alcântara e a linha circular”

·         “… elabora … um estudo global de mobilidade na Área Metropolitana de Lisboa”,

e isso significa que passando o ano 2020 o Governo deixa de estar obrigado a cumprir a lei de 2020? Ou isso acontece porque entretanto foi aprovado o orçamento para 2021 e nele não constam estas obrigações? ( a lei 75B/2020 do orçamento de 2021 fala em expansão da rede e aquisição de material circulante e sistema de sinalização, não fala em linha circular). Mas como se o orçamento de 2021 foi aprovado ainda em 2020, quando o Governo ainda estava obrigado ao cumprimento do art.282? E que acontece se expirado o ano 2020 o Governo não apresenta o trabalho encomendado? É como se não tivesse sido encomendado? Ou reconhece a falta? Ou insiste na desculpa de que a definição dos traçados das linhas de metro são competência exclusiva do Governo e a AR está a violar o princípio da separação dos poderes intrometendo-se? (registe-se a politicamente correta afirmação do senhor ministro do Ambiente e Alterações Climáticas de que os traçados competem às áreas metropolitanas, criando aparentemente uma zona de indefinição com o CSOP e subtraindo daquela esfera de competências a linha circular)

Para além do problema lógico (ou de interpretação semântica) depara-se-me aqui o problema jurídico, para cuja análise já confessei as minhas limitações mas de cuja abordagem não desisto. Se a AR é o órgão legislativo (art.165.1 da CRP: “É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre … z) bases do ordenamento do território e do urbanismo” ), então o Governo, enquanto poder executivo, executa, passe a redundância. E sofre naturalmente a condição de ser fiscalizado pela AR (art.162.a) ). Existe uma analogia interessante com a navegação, o homem do leme governa a embarcação, mas o rumo é definido pelo comandante; governar não é decidir o rumo, pelo menos a médio e longo prazo.

Eis porque, seguindo esta sequência, não consigo entender a existência de justificação lógica para o visto do Tribunal de Contas ao contrato do primeiro lote da linha circular, aposto ainda em 2020.

Admitindo que a lei 75B/2020 de 2020-12-31, do orçamento de 2021, não extingue as obrigações da lei do orçamento de 2020 (transferindo-as para anos subsequentes no caso de não prever verbas para 2021 embora estejam disponíveis verbas dos apoios comunitários) , ou que não foi apresentado justificativo razoável para o não cumprimento, a incompreensão estende-se aos dois vistos do Tribunal de Contas concedidos já em 2021 aos restantes dois lotes da linha circular, até porque a aprovação da lei pela AR data de 26 de novembro de 2020, portanto dentro do prazo imposto pela lei 2/2020. De facto, entre abril e dezembro de 2020 teria sido possível ao Metropolitano executar o estudo requisitado, e ao Governo promover um concurso público internacional para execução do plano global de mobilidade; isto é, não foi cumprida a lei 2/2020.

Ainda por uma dedução lógica, a ausência desse plano global de mobilidade fere de inconsistência relativamente aos mecanismos institucionais de organização do território os programas de novos traçados divulgados por três câmaras da AML em julho de 2020 e plasmados no PNI 2030 e, recentemente, na proposta do Plano de Recuperação e Resiliência.

Acresce, adicionando gravidade ao incumprimento exposto, que também ao art.283, apesar de publicas afirmações de que se está a trabalhar, no Metropolitano, para equipamento de todas as estações com meios de acesso e instalações sanitárias para pessoas com mobilidade reduzida (sendo verdade que nalgumas, poucas, se vêem obras que se espera incluam esses objetivos), não se seguiu a apresentação de um plano credível em datas para a sua execução.

Art.283 da lei 2/2020:

“Promoção da acessibilidade no metropolitano de Lisboa

Tendo em vista o cumprimento da legislação sobre acessibilidades e para que sejam progressivamente eliminadas as barreiras existentes, o Governo promove a concretização de obras nas estações do metropolitano de Lisboa já existentes, por forma a torná-las totalmente acessíveis a cidadãos com mobilidade reduzida, nomeadamente através da instalação de elevadores e/ou plataformas elevatórias para cadeira de rodas e da adaptação dos corrimãos para leitura em braille do número de degraus.”

 

Em síntese, considerando como técnico do domínio da mobilidade urbana que o processo de aprovação da linha circular menorizou provavelmente para além do razoável as deficiências técnicas do projeto da linha circular, julgo que como cidadão tenho a obrigação moral de transmitir ao Tribunal de Contas as minhas preocupações, na expetativa de que eventuais erradas interpretações minhas das questões jurídicas conexas possam ser esclarecidas por V.Exas.

 

Com os melhores cumprimentos

Fernando Santos e Silva


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