Entrevista sobre o PFN aos engos Eduardo Zuquete e Joanaz de Melo
https://jornaleconomico.pt/noticias/1013849-1013849
Por um lado, na entrevista, a experiência de
ferroviário com capacidade interpretativa da realidade do que se move ou do
que deveria mover-se.
Do outro o engenheiro do Ambiente que tem publicitado,
muitas vezes com pendor dogmático, posições imobilizadoras, algo contrárias ao que na alma mater nos ensinaram, que as leis da Natureza têm de se cumprir, mas que
o objetivo principal da profissão de engenharia é a de transformar matéria e
energia em coisas úteis e depois inventar o que for preciso para mitigar ou eliminar os efeitos
perversos.
Recuando na minha memória aos tempos do liceu, evoco o dilema que tínhamos na filosofia, acreditar mais na nossa perceção ou na realidade e na impossibilidade de uma resposta de confiança,´- porque sem certezas de como compreender a realidade - procurar regras para ao menos não ficarmos muito afastados da dita realidade.
Graças ao triunfo da comunicação, envolvemo-nos agora em disputas sobre o acessório, despachando o essencial para zonas com nevoeiro, quase sempre deixando-nos levar pela herança do cérebro dos primitivos estádios da evolução, com a tendencia de criação de polos atrativos e de neles nos conglomerarmos em grupos que compensem as nossas inseguranças e ignorâncias, com o objetivo de ter a supremacia sobre o outro grupo.
Assim discutimos o PFN. Também eu enviei a minha participação no período da consulta pública, sem qualquer esperança de que os decisores atendam às minhas observações, em defesa do transporte nas áreas metropolitanas, e ainda em linhas novas numa nova rede integrada na rede única europeia, de acordo com as regras ensinadas também na alma mater de respeito pela normalização, neste caso consubstanciada no regulamento 1315 revisto (dispensando, por amor à normalização, as isenções).
Quando vejo na entrevista as preocupações em adaptar os objetivos aos meios disponíveis, imagino que primeiro podíamos definir os meios necessários, como quando analisamos uma proposta, primeiro olhamos para as questões técnicas e depois de escolhermos as melhores, passamos às questões económicas.
Por um lado é uma heresia o que digo, ansiar por gastos sumptuários, quando até os nossos colegas alemães andam muito tristes, porque fizeram umas contas e acharam que repor os 34.000 km de linha férrea degradada em boas condições lhes custaria à volta de 90.000 milhões de euros.
Mas por outro lado, olho para a estatística dos gastos pelos portugueses no jogo on line (11.000 milhões de euros em 2022) e vejo um valor próximo do orçamentado para a nova linha de AV Lisboa-Porto (Porto-Soure incluindo a ponte do Douro 3.000 M? Soure-Carregado 2.000 M? Carregado-Lisboa 2.000 M incluindo tuneis e viadutos pela margem direita ou 3.000 M pela margem esquerda incluindo ponte do Tejo em Lisboa? porque não estão a ser estudados os traçados para estimativas fiáveis?) . Ou quando me chega do outro lado do Atlântico a conjetura de Marvão Pereira, se dedicarmos 1% do PIB por ano a infraestruturas em 10 anos teríamos a rede TEN-T do regulamento 1315 executada em Portugal e amortizada em 30 anos.
E lembro-me de que o governo sueco pura e simplesmente desistiu do projeto da rede única em AV em "Y" Estocolmo-Goteborg-Malmoe-Copenhague, cerca de 800 km ou 24.000 milhões de euros, com o argumento, como que tirado do PFN, que será mais vantajoso modernizar (palavra apreciada por quem assim pensa) as linhas existentes do que construir linhas novas de raíz.
Não é essa a experiência que temos com a nossa linha do Norte, há anos em sucessivas "modernizações", por isso vejo com preocupação a defesa dessa opção para o caso português, para não citar o velho argumento, as caraterísticas das linhas existentes, em termos de gradientes e curvas, por exemplo, são para velocidades dos séculos XIX e XX e corrigi-las custam quase tanto com a linha nova (mas conviria fazer as contas minimamente credíveis).
De nada serve termos material circulante para 220 km/h com aptidão para negociar curvas de raio convencional, quando tem de se imiscuir no tráfego urbano (perdoe-se-me a blasfémia, os fans de Karlsruhe não me perdoarão, mas tráfegos interurbano e urbano são incompatíveis no mesmo período de exploração), quando mesmo ao lado das vias está o caminho pedonal frequentemente usado porque livre das ervas infestantes que o ladeiam com o risco de sucção à passagem do pendular, quando vão sucessivamente morrendo nas passagens de nível por falta de visibilidade ou demora na travessia (se uma lenta travessia durar 15 segundos, se o pendular estiver a 700 m quando for iniciada a travessia haverá colisão ou atropelamento ), quando no troço Alfarelos-Coimbra as travessias de peões são sucessivas, quando se morre nas estações de Ovar-Gaia porque o comboio urbano tapou a visão do pendular e não havia passagem superior (sim, o troço está em obras com os protestos que não sei se são válidos , se são do tipo "nanomequ" - não no meu quintal), quando se tem a encosta de Santarém para resolver.
Não só a Suécia; também da Finlândia chega a asserção, exposta na sua participação na revisão do regulamento1315 de uma forma supremacista (curioso sabermos como a Finlândia participou e ignorarmos como Portugal participou, aliás a resposta oficial a um pedido de informação foi muito clara, que não era altura para dar essa informação), de que estão muito bem com a bitola russa que têm e querem uma isenção de dispensa do cumprimento do regulamento e desistem das ligações em "Y" de Helsínquia a Turku, a Tampere e a Lahti, coisa para 500 km, poupam 15.000 milhões (menos o que vão ter de gastar na "modernização da rede de bitola russa existente que serve aquele "Y").
Digo supremacista porque se consideram acima da ingénua pretensão do regulamento 1315 de querer uma rede única interoperável em que um comboio de mercadorias puxado por uma locomotiva (evitemos a mania norte americana de tração por várias locomotivas) possa partir do terminal de Sines, de Setúbal, de Lisboa, de Aveiro, de Leixões, e vá por aí fora sem roturas ou "breaks", com engates automáticos (DAC) e monitorização dos travões e rodados dos vagões, até Rovaniemi, a terra do pai Natal (não digo todos os vagões do comboio de 750 m, mas alguns, mesmo para poderem trazer na volta as encomendas do dito pai Natal).
Claro que os finlandeses, na melhor tradição do senhor Oli Rhen, vão querer continuar a exportar por via marítima, que não há procura para gastar o dinheiro no túnel de 80 km de Helsínquia para Talin onde "pegaria" no Rail Baltica, o projeto de bitola UIC nos países de bitola russa. E muito menos para mudar a bitola.
Por cá está-se a trabalhar no concreto para a implementação da rede interoperável doTEN-T do regulamento 1315? Não, não está, estamos no Deus dará e chacun pour soi (a Medway já compra locomotivas de bitola UIC para o lado de lá da plataforma de Vitoria e locomotivas de bitola ibérica para o lado de cá, já não se sonha com os eixos telescópicos nos vagões apesar de eles já andarem por aí). E melhor não estamos quanto ao transporte de semirreboques por comboio, as autopistas ferroviarias dos nossos colegas espanhois, já avançados no domínio do gabari P400, desde o túnel de Pajares ao corredor mediterrânico, objetivo, pelo túnel de El Pertus, Barking no UK, Bettemburgo no Luxemburgo, Roterdão, Mannheim e por aí fora, assim a superior clarividência do governo Macron cumpra o regulamento europeu e os acordos com Raquel Sanchez e execute até 2030 a nova ligação Dax-Hendaye atribuindo 2ª e não 1ª prioridade à rede da Aquitânia (toda e qualquer semelhança com a 1ª prioridade à ligação Porto-Vigo é pura coincidência).
Por cá, talvez se conseguisse sair do impasse seguindo o exemplo de Espanha, temos a ADIF convencional e temos a ADIF ALTA VELOCIDADE. Por cá teríamos a rede existente de bitola ibérica e a nova rede de bitola UIC, sendo que a bitola não é o único componente interoperável a dar dores de cabeça. O ERTMS é o outro, a resolver se queremos tráfego com Espanha. Precisamos de esclarecimentos sobre o projeto STM (o módulo que lê a baliza CONVEL e informa o equipamento ETCS de bordo, mas valerá a pena conservar o CONVEL já sem componentes de reserva?
Tenho de discordar da entrevista sobre a linha Aveiro-(Almeida?)-Salamanca. As dificuldades encontradas na "modernização" da linha da Beira Alta, a desistência de retificação de gradientes, os atrasos que se vão somando (não só na Beira Alta, na linha do Oeste, especialmente entre Meleças e Caldas, sem esquecer a grave falta da ligação Malveira-Sacavém, não por Odivelas como também se tem publicitado, porque já lá temos o metro) , juntam-se às deficiências de base da contratação pública para demonstrar a nossa crónica falha de planeamento e de controle da execução.
Porque insisto na linha Aveiro-Salamanca? Porque não posso concordar que não seja prioritária a ligação à Europa sem "gauge break"? Porque em 2022 exportámos e importámos por modos terrestres (quota da ferrovia < 2% !) para e de Espanha 27 milhões de toneladas no valor de 44 mil milhões de euros, ms para o resto da Europa 12 Mton e 57 M€ . Para transferirmos cargas rodoviárias para a ferrovia era essencial, até 2030, cumprirmos o regulamento 1315, nomeadamente com o referido transporte de semirreboques por comboio. Voltemos às aulas de Física do liceu, a resistência ao movimento de um comboio num percurso e velocidade tipo para transporte de 1400 toneladas de carga útil é da ordem de 70 kN, enquanto a resistência de 40 camiões transportando a mesma carga em percurso equivalente é da ordem de 300 kN (quer sejam de tração fóssil, quer sejam de tração elétrica), obtendo-se a energia consumida entrando na equação do movimento com o produto da força resistente pelo comprimento percorrido.
Dir-se-ia que o transporte de mercadorias (e de passageiros) não deveria ser avaliado em dolares ou euros por tonelada-km, mas sim em energia primária consumida por tonelada-km (ou passageiro-km). Mas não é assim, o FMI e o BCE não ligam a essas minudências que querem passar por cima do sacrossanto princípio do mercado, apesar dos avisos de Cassandra de que estamos a esgotar os recursos (ora, junte-se o urânio empobrecido às fotovoltaicas/eólicas e seremos felizes ad eternam). Talvez por isso, por não se dar ouvidos a Cassandra, ninguém está a trabalhar no sentido que proponho e é olímpica a indiferença do governo pelo regulmento 1315. É referido no PFN, mas não se vislumbra intenção de o cumprir. Tampouco me parece interessada a Ordem dos Engenheiros em debater públicamente a questão.
Bem prega, melhor do que eu, o ECA (European Court of Auditors, ou Tribunal de Contas Europeu), apesar das sempre bonitas palavras da comissária dos transportes sobre a ecologia dos transportes, o desprezo que os governantes europeus têm pelo seu caminho de ferro: https://www.eca.europa.eu/en/Pages/DocItem.aspx?did=63659 https://www.investigate-europe.eu/en/2021/despite-public-support-for-rail-trains-remain-underfunded-in-europe/
O mesmo raciocínio energético me leva a defender uma linha de alta velocidade Lisboa-Porto com os padrões da interoperabilidade do regulamento 1315 de que aliás faz parte, e em sintonia com a diretiva da União Europeia de interditar os voos de menos de 500 km. É ainda a questão, por mais hidrogénio que seja o combustível ou por mais e-fuel, sintético ou bio que ele seja o rendimento energético da catenária é superior ao do hidrogénio ou do e-fuel produzidos.
Mas devo cumprimentar os dois entrevistados por chamarem a atenção para a falta de uma calendarização e de um roteiro ("road map" gostam os comentadores de dizer) para os transportes nas áreas metropolitanas (que evidentemente inclui o Algarve) e a correta análise do que é uma linha circular (eu preferiria já a terceira travessia do Tejo com a valência suburbana incorporada). Bom seria a divulgação das análises que vêm fazendo com a Universidade e o metro.
Foi longo o comentário, apesar de muito ter ficado por tratar. Efetivamente a questão é extensa e complexa, exigindo ser abordada por equipa, não por indivíduo, E mais exige, quanto a mim, amplo debate público sem os vícios do mediático e sem a orientação forçada pelo governo e pela IP. O que a experiência mostra ser muito difícil.
Com apreço pela entrevista.
Caro Colega Fernando Santos
ResponderEliminarUm texto absolutamente ESPECTACULAR este seu. Pena, como escreveu num comentário em 28 DEZ 2020, um Sr. de seu nome Joaquim Rodrigues:
"Em Portugal o problema da ferrovia é um problema de subdesenvolvimento, atavismo, compadrio, incompetência, interesses instalados e ignorância" , a que eu pessoalmente junto " aliado à rápida aproximação de um novo colapso económico-financeiro ". Bom dia de Páscoa 2023. Abraço.