terça-feira, 4 de junho de 2024

Comentário a um artigo da APAT e a um seminário da T&N lamentando a baixa quota modal da ferrovia

  




Comentário a um artigo de opinião do presidente da APAT (Associação portuguesa de transitários) e ao seminário da Transportes e Negócios sobre transporte ferroviário de mercadorias em junho de 2024[1]

  

Dividindo o problema, temos o transporte terrestre de mercadorias interno, o transporte para e de Espanha e o transporte para e de além Pirineus. Dado o peso maioritário da rodovia especialmente nos dois últimos aspetos, parecerá que o transporte ferroviário não se desenvolve precisamente por causa da importância e dos lobies do setor rodoviário. Junte-se a isso a natureza da gestão do corredor de mercadorias atlântico RFC4, pelo consórcio “AEIE agrupamento europeu de interesse económico” da IP, ADIF, SNCF e DB, naturalmente interessadas no aproveitamento máximo das infraestruturas existentes e no mínimo investimento evitando as mudanças, condicionando assim as ligações ferroviárias à Europa. Citando Daniel Gros em 2015, quando diretor do Centro de Estudos Europeus,    “Muitos projetos ferroviários e rodoviários também avançam lentamente, devido à oposição local e não à falta de financiamento.”

 

No caso do setor rodoviário parece haver um lobby influente que elimina portagens e subsidia o gasóleo, invocando que contribui muito para as exportações e para o emprego e anunciando à boa maneira portuguesa que já há soluções para camiões de baterias e de hidrogénio (embora não estejam dispostos a investir neles).

 

O seminário de 6 de junho com representantes da IP e dos principais operadores e entidades ligados à logística ferroviária e portuária em Portugal mostrou unanimidade na crítica ao favorecimento do setor rodoviário em comparação com as dificuldades sentidas pelo operadores ferroviários desde a burocracia à taxação e às limitações das infraestruturas. Mas sancionou a política de exclusividade da bitola ibérica consagrada no PFN com o pretexto de conectar as novas linhas com a rede existente (o que alternativamente poderia fazer-se no caso da linha de AV Porto-Lisboa com a tecnologia dos eixos variáveis e intercambiadores).

 

Considerando apenas as ligações ferroviárias à Europa, o fundamento para o seu desenvolvimento é a necessidade de substituir, por razões ambientais e de estímulo ao crescimento das exportações, parte significativa das exportações rodoviárias pela ferrovia.

Em 2023, as exportações por rodovia, segundo o INE, foram:

para a EU         16,287 Mton (42858 M€)

para Espanha   10,761 Mton (16856 M€)

 

 

Pela ferrovia foram (a contabilização pelo INE dos destinos das exportações não implica o transporte das mercadorias desde Portugal além  da fronteira dos Pirineus):

para a EU          0,105 Mton (325 M€)

para Espanha    0,079 Mton (  52 M€)

               ( mais informação em           https://fcsseratostenes.blogspot.com/2024/02/os-numeros-de-2023-das-exportacoes-e.html     )

 

Tamanha discrepância motivaria ações mais evidentes de promoção de uma estratégia de desenvolvimento de soluções para a referida transferência de cargas para a ferrovia. Mas isso é incompatível com a simples manutenção da gestão unicamente concentrada no aproveitamento das infraestruturas existentes, requerendo investimento elevado e uma gestão separada da gestão corrente, investindo em linhas novas com as caraterísticas de interoperabilidade plena normalizadas segundo o regulamento substituto do 1315 das redes TEN-T.

 

 

A primeira fase poderia ser o transporte de semirreboques ou caixas móveis por comboio (autopistas ferroviárias) com dois destinos dos camiões em Espanha: Vitoria e Valencia, negociando o governo português com o espanhol a ligação em bitola europeia das respetivas plataformas a França o mais cedo possível, ainda antes de 2030 . Trata-se de um investimento avultado dado que a nova regulamentação europeia obriga a especificações como o DAC (Digital automatic coupling) , o gabari P400, o comprimento dos comboios, o ERTMS, as pendentes, a bitola UIC em linhas novas,  e a progressiva incorporação dos serviços de mercadorias no corredor atlântico de alta velocidade via Aveiro-Salamanca e via Caceres-Plasencia para sua rentabilização[2].

E neste caso requer-se de Espanha uma atitude mais ativa nas mercadorias  para, numa segunda fase, progressivamente vir trazendo a bitola europeia em via dupla até à fronteira portuguesa.

 

 Será necessário um plano e a sua implementação com datas como:  2025/2027 Vitoria e Valencia; 2030/2032 Medina del Campo e Madrid; 2035/2037 Badajoz e Salamanca/ Almeida/ Mangualde; 2035/2037 Aveiro/Leixões e Poceirão/Lisboa/Sines; 2040 Leixões-Vigo.



Precisamente por ser um investimento avultado e que contribui para a coesão europeia através da rede única ferroviária, a normalização com todos os componentes da interoperabilidade deve ser respeitada também para facilitar o cofinanciamento comunitário. 

Na primeira fase já terão de ser abordados e preparada a resolução dos problemas do ERTMS (a própria regulamentação europeia determina a retirada de sistemas como o CONVEL até 2040), os traçados em via dupla, o recurso a material circulante de eixos variáveis ou de eixos intermutáveis para soluções localizadas de curta extensão ou temporárias, o desenvolvimento da rede de plataformas logísticas nomeadamente o reaproveitamento parcial do terminal rodoferroviário da Bobadela e a implementação do terminal de Castanheira do Ribatejo.

 

Especialmente no caso das autopistas ferroviárias os cadernos de encargos do material circulante deverão prever uma substituição económica de bogies ou rodados de bitola ibérica por bogies ou rodados de bitola europeia.  

O panorama das mercadorias em Espanha não é atualmente famoso, com uma quota modal em 2021 da ordem de 9% segundo o observatório de transporte e logística em Espanha OTLE que registou em 2021 os seguintes volumes em Mton de tráfego nacional e internacional para a rodovia e a ferrovia,  superiores cerca de 7% relativamente a 2019, comparando-se com os volumes em Portugal:

                                                      rodovia      ferrovia

OTLE: Espanha nacional                1541            20

            Espanha internacional           119              4,7

INE:    Portugal  nacional                 120,5            6,6

            Portugal  internacional           22,9            2,7

Nota: os dados do INE são da sua Estatística de transportes de 2022 e incluem os serviços em redes estrangeiras mas da responsabilidade de operadoras nacionais; repetidamente foi afirmado no seminário de 6 de junho que a quota do transporte ferroviário de mercadorias em Portugal será de 13%, mas provavelmente referindo-se a toneladas-km; em toneladas os números do INE conduzem a 5,2% dos modos terrestres para o tráfego nacional e 6,5% para o tráfego nacional e internacional

    

Isto é, também em Espanha o aumento da quota modal não se compadece com o exclusivo aproveitamento e melhoria da rede existente. Eletrificação do troço Badajoz-Puertollano ajuda, mas a ligação a Madrid deveria utilizar a ligação de AV e ponderar a ligação por Aranda de Duero.


Como reconhece o próprio MITMA (ministério espanhol de infraestruturas), a baixa quota modal do transporte de mercadorias em Espanha tem como causas a demografia e a desadequação da rede de bitola ibérica, com troços de via única sem cruzamentos para comboios de 740m, não eletrificados, não equipados com ERTMS, sem terminais intermodais eficientes, sem caraterísticas de atração dos operadores estrangeiros como a DB Cargo, cujo grupo integra a Transfesa, reconhece no seu site             ( ver https://network.dbcargo.com/network-en ) :  "With the expansion of the european standard gauge to Barcelona, it is no longer necessary to change axles at the spanish border. In this way, trains can travel directly to the mediterranean metropolis and easily reach the only spanish port facility in the standard gauge network"  o que implica, enquanto a bitola 1435mm não for prolongada até Valencia, a necessidade de transporte para "various spanish economic centers by means of reloading, axle relocation or truck on-carriage". Trata-se de uma postura bem diferente da que os sucessivos governos portugueses veem defendendo, apoiados na IP, no RFC4 e, como o seminário de 6 de junho mostrou, na opinião da grande maioria dos principais operadores e entidades ligadas à logística ferroviária e portuária.

 

Para sairmos desta situação e aumentar a quota modal da ferrovia, é essencial espanhois e portugueses desenvolverem, em sintonia com o regulamento TEN-T substituto do 1315, e de forma coordenada, o plano referido acima de aproximação da bitola 1435mm dos portos atlânticos, revendo simultaneamente o PFN para assumir o que está inscrito no próprio PFN: "A criação de ligações ferroviárias em bitola padrão (1435 mm) teria inegáveis vantagens no transporte de mercadorias internacional de longa distância, contribuindo para melhorar a competitividade das exportações portuguesas".

 Julga-se que isso só poderá ser feito com uma estrutura corretamente dimensionada em termos de recursos humanos para gestão do desenvolvimento de uma nova rede separada da gestão corrente da rede existente, sem prejuízo do recurso a concursos públicos internacionais para seleção de consultor com experiência internacional em projeto, manutenção e operação de redes de alta velocidade/mercadorias.




PS - ver em   https://fcsseratostenes.blogspot.com/2023/06/seminario-transportes-e-negocios-sobre.html         o relato do seminário ferroviário realizado pela T&N em junho de 2023, verificando-se, não só pelos atrasos da plano ferrovia 2020, especialmente das obras da linha da Beira Alta, que persistem as inconformidades


____________________________

[1] https://www.transportesenegocios.pt/o-mesmo-de-sempre-o-que-nao-muda-nunca/e
         e
      https://seminarios.transportesenegocios.com/ferroviario mercadorias 6jun2024

[2] A Medway e a Tramesa têm já prevista para 2024 a rota Valencia-Madrid e em 2025 Valencia-Puertollano-Badajoz-Entroncamento com vagões plataforma articulados de eixos intermutáveis https://www.transportesenegocios.pt/ae-ferroviaria-valencia-madrid-arranca-em-julho/

Sem comentários:

Enviar um comentário