sábado, 1 de dezembro de 2018

A mulher do rickshaw - cenas de Lisboa aos 18 anos do século XXI

A imagem surgiu-me pouco nítida no limite lateral do meu campo de visão.
Estava numa esplanada do meu bairro com o meu amigo de um outro bairro, comentando as notícias e a baixa taxa de desemprego.
Primeiro, pareceu-me um dos muitos entregadores de comida, pedalando na sua bicicleta e com um cubo isotérmico afivelado às costas.
Depois reparei que era uma rapariga, certamente saudável, pela forma como se deslocava, mas dada a distancia não pude determinar se a pele do seu rosto era delicada ou tisnada pela exposição à intempérie e à má alimentação.
Isto é, se se dedicava àquela atividade para passar o tempo e juntar uns dinheiritos para comprar bilhetes para os seus festivais preferidos, ou se o fazia por simples necessidade.
O meu amigo comentou que era assim que a taxa de desemprego baixava, e que a rapariga tinha fugido aos empregos normais de entrada às 9 e saída às 6.
Eu comentei que havia uma probabilidade elevada de o fazer por necessidade, porque a bicicleta não era elétrica, pelo que o seu trabalho seria especialmente penoso.
E que por isso me recordava o homem do rickshaw, o filme de 1958 de Hiroshi Inagaki, e que isso me desgostava, que com tanta sabedoria todos os dias derramada sobre os consumidores das notícias pelos decisores da política e da economia, com tanto progresso tecnológico, não se consigam empregos para que as raparigas e os homens dos rickshaws possam produzir as suas mais valias sem tanta penosidade.
Lá estás tu, disse o meu amigo, contando, a propósito, que na rua dele há um dono da rua, que toma conta dos caixotes do lixo, pondo-os no passeio e recolhendo-os, que tem as chaves dos carros de alguns moradores ou frequentadores do bairro para os arrumar, que tem também algumas chaves de casas para facilitar entregas. Isto é, é um prestador de serviços que recebe dos condóminos uma avença pelos caixotes do lixo, que guarda as contribuições dos donos dos automóveis quando, vigilante, verifica que não é preciso colocá-las no parquimetro porque os fiscais da Emel não apareceram, e que dá como garantia da honestidade do seu trabalho o ser o companheiro da senhora Adelina, a esforçada empresária de uma loja de arranjos de roupa que mantem a renda barata por causa das obras do metro que nunca mais avançam.
Também ele, arrumador, não estrá inscrito em nenhum centro de emprego e não entra para a estatística dos desempregados.
Não evito o comentário triste para o meu amigo, que não era nada disto que eu esperava quando nos anos 70 ouvia o Imagine do John Lennon .
Mas eis que na nossa mesa surge a senhora da limpeza que levanta os tabuleiros dos clientes e que gosta de trocar impressóes com eles.
A senhora estava consternada com o que quase presenciara no seu bairro e uma vizinha lhe contara.
Um vizinho estava na tarde de domingo na sua cozinha quando chega à janela e vê o seu carro a ser assaltado.
Pega numa faca e vai a correr ao seu encontro.
Mas quando chega já um grupo está a espancar o assaltante, frustrada a sua tentativa de roubar o autorádio.
Ninguém no bairro sabe dizer o que o matou, sem julgamento sequer popular, se a faca do dono do automóvel, se as pancadas repetidas de cinco homens jovens, se o golpe, por trás, de aperto das carótidas.
Só a autópsia o dirá, mas nessa altura já não será notícia, há outros assuntos nos jornais e nas televisões.
A rapariga do rickshaw passava entretanto com a sua nova carga.
Tinha estado no restaurante da multinacional de hamburgueres e tinha sido rapidamente municiada, provavelmente por cavalheirismo dos seus colegas, mais seguros das suas scooters e motos e fatos de proteção.
Reparo num pequeno barrete, o cabelo enfiado pela parte de trás da gola do casaco, que não era impermeável, num dia que ameaçava chuva, nem a roupa parecia de quem se entretinha por desfastio.
Volto a minha atenção para a senhora da limpeza e para o crime e castigo do inábil assaltante de automóveis.
E faço uma associação com o novo presidente do Brasil, com os dedos em riste mimando em ângulo reto o fuzilamento imediato do pequeno criminoso.
Resolvo procurar na internet, quando chegar a casa, que não vou incomodar agora o meu amigo nem a senhora da limpeza, um filme brasileiro com o mesmo tema do linchamento popular do bairro da senhora da limpeza, Mineirinho vivo ou morto, de 1967 e de Aurélio Teixeira, construido a partir do conto de Clarice Lispector, que, como podem ler, está atualissimo:

É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irre­dutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”.Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.
Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos.
Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais — vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva.
Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente — não nas conseqüências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta.
Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estre­meça.
A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu.
Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho — essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar “feito doido” de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador — em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição.
A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, espe­rando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem.
E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta tran­cada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma.
Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer.
Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.
Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do São Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.
Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização.
Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.
Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.
O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.
 
clispector assinatura
 
Fonte: http://www.ip.usp.br/portal/  , do livro: Para não esquecer. São Paulo: Ática, 1979 –  e também em  A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964
 

Sem comentários:

Enviar um comentário