Ao tomar conhecimento da RCM 77/2025 https://dre.tretas.org/dre/6143163/resolucao-do-conselho-de-ministros-77-2025-de-16-de-abril em que Governo declara aprovado o PFN e incumbe a IP de promover a realização dos estudos necessários à tomada de decisão, relativamente aos seguintes investimentos ferroviários:
a) Ligação das Terras de Santa Maria à Área Metropolitana do Porto;
b) Ligação da zona Oeste a Lisboa;
c) Ligações transfronteiriças entre Bragança/Zamora, Aveiro/Salamanca e Faro/Huelva,
tomei a liberdade de enviar aos senhores primeiro ministro e ministro das Infraestruturas uma análise crítica cujo texto está incluido no email em que o Portal do Governo acusou a receção do meu email enviado através do formulário do portal do governo.
Transcrevo o email acudando a receção do meu:
Portal do Governo: Assunto: RCM 77/2025
De noreply@portugal.gov.pt
Data sáb, 19/04/2025 14:32
Para santos.silva45@hotmail.com
Agradecemos o seu contacto. Perante o exposto, o mesmo será encaminhado para as entidades
competentes de forma a ser analisado e tratado em conformidade.
A sua mensagem:
Lisboa, 19 de abril de 2025
Senhor primeiro ministro,
Senhor ministro das Infraestruturas
Assunto:
RCM 77/2025
Tendo dedicado a minha vida profissional a um serviço público ferroviário urbano, li
com apreço a RCM 77/2025 relativa a novos investimentos ferroviários. Apreciei sobretudo a
vontade de tomar decisões que sirvam o interesse público. Verificou-se uma reação favorável por
parte da maioria do poder local envolvido. Mas como técnico de transportes, não posso deixar de
recordar diversos episódios em que testemunhei a dificuldade que os decisores tinham perante
problemas específicos da engenharia de transportes para os quais tinham de se socorrer dos
relatórios e das opiniões de assessores e consultores sem que tivessem formação específica para
poderem avaliar a correção das soluções propostas. Eis-nos agora perante uma situação
semelhante. Urge tomar as decisões, mas os critérios utilizados respondem satisfatoriamente às
regras da arte? É que a técnica de engenharia é uma mistura de ciência e de arte, e as grandes
conquistas da ciência do século XX trouxeram-nos muito de incerteza e de indeterminação
conforme o observador. Temos de aceitar e respeitar a diversidade de posições sobre temas
técnicos. Mas permitam-me abordar o problema por um tema caro à formação e à experiência do
senhor primeiro ministro. A RCM 77 declara a sua conformidade com o artigo 199º Competência
administrativa da Constituição. E isso remete-me para uma questão em que por várias vezes, num
grupo de técnicos, temos criticado as sucessivas políticas ferroviárias dos governos da República.
Que nos levou até a apresentarmos queixa nas Provedorias de justiça Europeia e Portuguesa, que
naturalmente, perdoem-me a ironia, arquivaram os processos, fundamentalmente consistindo em
queixa por má administração, não por posições políticas. Como fundamentámos a queixa por má
administração da coisa pública? Por inconformidade com os instrumentos jurídicos, da qual
decorria a impossibilidade de beneficiar de fundos comunitários o que prejudicava a economia do
país. Pormenorizando: 1 – O Tratado de Funcionamento da União Europeia apoia explicitamente o
desenvolvimento de uma rede única ferroviária europeia (artigos 170º e 171º). As especificações
desta são, com força jurídica, expressas no regulamento 2024/1679, que é vinculativo para
qualquer Estado membro e cujo cumprimento é necessário para beneficiar dos cofinanciamentos
CEF do regulamento 2021/1153. Incumprir ou adiar o seu cumprimento através de pedidos
sistemáticos de isenção, aliás regulamentarmente sempre temporárias conforme o artigo 17º.5 do
1679, configurará assim um ato de má administração por desperdício de financiamento. 2 - O
artigo 198º Competência legislativa da Constituição é muito claro, o Governo fará decretos-lei em
matérias de reserva relativa da AR mediante autorização desta, a qual figurará nos decretos-lei em
causa. Ora, bases do ordenamento do território é matéria exclusiva da AR salvo autorização ao
Governo, conforme determina o artigo 165º.1.z, não constando, salvo ignorância minha, que tal
autorização tenha sido expressa pela AR nem que douta jurisprudência tenha feito vingar o
parecer, perdoe-se-me novamente a ironia, que determinações da AR contrárias ao poder
executivo são simplesmente recomendações (o que poderia sugerir que reciprocamente as
decisões do Governo seriam também simples recomendações, arrumando tais jurisprudências no
domínio da anarquia). Sintetizando: Apesar das referências na RCM 77 às CCDR o Governo entrega
à IP a responsabilidade pela escolha dos traçados das linhas ferroviárias no País e na AML à revelia
da atualização dos instrumentos jurídicos do ordenamento do território a qual constitucionalmente
deveria ser tutelada pela AR. O que é preocupante, quando é público o reconhecimento pela
própria IP das suas limitações por carência de meios humanos e pelo sistemático recurso a ajustes
diretos a assessores externos (SMA&Partner, p.ex.), em detrimento da implementação de uma
cooperação técnica (incluindo assistência técnica efetiva) com a Comissão Europeia/DG MOVE e o
ministério espanhol MITMA e com os coordenadores do corredor atlântico Carlo Secchi (DG
MOVE) e José António Sebastian (MITMA). Como pode afirmar-se que a TTT será entre Chelas e
Barreiro, que a linha de AV descerá pela margem direita ou pela margem esquerda do Tejo, se o
PROTAML em vigor é de 2002 e não consta, salvo ignorância minha, que não obstante o REOT 2024
esteja o PROTAML a ser atualizado segundo as normas constitucionais, nomeadamente ofendidas
as dos artigos 48º (direito de participação dos cidadãos diretamente na direção dos assuntos
públicos e a serem esclarecidos objetivamente sobre a gestão dos assuntos públicos) e 65º.5
(garantia de participação na elaboração dos instrumentos de planeamento físico do território). Que
pensará da RCM 77 o Tribunal Constitucional? Continuarão o nosso Ministério Público e o nosso
Tribunal de Contas a ignorar a estratégia da nossa ferrovia como prejudicial para o crescimento da
nossa economia? Quando o Tribunal de Contas Europeu (ECA European Court of Auditors) não se
cansa nos seus relatórios de verberar a ineficiência dos governos europeus, nalguns lá também
como cá, na promoção da rede única ferroviária europeia e na transferência do transporte de
mercadorias da rodovia para a ferrovia? Cingindo-nos ao regulamento 2024/1679 porque, como
referido no nº5.a da RCM 77, devem procurar-se fundos comunitários para financiamento dos
estudos, e sabe-se que a aprovação do financiamento depende da conformidade dos traçados
com o regulamento:
i) Os Estados membros aos quais não se aplica a obrigação dos parâmetros de
interoperabilidade nas novas linhas da rede ferroviária (25kVAC, comboios de 740m, pendentes de
1,25%, 22,5 ton/eixo, bitola europeia, ERTMS, etc.) são, explicitamente no regulamento, a Irlanda,
Chipre e Malta, por serem ... ilhas. Não se tendo verificado a separação da Jangada de Pedra dos
Pireneus, perdoe-se-me a metáfora, não deverá Portugal comportar-se como sendo uma ilha
ferroviária
ii) A adjudicação do primeiro troço da linha de AV, Porto-Oiã com bitola ibérica e com
pendentes superiores a 1,25% afasta-se do regulamento 1679. Foi invocado o artigo 17º.2 para
justificar a bitola ibérica através duma avaliação incluindo uma análise de custos benefícios
negativa para a bitola europeia a apresentar até julho de 2026 à Comissão Europeia. Mas esse
procedimento de isenção não é aplicável à linha de AV Porto-Lisboa porque já estava planeada a
sua ligação transfronteiriça na ficha F11 do PNI 2030 de novembro de 2023, e o artigo 17º.2 requer
para essa isenção que “ on 18 July 2024, no new railway line is planned to be connected to the land
border of another Member State according to Annex I”. O que será aplicável á linha Porto-Lisboa
será o artigo 17º.5 que determina a possibilidade de uma isenção mas apenas temporária.
iii) Os
mapas 7 (corredor atlântico) do Anexo I do regulamento preveem:
a. a rede de passageiros de AV (>200km/h)
i. em 2030 (rede “core”) 1. Porto-Lisboa 2. Aveiro-Viseu 3. Lisboa-Caia-Madrid
ii. em 2040 (rede “extended core”) 1. Porto-Braga-Vigo 2. Viseu-Salamanca
iii. em 2050 (rede comprehensive”) 1. Évora-Faro-Huelva
b. a rede de mercadorias com partilha da rede passageiros AV
i. em 2030 1. Évora-Badajoz 2. Badajoz-Mérida-Puertollano-Manzanares-Madrid (em linha de bitola ibérica e velocidade convencional) 3. Aveiro-V.Formoso-Salamanca (idem) 4. Salamanca Valladolid
ii. em 2040 1. Porto-Braga-Vigo 2. Lisboa-Porto 3. Lisboa-Évora 4. Aveiro-Viseu V.Formoso
iii. em 2050 1. Merida-Caceres-Madrid 2. Évora-Faro-Huelva
iv) Da análise do ponto iii)
resulta que o próprio regulamento adia para 2050 a ligação para mercadorias a Irun em bitola
europeia (com transbordo de contentores em Vitoria) comprometendo assim o crescimento a
médio prazo das exportações de bens, cujo valor por modos terrestres para a Europa além Pirineus
(6 milhões de toneladas no valor de 26.900 milhões de euros) já supera o valor das exportações de
bens para Espanha (11 milhões de toneladas no valor de 17.300 milhões de euros) (fonte: INE).
Seria bom renegociar com a DG MOVE, antecipando-as, as datas regulamentares para as
mercadorias. Tal seria do interesse de Espanha, quando um relatório do INECO apresentado ao
MITMA reconhece que a fraca quota da ferrovia no transporte de mercadorias tem, entre outras
causas, a deficiência de interoperabilidade da bitola ibérica.
v) Tomando também como fonte o INE,
para fundamentar os traçados das ligações ferroviárias à Europa e a sua conformidade com o
regulamento 1679, considerem-se os valores das exportações de bens por região e por todos os
modos. São as seguintes as percentagens das exportações para um total pelo continente, em 2024,
de 69.611 milhões de euros: i. Norte 38,44% ii. Centro 17,54% iii. Lisboa e Sul 44,02% Nesta
perspectiva, reportando-me ao nº3 da RCM 77, parecem corretos os traçados para passageiros e
mercadorias Aveiro-Salamanca (corredor atlântico norte) e Lisboa-Évora-Badajoz (corredor
atlântico sul). Já o traçado Porto-Bragança-Zamora, pese embora a excelência do estudo prévio
realizado e a comodidade para os habitantes da região, não terá a prioridade dos corredores do
regulamento, sem prejuízo de também interessar uma ligação ferroviária entre Bragança e Vila
Franca das Naves, na ligação Aveiro-Salamanca. Quanto à ligação Évora-Faro-Huelva já prevista no
regulamento para 2050, seria de facto bom a sua antecipação para 2040 como fator estruturante
da capacidade produtiva do Sul e do crescimento dos portos de Sines e de Faro.
vi) Recentes
declarações do ministro espanhol Oscar Puente revelaram que a linha de AV da Extremadura ficará
a funcionar em 2030 no troço Madrid-Navalmoral de la Mata (ca 210 km) em bitola europeia e
ERTMS e no troço Navalmoral de la Mata-Badajoz (ca 230 km) em bitola ibérica e ERTMS, ambos
de momento exclusivos para passageiros. Existirá portanto um intercambiador em Navalmoral de
la Mata analogamente ao que existe em Ourense na ligação à Galiza, ficando dependentes dos
fornecedores de material circulante de eixos variáveis. Muito bom seria que no mandato à IP do
nº3 da RCM 77 tivesse sido determinado uma eficiente coordenação técnica com Espanha para
antecipação da bitola europeia, quer para passageiros, quer especialmente para mercadorias, em
que é importante corrigir as datas do regulamento 1679. Quanto mais não fosse, para evitar alguns
desabafos que responsáveis espanhóis já vão deixando escapar quando se referem às ligações
fronteiriças e descreem das datas de chegada à fronteira dos portugueses.
vii) Reiterando a
aparente inconformidade legal dos procedimentos da RCM 77 para intervenção nos instrumentos
de ordenamento do território da AML, é pertinente citar o artigo 41º.4 do regulamento 1679 que
determina a realização até 19jul2025 por cada Estado membro de um programa para
implementação até 31dez2027 nos respetivos países dos SUMP (Sustainable Urban Mobility Plan)
para os nós urbanos relacionados no Anexo II do regulamento. Reconhecendo que vários
municípios têm em curso estudos para a elaboração de PAMUS, receia-se que os artigos
correspondentes do regulamento 1679 não venham a ser satisfeitos, sendo que para Lisboa o
SUMP se refere à área metropolitana. De referir ainda que o PFN aprovado com a RCM 77,
aparentemente seguindo acriticamente o critério das ligações “diametrais” em redes homólogas de
estádios diferentes de desenvolvimento, interfere significativamente com as redes existentes
ferroviárias regionais, suburbanas e urbanas sem que, contrariamente ao referido na RCM 77, a
participação pública pudesse ter suscitado um amplo debate participativo com a evidencia das
vantagens comparativas de alternativas (exemplo: prolongamento da linha do Oeste da Malveira
em percurso típico para uma linha suburbana ou de metropolitano e em sobreposição parcial com
uma linha de metro). Duvida-se igualmente que a anunciada linha violeta do metro ligeiro de
Loures se integre corretamente no SUMP.
viii) Ainda sobre o PFN, relativamente às ligações
ferroviárias de mercadorias à Europa, cabe aqui referir a plena concordância com o que está escrito
no seu ponto 2.2 interoperabilidade : "A criação de ligações ferroviárias em bitola padrão (1435
mm) teria inegáveis vantagens no transporte de mercadorias internacional de longa distância,
contribuindo para melhorar a competitividade das exportações portuguesas". Para logo
acrescentar que o PFN não tratará disso. Quem e como o fará?
Senhores primeiro ministro e
ministro das Infraestruturas Para a hipótese remota de que assessores incondicionais apoiantes da
estratégia ferroviária que vem sendo seguida pelos governos da República, venham a manifestar
repúdio e indignação pelo que deixo escrito e talvez até distorcendo-o, reafirmo em minha defesa
que o que escrevi corresponde ao artigo 48º da nossa Constituição, baseia-se na minha experiência
profissional em transportes ferroviários e resultou do que para mim é um imperativo deontológico,
transmitir a opinião como técnico sobre um assunto público com implicações económicas.
Desejo
a V.Exas e Famílias as maiores felicidades
Esta mensagem foi enviada dia 2025-04-19 às 14:28