segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Almoço na esplanada da Gulbenkian I - a minha primeira vez

Quem diria que a conversa animada dos dois, na esplanada do restaurante do Museu e biblioteca de arte da Gulbenkian, tratava um tema destes.
As moças americanas, provavelmente de um estado do interior, que já foram ao museu dos coches e agora cumprem uma pequena estadia em Portugal para ver se haverá alguma hipótese de rentabilizar para a sua universidade uma investigação sobre uns especiais documentos da Torre do Tombo que já começaram a ser investigados pelos especialistas americanos, estarão longe de perceber o tema da conversa.
Nem o casal de investigadores de arte alemães, esses já mais calmos quanto aos problemas do financiamento, porque estão em fim de carreira.
Eu, já passado o cabo que marcou o fim da minha carreira (perdoará o leitor a liberdade literária; ainda não cheguei ao fim de carreira, embora esteja muito perto, nem o meu interlocutor fez tudo o que eu lhe ponho na boca; nem este blogue é auto-biográfico, nem o interlocutor poderá ser acusado de ter feito o que não fez e talvez exista só na minha imaginação; perdoe-se-me a liberdade literária, a que qualquer um tem direito) e o meu interlocutor, esforçado técnico numa empresa de transportes, a poucos meses de pedir a reforma, relembrávamos as nossas primeiras vezes.
Perante, como disse, a impassividade das moças americanas que soltavam abundantes “Oh my God” de cada vez que o acompanhante português tentava ensinar-lhes uma palavra portuguesa, e a circunspeção do casal alemão.
Falávamos das primeiras vezes que nos tinham pedido algo de concreto para fazer nas nossas carreiras.
O meu interlocutor, de auto-estima ainda bem viva, recordou o seu primeiro trabalho numa empresa de montagem de equipamentos de telecomunicações.
Fora iniciado, nessa sua primeira vez, pela estatística. Cabia-lhe testar, por amostragem, o fabrico dos componentes que iriam integrar o telefone que a empresa vendia, em doses industriais, aos CTT . Tempos idos, em que havia uma empresa de telecomunicações diretamente dependente do Estado e sobre esse assunto estávamos arrumados e o tarifário, muito simples de compreender, também; esta questão das empresas de telecomunicações, como as outras, de energia, das águas, de qualquer serviço de interesse público, por configurar o conceito de “externalidades”, tem muito que se lhe diga, e não poderemos limitar-nos à discussão dos monopólios e da melhoria da oferta em função da concorrência – isto era já o meu amigo interlocutor a perorar, antes de explicar o que fazia com as amostragens.

- Os serralheiros ficavam desconfiados quando eu lhes dizia que tinham de melhorar o fabrico porque o número de parafusos recusados nas amostras tinha aumentado, mas as pequenas da montagem agradeciam, porque assim eu evitava que fossem os aparelhos recusados por o disco não voltar para trás como devia ser (saudades dos marcadores de disco, a emitir impulsos à medida que retomava a posição de repouso). Eram as maravilhas da estatística. Para a primeira vez que produzi trabalho, correu muito bem, com muitas caras bonitas pelo meio.
- Bem, no meu caso não havia ainda muitas caras bonitas, mas a Dona Manuela, pequenina e lourinha, no seu tempo devia ter sido uma estampa. E a estatística é mesmo difícil. Por um lado precisamos dela e por outro vem-nos complicar muitas vezes a vida. É uma questão de sabermos interpretar bem os sinais.
- E aí entra a questão da iliteracia dos portugueses em matemática. Como diz o relatório do PISA (programme for international students assessment - programa internacional para a avaliaçao dos estudantes, da OCDE) , a maioria das nossas crianças falha na apreensão dos conceitos matemáticos. E o grave é que, mesmo aqueles que não abandonam a escola, e aqueles que concluem cursos técnicos, continuam a demonstrar pela vida fora sérias lacunas de compreensão da estatística. Imagina que lá na minha empresa fica tudo embasbacado com o sistema de registo de avarias e de reparações. Como está tudo informatizado, tudo ligado em rede, o serviço que pede a reparação faz o seu registo, sem saber, claro a causa real, o serviço reparador é acionado imediatamente pela sua ligação à rede mas, se por qualquer motivo a reparação não é feita dentro do prazo pré-definido, o sistema automaticamente dá a avaria por reparada e exige um novo pedido para reparação pelo serviço de origem. Vai daí a estatística que sai automaticamente do sistema vem com os melhores indicadores possíveis, para impressionar favoravelmente os administradores, que acham que eu sou embirrento e retrógrado. E o pior é que as causas ficam a maior parte das vezes no tinteiro, ou melhor, no servidor virtual.
- Deixa-te lá de lamentações e deixa-me contar a minha primeira vez. Entrei um mês antes do 25 de Abril de 74 e estava marcada uma greve. Ilegal naquela altura, claro. O colega que conduziu o processo da minha admissão, e que eu aliás muito admiro, do ponto de vista profissional e pessoal, pediu-me para estudar uma fórmula para a revisão do sistema de avaliação, que era uma das questões na origem da greve.
- Mas isso não tem nada com as equações de Maxwell nem de Heaviside. Tem pouco que ver com a eletrotecnia.
- Pois tem, mas se calhar ele queria testar-me, queria ver se podia contar comigo mesmo que pedisse uma coisa mais ao lado, e podia ser que ganhasse um motivo de concórdia com o sindicato (tempos idos, só havia um sindicato, mas isso é outra questão também muito complexa). De modo que ainda pensei em aplicar uma escala logaritmica, mas acabei por ficar-me por uma equação do primeiro grau, com parâmetros dependentes duma tabela de antiguidade, de assiduidade, de impressão dos subordinados, de impressão dos laterais, de avaliação dos superiores hierárquicos, da complexidade técnica da função, das habilitações literárias, etc, etc…mas de redução simples à equação simples.
- E?
- E fui muito felicitado. A Dona Manuela especialmente, talvez por eu ser novinho e do género intelectual, gabou-me muito a capacidade matemática (é outra coisa que temos muito em Portugal, a fama que damos às pessoas que se destacam numa especialidade é dada por pessoas que não são muito fortes nessa especialidade). Não sei se terá sido por isso que o companheiro dela me olhava sempre de esguelha.
- Mas a fórmula foi aplicada? Se a Maria de Lurdes Rodrigues soubesse que tu tinhas essa experiencia toda em sistemas de avaliação tinha-te mandado chamar.
- A Maria de Lurdes Rodrigues e os seus secretários mandaram-me dar uma volta, acharam que eles é que tinham a revelação da solução para acabar com o insucesso escolar. Viu-se no que deu. Mas ninguém acabou por ligar à fórmula, embora toda a gente a achasse bem. No fundo, talvez achassem a equação de primeiro grau demasiado complicada. Mas também não havia hipótese, com o 25 de Abril apareceram muitos “adesivos”, que era como o Machado dos Santos chamava aos republicanos que apareceram de repente como republicanos, e os assuntos tratados foram outros.
- Não estás a queixar-te do PREC, pois não?
- Claro que não, o PREC na minha empresa foi um período extraordinário. Os comboios não pararam um dia que fosse, e o pessoal comportou-se com entusiasmo. Colmatámos o bloqueio que os países evoluídos e democratas nos fizeram. Fabricámos peças de serralharia, montámos pastilhas de tungsténio para fazermos contactos, fabricámos placas eletrónicas de circuito impresso, montámos circuitos internos de televisão, em 1975, ingenuamente pensámos que íamos fazer uma RATP, uma régie de operador único (ai que lá vem a conversa dos monopólios outra vez). Foi bom, esse tempo, eu chegava a casa e ia a correr para a televisão ver as notícias do PREC… mas lá que houve muitos “adesivos”, houve.
- Pois é, agora dizem que a autoridade metropolitana dos transportes resolve isso.
- É a vez dos decisores serem ingénuos. Não resolve.
- Bom, já recordámos as nossas primeiras vezes. O que me preocupa agora é a frustração e a desilusão com que saio da vida ativa.
- Lá estás tu a queixares-te. Não te fica bem, numa altura de desemprego e de défice nacional como esta. Tu teres a tua vida resolvida e tanta gente em baixo.
- Por isso mesmo. O que se passa na minha empresa é o espelho de todas, ou pelo menos quase todas as empresas do país. Imagina que há anos que preparei tudo para se comprarem uns tapetes de borracha sintética para se porem debaixo das travessas dos carris para ver se calamos as reclamações dos moradores mais próximos duma zona crítica, que não conseguem dormir com as vibrações que se propagem pela estrutura do prédio. Pois os meus simpáticos colegas a quem eu pedi para resolver isto embrulharam tudo, deixaram passar os prazos para as aquisições, lembraram-se de pedir levantamentos topográficos, o que é muito bom para atrasar ainda mais, e ainda não está o problema resolvido. Espero que a DECO não nos ponha um processo em cima.
- Está bem, mas o problema agora já não é teu.
-Vês? Já estás como os outros. É um problema dos cidadãos, de cidadania, de cultura duma empresa, de espírito de comunidade.
- Que linguagem tão “démodé”.
- Pois é, nós também somos “démodés”. Quem toma decisões lá na empresa também acha isso. Leu num jornal que agora há uns sistemas automáticos que funcionam sem pessoal, foi lá ver e mandou desligar o nosso, que estava desatualizado por precisar de pessoal, embora os princípios de funcionamento e de segurança fossem os mesmos. Não me deu ouvidos. Agora temos o serviço à moda ainda mais antiga e não se prevêem melhoras.

Já nos tinham levado os tabuleiros da mesa, já tínhamos tomado café. Levantámo-nos e despedimo-nos, não sem antes combinarmos a continuação da conversa sobre o que faz um técnico quando falta um mês para se reformar.

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