terça-feira, 7 de setembro de 2021

A propósito da conferência Velo City, num país em que os indicadores de sinistralidade rodoviária são piores do que a média da EU-27

 Na véspera da inauguração da conferência, um artigo do Público titulava "Ter mais mulheres a pedalar é um sinal de que as ruas são seguras":


Penso que o correto seria dizer que é um sinal da perceção que as ruas são seguras, sendo certo que é muito fácil haver uma grande divergência entre um risco real e a perceção que se tem dele.

A imagem seguinte é um clássico que ilustra essa possível divergência, assinalando-se riscos reais inferiores e superiores aos que são percecionados:

Graças ao crescimento do movimento pelo ciclismo nas cidades, apoiado nas preocupações de vida saudável e luta contra as alterações climáticas, a perceção dos riscos de andar de bicicleta será a de que a sua prática estará cada vez mais segura, apesar das recentes mortes de 2 ciclistas jovens, atropeladas por automóveis.
O nível real dos riscos, porém, não é possível estabelecer com segurança porque os dados reais da sinistralidade com bicicletas não são disponibilizados de modo a poder ter-se confiança neles. 

De facto, não tem sido divulgado qualquer relatório que sustente a afirmação de que as ruas são seguras para os utilizadores mais vulneráveis, peões e ciclistas. Em termos de engenharia de transportes, o indicador de risco é o número de fatalidades por mil milhões de passageiros-km por ano (total em km das viagens por cada modo de deslocação), e não parece haver elementos para o calcular no caso de Lisboa, nem sequer o número de intervenções de ortopedia nos hospitais por motivo de acidente.

Nos relatórios da ANSR não são explicitadas as vítimas mortais e os feridos graves em acidentes discriminados com bicicletas, com ciclomotores e com meios de locomoção com motor auxiliar. 

Do relatório da ANSR de junho de 2021 apenas se retira que o número de acidentes envolvendo velocípedes no 1º semestre de 2021 cresceu 33% relativamente ao mesmo período de 2020, sem informar quanto cresceu o respetivo tráfego em km de viagens. 

Do relatório de 2018, mais completo, retira-se 24 ciclistas como vítimas mortais a 30 dias no Continente (infelizmente, as mortes em acidentes são superiores às contabilizadas no local e no transporte para o hospital). Considerando a população da AML, 2,8 milhões, que realizam por dia cerca de 5 milhões de deslocações em veículos e admitindo por ano 5 mortes na AML e que 2,5% do total de deslocações é feita em bicicleta com percurso médio de 15 km   estimo 9 mortes de ciclista por mil milhões de pass-km. Este valor é superior ao das mortes em automóvel (3 por mil milhões) e inferior em motos e motociclos (50 por mil milhões!) e contraria a falsa sensação de segurança que o artigo pretende passar (embora, efetivamente, aumentando o percurso médio e o número de utilizadores o indicador de risco melhor se, e só se, o número de acidentes não aumentar).

No relatório do inquérito  à mobilidade IMOB 2017 os valores para as deslocações em bicicleta foram: 0,7% do total de deslocações com percurso médio de 8,9km, admitindo-se entretanto um crescimento acentuado. 

Segundo o relatório de 2020 da DG MOVE da Comissão Europeia, a posição de Portugal na sinistralidade rodoviária na EU-27 é em 22º lugar com 68 vítimas mortais por ano por milhão de habitantes (média da EU-27, 52) ou 19º lugar com 7,2 vítimas mortais por ano por mil milhões de passageiros-km (média da EU-27,  5,4) .

Estes números revelam a gravidade das consequências dos acidentes para os utilizadores vulneráveis (peões e ciclistas) e a necessidade de campanhas eficazes de redução da sinistralidade, sendo certo que a própria EU necessita de melhorar os seus números. Embora a ANSR tenha campanhas em curso, duvida-se da sua eficácia, provavelmente por carência orçamental. 

Ainda segundo esse relatório (os números são ligeiramente diferentes dos da ANSR devido ao critério de registo das vítimas mortais a 24h ou a 30 dias (este mais realista) em 2018 das 700 vítimas mortais 163 foram peões.  Dos 537 restantes, 238 foram condutores ou passageiros de automóveis ligeiros e pesados, 112 de motos (é enorme o risco dos utilizadores de motos), 42 de ciclomotores (ignoro se inclui os utilizadores de trotinetas, bicicletas elétricas e vários com motor auxiliar) e 26 ciclistas.

Notar que os valores da sinistralidade em motos é catastrófico e em automóveis inaceitável.

Isto é, para proteger todos, é urgente fazer cumprir o Código da Estrada, nomeadamente os limites de velocidade, rever os pontos negros das estradas, manter uma estatística rigorosa de sinistralidade por modo e promover inquéritos exaustivos às circunstancias e causas dos acidentes e divulgação dos resultados e recomendações.

No caso das bicicletas, seria conveniente rever o Código da Estrada repondo a obrigatoriedade de utilização do capacete de segurança sempre que exista um motor auxiliar (revertendo a revogação do nº5 do art.82 e acrescentando no nº3 do art.112 "exceto quando expresso em contrário"), impor a utilização da campainha e explicitar a equiparação dos velocípedes aos veículos automóveis para efeito de cumprimento das regras de transito (cumprimento das indicações dos semáforos, não utilização montados dos passeios e das passadeiras de peões).

Pela gravidade dos recentes acidentes com a morte de duas ciclistas, conviria divulgar as circunstancias em que ocorreram.
No caso do acidente na avenida da Índia, parece que a causa do atropelamento terá sido o encadeamento pelo sol da manhã. Poderá concluir-se que, pelas caraterísticas da avenida, o tráfego de ciclistas deverá ser segregado, preferentemente desnivelado e com elementos de proteção da ciclovia ou criado um desvio para esta. Igualmente deveriam instalar-se sensores de velocidade (radares) comandando semáforos de retenção por excesso de velocidade.
No caso do atropelamento na estrada do Livramento, no Estoril, se as imagens do Google Earth estão atualizadas, e assim parece cotejando-as com as imagens transmitidas pela comunicação social, não existe uma ciclovia no local, mas sim uma passagem pedonal longitudinal num troço de estrada com 4,7 m de largura, sendo 1,7 m para a passagem pedonal e 3 m para a via de rodagem. O comprimento do troço em via única é de 140 m, tem limitação de velocidade de 30 km/h e comando por semáforos para passagem alternada. Este troço é especialmente perigoso para os ciclistas, mas toda a estrada do Livramento o é, com duas vias de 3 a 3,5 m  e bermas reduzidas. O inquérito ao acidente deveria esclarecer a velocidade a que o carro causador seguia, como e porque se despistou, como estavam os semáforos, e se a senhora poderia ter-se salvo se usasse capacete de segurança, se seguia na passagem pedonal ou na via de rodagem. Caso não haja disponibilidade para a expropriação para o alargamento ou criação de um desvio para duplicar a via, sugere-se a substituição da passagem pedonal por passeio sobreelevado com proteções antidespiste e instalação de radares de excesso de velocidade.

Local do acidente, sobre a passadeira, vista de S para N

local do acidente, sentido N-S

Aproximação do troço de via única pelo lado S

aproximação pelo lado N



PS - segundo informação de um dos intervenientes no programa Sociedade Civil dedicado à sinistralidade rodoviária em 13set2021 na RTP2, em situações semelhantes em Espanha (via sem desníveis entre a passagem pedonal e a via de rodagem, o limite de velocidade é de 20 km/h e não de 30 km/h como aqui. Não basta porém baixar o limite, impõe-se a ensibilização através de campanhas e a fiscalização rigorisa e consequente penalização.







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