Morreram 3 pessoas numa zona de limitação a 80 km/h nas obras da auto-estrada, entre Santa Maria da Feira e Estarreja.
À necessidade de investigar as causas de cada acidente respondem por vezes as autoridades brandindo as estatísticas de acidentes rodoviários e mortes, com indicadores que estão efectivamente a melhorar, e com uma “explicação” simples, como neste caso: tudo indica que iam em velocidade excessiva.
Seria muito provavelmente excessiva a velocidade. Por definição, não foi possível parar em segurança no espaço visível à frente da condutora, depois de ter ocorrido um embate nos separadores de plástico.
Provavelmente não teria sido cumprida a limitação de velocidade de 80 km/h naquela zona de obras de alargamento da auto-estrada.
Provavelmente não existem naquele troço radares de controle e multas automáticas.
Provavelmente não existiam deflectores que protegessem do embate com separador de betão o carro que ultrapassasse os separadores de plástico, e o embate com aquele, por parar o carro repentinamente, provocou hemorragias fatais (não é possível evitar essas hemorragias quando a desaceleração é superior a 2G; não é possível absorver a energia cinética por deformação da carroçaria; os air-bags evitam o traumatismo mas não a hemorragia interna devida à desaceleração).
Provavelmente o tempo que já decorreu desde o início das obras é excessivo (julgo que até houve mudança de empreiteiro, mas não tenho a certeza de ter sido neste troço).
Provavelmente não será feita uma investigação completa às causas do acidente.
Provavelmente ficaremos pela estatística.
A estatística é apenas uma arrumação de dados. Falta tratá-los e estabelecer correlações. A seguir colocar hipóteses e testá-las. Mas as autoridades preferem brandir apenas as estatísticas porque é sempre possível afirmar que o número de mortes e de acidentes, comparativamente a igual período do ano passado, ou desde o ano passado, está a baixar.
É difícil disseminar o conceito de correlação. A tendencia dos automobilistas é para se sentirem ofendidos quando se diz que a velocidade excessiva foi a causa de um acidente.
Na realidade não foi a causa, numa relação simples de causa e efeito, porque as variáveis em jogo são muitas (variação das condições de humidade de aderência do pavimento, ressonância própria da suspensão do veículo, rajadas de vento, presença de insectos a perturbar o condutor, encandeamento, desvio da atenção para o telemóvel…). Na realidade trata-se de uma correlação entre as velocidades praticadas e o número de acidentes, resultante de mecanismos estatísticos e de curvas estatísticas de distribuição de eventos em torno de curvas de valores médios. O indivíduo não gosta de ser tratado como um elemento da população sujeita às distribuições estatísticas. A resultante final não deriva das suas opções de aplicação imediata, mas sim das suas opções de fundo. O número de acidentes é elevado porque, por exemplo, as pessoas não têm a percepção dos riscos de conduzir demasiado perto do carro da frente, e não porque determinado automobilista executou esse tipo de condução (quantas vezes o faz sem que nada aconteça…).
É difícil disseminar a ideia de que as estatísticas tendem a criar uma realidade virtual que oculta as causas reais dos acidentes, as que interessa conhecer e combater. As estatísticas podem alimentar vistosos e coloridos programas que encantam decisores. Os decisores, se estiverem longe da realidade dos casos, têm tendência para optar pela realidade virtual em detrimento da realidade efectiva.
É difícil disseminar o conceito de risco. Risco é a associação da frequência com que ocorre um acidente com o grau de gravidade das suas consequências.
Circular a 80 km/h numa zona em obras de alargamento de uma auto-estrada tem uma taxa de ocorrência de acidentes relativamente baixa, e as consequências dos acidentes não são muito graves; circular a 120 km/h na mesma zona tem uma taxa de acidentes mais elevada e as consequências quando eles ocorrem, são mais graves. Quando se fixa o limite de 80 km/h, a autoridade rodoviária quer que os automobilistas corram riscos menores do que se circulassem a 120 km/h.
Mas os indivíduos acharão que a sua liberdade está a ser cerceada. E optam por circular a velocidades superiores, porque estão certos de que o acidente não ocorrerá. Porém não lhes compete a eles avaliar o risco a suportar (a gestão de riscos do sistema rodoviário não está entregue aos seus utilizadores, mas á respectiva autoridade). Além de que geraram um efeito perverso: a razão por que os automobilistas acham que não ocorrerá nenhum acidente é porque têm confiança (auto-estima excessiva?) nas suas qualidades de condução. Cumprir os limites de velocidade seria o reconhecimento de uma deficiência. Grupos de risco são os jovens (não querem ser acusados de inexperientes), as mulheres (porque vítimas do complexo machista) e os idosos (porque iniciaram o seu processo de degradação física).
Provavelmente, este efeito perverso gerará uma “pressão psicológica e social”, revestindo aspectos de “imperativo social”, que suscita incomodidade no próprio condutor se ele contiver a velocidade nos limites, além de sentimentos de que não é igual aos outros. Porque provavelmente será continuamente ultrapassado por apressados, com outros apressados encostados à rectaguarda do carro aguardando “vez”para ultrapassar. Os apressados exteriorizam com muita facilidade o seu descontentamento, e vitimizam-se porque chegarão atrasados ao emprego ou ao negócio aprazado (têm dificuldade em levantar-se mais cedo para sair mais cedo de casa, ou porque são adeptos confessos da eficiência e da competitividade e querem percorrer mais quilómetros do que os competidores no mesmo tempo, para produzirem maior volume de negócios). Ou simplesmente o seu precioso tempo está a ser desperdiçado. Vão ter de chegar a casa mais tarde para beber um uísque enquanto não jantam.
Em resumo, parece ser importante que as autoridades e os observatórios de segurança rodoviária privilegiem e dêem visibilidade pública a duas acções:
1 – que cada acidente seja investigado até aos últimos pormenores e as suas causas classificadas e publicitadas (não basta concluir que velocidade era excessiva, tem de se saber qual a causa directa, i.é, o que aconteceu de diferente das “n” vezes em que a velocidade poderia ser a mesma mas o acidente não ocorreu); eu sei, exige meios e dinheiro;
2 – que sejam passadas mensagens nos meios de comunicação social destacando que os limites de velocidade são mesmo para cumprir, que não deverá haver nenhuma espécie de “imperativo social” a constranger as pessoas a exceder os limites, nem nenhuma obrigatoriedade em facilitar aos apressados as velocidades superiores aos limites; o comportamento anormal é exceder os limites, não é cumpri-los.
Faço votos.
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