Vamos supor que estava a doutorar-me e que o tema da tese era este que tenho em título.
Explicando melhor, o tema seria a investigação sobre o que mais agradaria a uma população enquanto plano para expansão duma rede de transportes urbanos e, portanto, o que ela gostaria de ver e ouvir para aplaudir quem lhe apresentasse esse plano.
Não seria propriamente um ensaio político. Seria mais de “marketing”… sociológico, claro.
Para fazer as coisas como deve ser, teria de operacionalizar umas quantas técnicas de análise social, passando por inquéritos e debates públicos.
Mas eu disse que era uma suposição, e por isso imaginemos que começávamos por convencer as pessoas que, ao comprarem ou alugar uma casa, há uma lista de verificações de que faz parte, por exemplo e sem que ninguém questione, a existência de uma rede de fornecimento de electricidade, de gás, de água, de comunicações. Ou nem sequer faz parte porque não passa pela cabeça de ninguém que se venda uma casa sem acesso à rede eléctrica (a menos que se pretenda o sossego absoluto numa serrania isolada).
Então operacionalizemos a consciencialização da necessidade de incluir na lista a verificação de que a casa que se pretende tem ligação à rede de esgotos e que esta está dimensionada para suportar 90% da ocupação das casas da povoação servida (não riam, especialmente se se lembrarem da resposta de um presidente de câmara do Algarve quando lhe perguntaram se ia suspender a emissão de licenças de construção até ter a rede de esgotos e de ETAR com capacidade para escoar os esgotos das casas existentes e projectadas; a resposta foi parecida com aquela do gerente do supermercado quando disse que perderia muito dinheiro se retirasse das prateleiras os iogurtes que tivessem atingido o prazo de validade).
Depois deste esforço de consciencialização, tentaríamos que a população-alvo endogeneizasse outra coisa simples: que a casa só deveria ter licença de habitação depois da respectiva câmara certificar que as vias de comunicação eram suficientes para escoar o tráfego previsível à saída de manhã para os empregos e ao fim da tarde para o regresso. E que as mesma vias suportariam com uma pequena degradação picos de fim de semana coincidente com início ou fim de férias e de realização de espectáculos de massas.
É evidente que as urbanizações da linha de Sintra ao longo do IC-19, se fosse essa a prática institucionalizada, não poderiam ter sido construídas. Mas seria interessante que a opinião pública aceitasse que o dimensionamento de uma rede de esgotos e de uma rede de transportes devem ser indissociáveis da construção das habitações. Perderíamos porém uma característica bem portuguesa: primeiro constrói-se, e depois vê-se o que falta; se for preciso construir uma via rápida, constrói-se.
(Não resisto a mais um parênteses: quando se projectou a Alta de Lisboa, os próprios empreiteiros propuseram, com alguma comparticipação, um metro ligeiro de superfície, a eixo da avenida principal, com alguns viadutos para permitir “sítio próprio” e cruzamentos desnivelados. Pois quem devia decidir decidiu mal e optou por não deixar construir. Neste momento, passados uns anos, é a própria câmara de Lisboa que pede que estudem uma linha de metro ligeiro).
Voltando à tese que dá o título a este comentário, reduzamos o nível de ambição e concretizemos.
A população adjacente ao IC-19 (e também ao IC-16, ao IC-17 e ao IC-30) sente-se feliz no casulo (“cocoon”) do seu carrinho do segmento médio, com ar condicionado e estereofonia, onde passa duas agradáveis horas por dia enquanto consome combustíveis de origem fóssil.
Não parece constituir uma base de apoio para um plano de expansão de uma rede de transportes urbanos; nem parece poder integrar uma massa crítica que debata modelos e soluções para essa rede. Quando muito, daria algum apoio a que se estudasse qualquer coisa que ajudasse a retirar do IC-19 (e também do IC-16, do IC-17 e do IC-30) aqueles automóveis mais antigos, sem ar condicionado e com rádios ordinários, conduzidos por pessoas de menor poder económico e estatuto social mais baixo que deveriam, esses sim, ser desviados para o comboio de Sintra. Por razões de segurança, o comboio da linha de Sintra deveria ser como um gueto, de onde não sairiam os grupos ou gangues de jovens organizados. Aqui estaríamos a mudar de tema, a estudar as causas e as soluções para a criminalidade juvenil, mas ainda aqui não pareceria que a população-alvo do IC-19 estivesse interessada em constituir-se massa crítica.
E a população de menores recursos económicos? Quer a parte que todos os dias dá vida aos comboios das primeiras horas da madrugada para garantir as limpezas dos escritórios das empresas de serviços onde brilham os automobilistas de ar condicionado do IC-19; quer a parte que, desempregada ou desorientada na vida vai circulando de comboio; não serão também base de apoio porque desconfiarão de qualquer coisa nova como mais uma hipótese de mais dificuldades. E como massa crítica também não, apesar de alguma população nestas condições ter ideias bem definidas. Pelo menos é o que vemos quando há eleições, embora seja claramente minoritária. Mas mais uma vez seria um desvio do tema da tese, tentar estudar a correlação entre consciência política e capacidade para integrar uma massa crítica sobre equipamento social. Abandone-se esta pista.
Mas ainda não falei nos gestores de topo. Os gestores de topo, quer sejam os das empresas privadas, das empresas públicas, ou das entidades públicas, têm um pequeno problema que os impede, na sua maioria, de entender os problemas das redes de transporte: é que só andam de BMW da série 5 para cima ou de Audi de A6 também para cima. E assim é muito difícil avaliar os constrangimentos e as deficiências das redes de transporte. Daí a dificuldade em encontrar soluções, até porque as explicações dadas pelos técnicos muitas vezes não primam pela coerência. Não podemos também contar com eles, gestores e técnicos adjacentes, para base de apoio para novos planos de expansão de redes de transportes urbanos, nem muito menos para integrar a tal massa crítica que permitiria debater os problemas até começarem a delinearem-se soluções… Poderíamos talvez tentar a solução do general De Gaulle (pediu o helicóptero e disse lá em cima para o ministro dos transportes, contemplando os engarrafamentos: “résoudrez-moi cette merde”; o ministro reuniu com meia dúzia de outros ministros, e cada um deles com meia dúzia de técnicos da RATP e da SNCF, que por sua vez reuniram várias equipas pluri-disciplinares de técnicos, que em debate e em processo iterativo fora delineando a estrutura do “Reseau Express Regional”, tudo sem génios e sem iluminados detentores da verdade), mas é um método difícil em Portugal, como difíceis são os métodos que mais uma vez cito, da “Sabedoria das multidões”, de James Surowieky (não consigo mesmo convencer ninguém, mas vou insistindo).
Em resumo, a minha tese concluiria que não é possível, neste momento, reunir uma base de apoio para um novo plano de expansão de uma rede de transportes urbanos, nem uma massa crítica que permita a sua discussão inter-activa.
O grande perigo é aparecerem novos planos com base em trabalhos de génios e de iluminados, como disse há pouco que não devia fazer-se (lembram-se dos recentes planos para a recuperação da Baixa, da zona ribeirinha, do plano estratégico da CML? Foram convidados ilustres de reconhecido mérito segundo os padrões da comunicação social, todos geniais e iluminados por ciência que não ilumina os comuns dos mortais; saiu um trabalho de teorização brilhante; atrevi-me a enviar um comentário à CML; silêncio tumular – ao menos convidassem finalistas para um concurso de ideias).
O grande perigo é também esse planos serem dominados por outros mecanismos que não os dos interesses “tout court” (eu podia ter escrito “estritamente”, mas deixem assim como homenagem à RATP) da mobilidade das populações, e das correcções urbanísticas que são indissociáveis de qualquer plano de rede de transportes.
E assim, amargamente como facilmente se depreende, se conclui a minha tese sobre
a “Sociologia da base de apoio ou massa crítica de um plano de expansão de uma rede de transportes urbanos”, pedindo aos meus amigos sociólogos que me mostrem onde falhei.
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