quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Rodoviarium VI - o acidente de Penafiel

Exmo Senhor Director
Há alguns dias que tencionava escrever-lhe para criticar a passagem na TV do anúncio “velocidade com qualidade” de um serviço da NET com um automóvel em alta velocidade a cometer infracções ao código. Do ponto de vista psicológico é altamente condenável por sub-liminarmente induzir no espectador a sensação de facilidade na condução rodoviária.O horror do acidente em que morreram 7 jovens em Penafiel leva-me a sugerir que as autoridades rodoviárias:1 – investiguem exaustivamente e divulguem as causas do acidente para que as pessoas tentem evitar a repetição (recordo o acidente do autocarro na A23 cuja investigação permitiu esclarecer as causas); divulgar o horror das imagens de nada serve porque a reacção é a de que “só acontece aos outros”; 2 – estudem as hipóteses de melhorias na estrada (no local do acidente existem 2 vias de rodagem em cada sentido) que poderiam atenuar as consequências do acidente (separadores de sentido e guardas laterais? Limitadores de velocidade com controle de semáforos? Bandas limitadoras das quais aliás já existem algumas? tratamento do piso, da drenagem, do “relevé”? )3 – dinamizem a campanha publicitária de segurança rodoviária, com enfoque na necessidade do cumprimento do Código da Estrada, dos limites de velocidade e da condução prudente, combatendo a ideia infelizmente comum de que a condução deve ser rápida (o comportamento anormal é não cumprir os limites, pelo que, em consciência, a administração da empresa que publicita a “velocidade com qualidade” deveria retirar o anuncio)Com os melhores cumprimentos.




Esta foi a carta que enviei ao Director do DN como reacção ao horror do acidente rodoviário de Penafiel.
A parte mediática das autoridades rodoviárias tem tendência em destacar o facto de que o número de mortos em acidentes tem vindo a baixar. Na realidade não sei (em termos absolutos parece que sim), porque os dados existentes deveriam ser processados de modo a obter indicadores seguros e, mais importante do que isso, de modo a obter correlações entre causas e circunstâncias e os acidentes.
Os dados dos acidentes deveriam ser correlacionados com os passageiros.km e com os quilómetros percorridos (o que é um valor difícil de calcular), com os volumes de combustível consumido (idem), com a população activa e residente, com as condições de segurança das estradas e dos veículos tudo dividido por grupo ou tipo de veículo, de estrada e de acidente.
Isso exige muito trabalho para que não parece haver técnicos suficientes e meios materiais (tenho confiança nos técnicos das referidas autoridades, mas eles precisam também de condições e meios de trabalho que me parece faltar, por exemplo, em termos de técnicas de análise social e de estatística de acidentes).
Mas a parte mediática não deveria brandir as estatísticas, até porque elas continuam a não ser famosas e deveria insistir no apuramento exaustivo das causas e circunstâncias de cada acidente (seguindo-se o tal processamento dos dados para obtenção de indicadores e de correlações).
Há uma sensação de impotência em ver um assunto desta gravidade ser tratado com a ligeireza das citações estatísticas sem aquele trabalho feito.
Sente-se impotência porque todos os dias vemos que a ideia dominante, ou a “cultura” que prevalece é a de que a condução deve ser o mais rápida possível, demonstrando o condutor a sua “perícia” com velocidades elevadas.
Existe uma correlação entre os limites de velocidade e a taxa de acidentes.
Permito-me recordar que uma correlação não é uma relação de causa e efeito. Por isso ninguém diga que eu disse que um acidente ocorre por excesso de velocidade (embora a definição de velocidade excessiva, no limite, seja muito abrangente: velocidade excessiva é aquela em que não é possível parar no espaço livre visível pelo condutor (há curvas de auto-estrada cujo raio é dimensionado para o condutor poder parar se , a meio da curva, avistar um obstáculo na estrada; se for a 130 km/h já não tem espaço para parar e a velocidade é excessiva).
Mas a velocidade também poderá considerar-se excessiva se as consequências de um eventual acidente, com outra causa próxima que não a velocidade excessiva, forem extremamente gravosas. Um carro pode despistar-se por ter rebentado um pneu. Se a estrada tiver uma valeta profunda sem guardas de protecção, as consequências podem ser críticas ou catastróficas se a velocidade for elevada, e ligeiras se for reduzida. Por isso uma estrada nessas condições (não foi o caso da estrada de Penafiel que tem 2 vias em cada sentido, mas sem separador central!? – recordo que, se cada carrinha do acidente circulasse a 80 km/h e o choque tiver sido frontal, o embate equivaleria a 160 km/h, descontando a energia absorvida pela deformação das carroçarias; como parece que a Kangoo já ia despistada e deitada, tendo batido com o tejadilho, eta energia deve ter sido pequena, i.é, o tejadilho não ofereceu nenhum resistência, mas isso deveria ser averiguado pelos investigadores do acidente) deverá ter uma limitação de velocidade, no máximo a 70 km/h ; que evidentemente os condutores têm tendência a desrespeitar porque não vêem obstáculos (também não vêem a gravidade das consequências de cair na valeta), pelo que a única solução será substituir a cultura dominante actual da condução rápida, pelo comportamento rigoroso do Código e pela nova cultura de que o comportamento anormal é aquele que não cumpre os limites de velocidade.
Em resumo, uma correlação destas significa que nos países ou nas zonas em que o limite de velocidade é mais baixo, a taxa de acidentes também é mais baixa (e o consumo de combustíveis fósseis também). Não vale a pena estar a argumentar que os carros actuais são mais seguros (são mais seguros mas também não precisavam de andar tão depressa, uma vez que os tempos de reacção do cérebro humano são os mesmos de há 100 anos atrás, e o valor normalizado de 2 segundos mantém-se; i.é, durante um lapso de atenção perfeitamente normal ou durante um tempo de reacção também normal, um automó vel a 144 km/h andou 80 metros, antes do condutor começar a reagir. Se acham que isso é seguro…).
Correlação é um fenómeno estatístico, temos de o aceitar como qualquer fenómeno e tentar proteger contra a gravidade das consequências.
A investigação exaustiva das causas e consequências vai levantar problemas graves que possivelmente a legislação do nosso país não ajuda a resolver.
As companhias de seguros envolvidas tentarão minimizar os pagamentos e encontrar “bodes expiatórios” (serão as tais leis do mercado e do interesse individual, neste caso dos accionistas da companhia, a funcionar, em lugar do interesse das vítimas ou dos seus familiares; veja-se o caso do acidente do autocarro na A23, em que foi preciso o advogado e a companhia de seguros da condutora do ligeiro investigarem até descobrirem que o condutor do autocarro, possivelmente por cansaço, não se apercebeu do início da ultrapassagem e ocupou parcialmente a via em que o ligeiro circulava).
É possível que a legislação condene a companhia de seguros do proprietário da Kangoo a arcar com as indemnizações às famílias das 6 vítimas mortais e das ocupantes da outra carrinha (se não se apurar contribuição desta para o acidente. A companhia vai atingir o seu tecto e a única solução para os pais da condutora poderá ser (os meus amigos advogados me perdoem se erro, mas se erro corrijam, por favor, o que me faria feliz) tentar provar que a filha utilizou a carrinha abusivamente, contra a sua vontade. Será mais um factor a agravar o seu sofrimento (na verdade, a investigação exaustiva obrigará a averiguar em que estado se encontrava a carrinha e isso será doloroso para a família, mas o objectivo é encontrar causas, mostrá-las a todos e apelar a que as pessoas as evitem). Digo isto porque, se me roubarem o meu carro, e o ladrão desaparecer, a indemnização às vítimas de um acidente que ele tenha provocado antes de eu comunicar o roubo, compete-me a mim. Eu só posso dizer que não me parece justo. Mas legítimo parece que é. Não peçam o meu apoio para estas coisas, por favor. Espero que esteja enganado, até porque há exemplos em que a seguradora se portou bem (caso do atropelamento das 3 senhoras cabo-verdianas no Terreiro do Paço).
Para além da investigação das circunstâncias relacionadas com as preocupações das seguradoras, interessará também averiguar as condições de estabilidade de uma carrinha como a Kangoo nos limites do peso admissível (cerca de 2 toneladas, como era o caso, com eventual desequilíbrio das cargas e consequente centro de gravidade elevado). Quer isto dizer que as carrinhas comerciais deveriam ter registo de velocidade e limitação de velocidade para as cargas máximas transportadas (ou a DGV não as homologaria). Na realidade, todos os veículos deveriam ter este registo e esta limitação (seria muito mais útil do que o GPS, não seria?, mas as leis do mercado…). No entanto, a prestação de informações fidedignas pelo fabricante sobre as condições de estabilidade em função da carga serão muito importantes ou, em alternativa, a realização de ensaios de estrada (seriam muito mais úteis do que os “road test” que nós vemos nas revistas da especialidade sobre BMs , Mercedes, Audis, todo o terreno, SUVs e outros que tais, não?).
Em resumo, as autoridades rodoviárias têm, parece-me, a incumbência de :
1 – assegurar a investigação ao pormenor das causas e circunstâncias em que se dão os acidentes (não basta dizer que a velocidade era excessiva, que a condutora era inexperiente e que a carrinha ia sobrelotada; não basta), relativamente aos condutores, aos veículos e à estrada (e daí retirar propostas de melhorias ou atenuação de riscos);
2 -promover em campanha publicitária alargada os apelos ao cumprimento do Código, dos limites de velocidade, da condução prudente, e combater a publicidade infernal (na verdadeira acepção da palavra) dos vendedores de automóveis rápidos e potentes ou dos contentinhos da alta velocidade da rede da NET (por favor, a velocidade na rede mede-se em Mega bit por segundo, e não e, “Megas”) que se lembraram de pôr um Rolls a derrapar nas curvas e o motorista a ser aplaudido por uma condução transgressora. Essas coisas ficam no subconsciente, e quem vê acha que pode acelerar à vontade porque os carros agora são muito seguros. Não é uma relação de causa e efeito, é uma correlação, mas é um facto. As pessoas não são manipuláveis, mas a cultura que se cria de rapidez na condução acaba por condicionar subconscientemente o comportamento dos condutores.
Experimentem andar a 80 km/h na zona de obras de alargamento da auto-estrada ali entre a área de serviço de Palmela e o Fogueteiro e vejam o ar zangado de quem vem atrás a querer andar mais depressa
Outro exemplo: há uma correlação fortemente positiva entre o número de atropelamentos a velocidade igual ou superior a 50 km/h e a taxa de mortalidade desses atropelamentos. É um dado retirado das estatísticas.
Era essencial construir uma cultura em que comportamento anormal é não cumprir os limites.

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