Arquitectorium 4 – o “coiso” conspícuo
Esta é mais uma provocação aos meus amigos arquitectos, que muito me alegrariam se comentassem.
Para quem entrava a barra de Lisboa ou simplesmente volteava junto da baía de Cascais, o edifício do grande hotel Estoril –Sol era um ponto conspícuo de muita confiança.
Conspícuo é palavra latina que foi conservada pelos marinheiros para designarem pontos visíveis em terra que possam ser referenciados para traçar rotas seguras.
Nasce assim uma amizade natural entre os marinheiros e os pontos conspícuos a que se vão habituando.
E bruscamente, como um tecido cingindo já sem poder um corpo em expansão, o grande hotel Estoril-Sol implodiu e desfez-se em poeira.
O corpo em expansão era uma ideia que em Portugal vingou com a força dos empreiteiros e dos grandes grupos de construção civil.
Temos um edifício antigo, invoca-se a velha teoria de que é mais caro reconstruir do que demolir e construir de novo (infelizmente verdadeira em muitos casos, mas seriam menos os casos se o “mercado” se orientasse ou fosse orientado, que ele, coitado, muitas vezes não consegue orientar-se sozinho, para a optimização dos custos das empreitadas de reabilitação e reconstrução de edifícios antigos), aplica-se cruelmente a teoria, deita-se abaixo o edifício a que muitos já se afeiçoaram, e constrói-se, às vezes ao lado, um edifício novo, por vezes novo-rico e provinciano.
Aconteceu com os estádios de 2004. Perderam-se valências como pistas de atletismo e de ciclismo. Não se estimaram devidamente os custos da manutenção de construções metálicas expostas à intempérie.
Acorre um arquitecto ansioso por ver o seu nome numa capa de revista com a fotografia colorida do seu edifício como fundo.
Ou, se o edifício ainda não se ergueu, com uma daquelas horríveis maquetas computorizadas em perspectiva 3D.
Se eu digo horríveis é porque o desenho em perspectiva do computador me engana ou esconde coisas que vejo melhor em plantas, alçados e cortes -mas eu cultivo algum espírito de contradição – e porque a estética se me aparenta derivar mais do programa do computador do que da mente do arquitecto.
Que ao menos a força dos interesses imobiliários remunere bem o esforço do arquitecto, porque a agressão foi grande, e que o arquitecto se poupe a justificar ou desculpar o seu trabalho (por favor, não utilize o argumento de que a volumetria foi reduzida para menor impacto e que se abriu o corpo do edifício à vista do interior do parque Palmela; existimos como espécie predadora e impactante, todos sabemos que agredimos; só interessa saber quanto custa essa agressão, se não a pudermos reduzir).
Balanço da agressão:
1 – O grande hotel Estoril-Sol era um exemplar de arquitectura bem definido como arquitectura do seu tempo e como tal deveria ter sido classificado; não deve destruir-se um património com menos de 50 anos porque isso destrói a memória de um povo; imaginem o efeito da destruição do património arquitectónico da Baixa-Chiado se tivesse sido seguida a sugestão de um mediático arquitecto da praça de Lisboa;
provavelmente teria surgido no Chiado uma versão aportuguesada da Potsdamer Platz, com a exibição individualizada de “n” edifícios, cada qual mais ansioso por chamar a atenção, cada qual com a sua estética e o seu arquitecto, ou uma extensão da mostra das capacidades criativas dos arquitectos representados no Parque das Nações;
se falo na Potsdamer Platz é porque o contraste (pela negativa para a Potsdamer, claro) com a porta de Brandenburg e com a Unter den Linen é demasiado chocante, pelo menos para a minha sensibilidade de velho do Restelo, como dirão os meus amigos arquitectos;
e a destruição do Monumental? Ninguém defendia o valor estético daquele desenho, mas era a arquitectura do Estado Novo nos anos 50; deveria ter sido classificado; e o primor da construção de betão armado…
2 – que tinha 22 andares e agredia visualmente; pois, o novo edifício tem 17 andares, dois corpos e um buraco no meio para se ver o parque Palmela por trás, ou para os condomínios que lá vão construir-se, beneficiando do espaço escondido ocupado anteriormente, possam ver o oceano por baixo da trave superior do edifício;
Fértil em recursos, como Homero dizia de Ulisses, ou não estivéssemos na cidade de Ulisses, o arquitecto manteve a volumetria, espraiando em largura o edificio e implantando dois abcessos com os 5 andares de diferença em protuberância franca e ousada, deixando 2 cubos com esses 5 andares de lado (15 m?) suspensos em consola a 12 andares de altura;
Colocou uma protuberância virada para o oceano, para Sul, e outra virada para Poente ; e assim criou um coiso, como se fosse duas panteras a revestir de vidraria negra, com as cabeças de lado, uma anca projectando-se para o mar, as patas largas solidamente assentes na terra, isto é, um “coiso” conspícuo, bem visível do mar, saído de um programa de computador integrador de mini-cubos de diagonais flexíveis que se articulam e encaixam uns nos outros, expandindo-se até à simulação da pantera-coiso;
Imagino a satisfação profissional dos engenheiros de estruturas que resolveram ao arquitecto o problema das protuberâncias, com vigas de suporte e de travamento e chapas metálicas sem recurso ao betão, a calcular com esmero os momentos da consola em carga normal, em sobrecarga, em solicitação sísmica, e a definir os procedimentos de manutenção anti-corrosivos devido à proximidade do mar (não me vão dizer que o edifício foi projectado para 100 anos, pois não? 100 anos passam num instante, a ponte de Entre os Rios caiu com 112 anos, ou já estão a pensar que este edifício vai ter o destino do Estoril-Sol e vai morrer adolescente?);
3 – o projecto financeiro prevê que os condomínios, que espreitarão por debaixo da pantera-coiso, e que possivelmente integrarão parte do seu corpo, para além do novo hotel, rentabilizarão o investimento; será bom sinal que assim seja, e indiciará que a região de Cascais tem um PIB dos mais elevados da Europa; não atiro pedras por isso, até porque ao lado, no paredão do Estoril, vejo as pessoas felizes; apenas me indigno por terem demolido o Estoril-Sol.
Apenas me indigno por não estarmos de acordo, no nosso país, sobre uma política de recuperação do património arquitectónico, conforme tentei comentar nos Arquitectoriuns anteriores (22MAI, 8JUN, 17JUN09).
Assim como assim, os técnicos também servem para conservar o que é antigo, e por esse país fora ainda há muito espaço para construir de novo onde não prejudique o património, mas isso é difícil limitando-nos a esperar que o “mercado funcione”, não acham?
Esta é mais uma provocação aos meus amigos arquitectos, que muito me alegrariam se comentassem.
Para quem entrava a barra de Lisboa ou simplesmente volteava junto da baía de Cascais, o edifício do grande hotel Estoril –Sol era um ponto conspícuo de muita confiança.
Conspícuo é palavra latina que foi conservada pelos marinheiros para designarem pontos visíveis em terra que possam ser referenciados para traçar rotas seguras.
Nasce assim uma amizade natural entre os marinheiros e os pontos conspícuos a que se vão habituando.
E bruscamente, como um tecido cingindo já sem poder um corpo em expansão, o grande hotel Estoril-Sol implodiu e desfez-se em poeira.
O corpo em expansão era uma ideia que em Portugal vingou com a força dos empreiteiros e dos grandes grupos de construção civil.
Temos um edifício antigo, invoca-se a velha teoria de que é mais caro reconstruir do que demolir e construir de novo (infelizmente verdadeira em muitos casos, mas seriam menos os casos se o “mercado” se orientasse ou fosse orientado, que ele, coitado, muitas vezes não consegue orientar-se sozinho, para a optimização dos custos das empreitadas de reabilitação e reconstrução de edifícios antigos), aplica-se cruelmente a teoria, deita-se abaixo o edifício a que muitos já se afeiçoaram, e constrói-se, às vezes ao lado, um edifício novo, por vezes novo-rico e provinciano.
Aconteceu com os estádios de 2004. Perderam-se valências como pistas de atletismo e de ciclismo. Não se estimaram devidamente os custos da manutenção de construções metálicas expostas à intempérie.
Acorre um arquitecto ansioso por ver o seu nome numa capa de revista com a fotografia colorida do seu edifício como fundo.
Ou, se o edifício ainda não se ergueu, com uma daquelas horríveis maquetas computorizadas em perspectiva 3D.
Se eu digo horríveis é porque o desenho em perspectiva do computador me engana ou esconde coisas que vejo melhor em plantas, alçados e cortes -mas eu cultivo algum espírito de contradição – e porque a estética se me aparenta derivar mais do programa do computador do que da mente do arquitecto.
Que ao menos a força dos interesses imobiliários remunere bem o esforço do arquitecto, porque a agressão foi grande, e que o arquitecto se poupe a justificar ou desculpar o seu trabalho (por favor, não utilize o argumento de que a volumetria foi reduzida para menor impacto e que se abriu o corpo do edifício à vista do interior do parque Palmela; existimos como espécie predadora e impactante, todos sabemos que agredimos; só interessa saber quanto custa essa agressão, se não a pudermos reduzir).
Balanço da agressão:
1 – O grande hotel Estoril-Sol era um exemplar de arquitectura bem definido como arquitectura do seu tempo e como tal deveria ter sido classificado; não deve destruir-se um património com menos de 50 anos porque isso destrói a memória de um povo; imaginem o efeito da destruição do património arquitectónico da Baixa-Chiado se tivesse sido seguida a sugestão de um mediático arquitecto da praça de Lisboa;
provavelmente teria surgido no Chiado uma versão aportuguesada da Potsdamer Platz, com a exibição individualizada de “n” edifícios, cada qual mais ansioso por chamar a atenção, cada qual com a sua estética e o seu arquitecto, ou uma extensão da mostra das capacidades criativas dos arquitectos representados no Parque das Nações;
se falo na Potsdamer Platz é porque o contraste (pela negativa para a Potsdamer, claro) com a porta de Brandenburg e com a Unter den Linen é demasiado chocante, pelo menos para a minha sensibilidade de velho do Restelo, como dirão os meus amigos arquitectos;
e a destruição do Monumental? Ninguém defendia o valor estético daquele desenho, mas era a arquitectura do Estado Novo nos anos 50; deveria ter sido classificado; e o primor da construção de betão armado…
2 – que tinha 22 andares e agredia visualmente; pois, o novo edifício tem 17 andares, dois corpos e um buraco no meio para se ver o parque Palmela por trás, ou para os condomínios que lá vão construir-se, beneficiando do espaço escondido ocupado anteriormente, possam ver o oceano por baixo da trave superior do edifício;
Fértil em recursos, como Homero dizia de Ulisses, ou não estivéssemos na cidade de Ulisses, o arquitecto manteve a volumetria, espraiando em largura o edificio e implantando dois abcessos com os 5 andares de diferença em protuberância franca e ousada, deixando 2 cubos com esses 5 andares de lado (15 m?) suspensos em consola a 12 andares de altura;
Colocou uma protuberância virada para o oceano, para Sul, e outra virada para Poente ; e assim criou um coiso, como se fosse duas panteras a revestir de vidraria negra, com as cabeças de lado, uma anca projectando-se para o mar, as patas largas solidamente assentes na terra, isto é, um “coiso” conspícuo, bem visível do mar, saído de um programa de computador integrador de mini-cubos de diagonais flexíveis que se articulam e encaixam uns nos outros, expandindo-se até à simulação da pantera-coiso;
Imagino a satisfação profissional dos engenheiros de estruturas que resolveram ao arquitecto o problema das protuberâncias, com vigas de suporte e de travamento e chapas metálicas sem recurso ao betão, a calcular com esmero os momentos da consola em carga normal, em sobrecarga, em solicitação sísmica, e a definir os procedimentos de manutenção anti-corrosivos devido à proximidade do mar (não me vão dizer que o edifício foi projectado para 100 anos, pois não? 100 anos passam num instante, a ponte de Entre os Rios caiu com 112 anos, ou já estão a pensar que este edifício vai ter o destino do Estoril-Sol e vai morrer adolescente?);
3 – o projecto financeiro prevê que os condomínios, que espreitarão por debaixo da pantera-coiso, e que possivelmente integrarão parte do seu corpo, para além do novo hotel, rentabilizarão o investimento; será bom sinal que assim seja, e indiciará que a região de Cascais tem um PIB dos mais elevados da Europa; não atiro pedras por isso, até porque ao lado, no paredão do Estoril, vejo as pessoas felizes; apenas me indigno por terem demolido o Estoril-Sol.
Apenas me indigno por não estarmos de acordo, no nosso país, sobre uma política de recuperação do património arquitectónico, conforme tentei comentar nos Arquitectoriuns anteriores (22MAI, 8JUN, 17JUN09).
Assim como assim, os técnicos também servem para conservar o que é antigo, e por esse país fora ainda há muito espaço para construir de novo onde não prejudique o património, mas isso é difícil limitando-nos a esperar que o “mercado funcione”, não acham?
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