Gosto de assistir a concertos na Gulbenkian.
Mais gostaria que mais pessoas gostassem.
Mas não gosto de contrariar ninguém nem obrigar as pessoas a gostar seja do que for.
E deixo-me levar por umas quantas reflexões enquanto o soprano canta as canções que Richard (não confundir com os das valsas, se fazem favor) Strauss escreveu na intenção da mulher.
Strauss gostava de ouvir a mulher cantar, e eu não me admiro que também gosto de ouvir a minha. É uma forma de executar os procedimentos de acasalamento como outra qualquer.
Entretanto, a propósito deste concerto, tomo conhecimento de que Strauss esteve em Portugal por várias vezes, nos primeiros anos do século XX, umas vezes para dar concertos e outras para passar uns dias em Sintra a compor.
Seria interessante saber que composições de Strauss nasceram em Sintra.
Mas isto a propósito deste fenómeno: na sociedade portuguesa do inicio do século XX coexistia um vasto grupo de cidadãos em que predominava o analfabetismo e a pobreza, com um pequeno grupo de cidadãos requintados e de nível cultural elevado. Estes recebiam os expoentes da arte da época e com eles conviviam.
Como é sabido, só pode haver cultura se a capacidade produtiva duma sociedade for capaz de eliminar a preocupação pela satisfação das necessidades básicas dos beneficiários. Dado que a produção não chegava para todos, só alguns podiam beneficiar da cultura. Isto é, havia um fosso entre a maioria dos portugueses e a minoria dos que beneficiavam da cultura.
Este fosso foi tentado colmatar com o esforço da I República de alfabetização.
Porém a capacidade produtiva continuou insuficiente e os detentores do poder económico não viram necessidade de estender a todos os benefícios da cultura.
Na actualidade a massificação dos programas televisivos de entretenimento tenta iludir a existência do fosso com a disseminação dos concursos, telenovelas e futebol.
Mas a verdade é que só uma minoria se deixa encantar com as canções de Strauss (não confundir com os das valsas).
É uma pena.
Uma pena e um fosso, claro.
Quer-me parecer que só através do cumprimento do art.27 da Declaração Universal dos Direitos do Homem pelos governos seria possível reduzir o fosso. Mas isso contraria os princípios sagrados da religião do mercado, vulgo adam smithismo, por mais que alguns ministros da cultura (um ministério para a cultura? e se se lembrassem de um ministério para a liberdade?) achem que a cultura também vende, e que Fernando Pessoa vale mais que os contentores de Alcântara.
Por outo lado, se a cultura é um sinal exterior de superioridade, que interesse poderá haver em democratizar a cultura, em desviar dinheiro doutros sinais exteriores de riqueza para essa democratização?
Será esta consideração tão simples que preside à elaboração dos programas da nossa televisão (2.400 milhões de euros em 9 anos de indemnizações compensatórias para a RTP…)?
Sem comentários:
Enviar um comentário