domingo, 23 de setembro de 2012

A reunião do Conselho de Estado

Nota prévia: a descrição seguinte é ficcional, pelo que a eventual aparencia de realidade será simples distorção da imagem da realidade ou apenas coincidência. As afirmações do foro da neurociência são simples hipóteses.


O especialista de neurociência tinha sido chamado à reunião do conselho de estado para explicar ao senhor presidente e aos senhores conselheiros por que razão a crise europeia se repercutia de forma tão grave sobre os cidadãos e cidadãs portuguesas sem que fossem tomadas medidas que já tinham sido discutidas e aplicadas nos outros países, e porque o governo não conseguia achar soluções para a crise nacional, ou pelo menos achava que as críticas que lhe faziam eram apenas consequência de incompreensão.

O especialista falou pausadamente, por motivos que se compreenderam da sua própria exposição.
Que os portugueses eram um povo periférico; que por isso tinha tendência a ignorar os progressos que mais facilmente se verificavam na Europa do norte e do centro e a alimentar a ilusão, para manter a auto-estima, de que as suas coisas são melhores do que as dos outros povos; que gosta de evitar conflitos mas tenta aproveitar as oportunidades de obter benefícios desde que possa esconder dos outros as razões do seu sucesso; que no usufruto das condições climatéricas temperadas se esquece desde pequeno de estudar e recusa o esforço de fazer cálculos matemáticos; que, por ser tendencialmente pacífico, criou ao longo da história as imagens ideais de grandes chefes, reis, santos, cabos de guerra ou comandantes de esquadras, cometendo a ingratidão de esquecer os artesãos e os técnicos que garantiam o dia a dia das pessoas e os sucessos dos chefes; que gosta de se misturar com gente de todas as variedades e de se perder de onde possa ver os horizontes de mar.
Que por tudo isso os mecanismos de produção dos sons elementares ou fones no aparelho fonador, e os mecanismos da linguagem ao nível cerebral, tinham seguido caminhos um pouco diferentes dos que os outros povos da Europa tinham trilhado.
Que os mecanismos da linguagem derivam de algumas caraterísticas de funcionamento dos neurónios cerebrais, isto é, que a ideia forma-se também em função dos sons ou caracteres existentes para a exprimir, e que por um provável fenómeno de inter-ação com os fones caraterísticos de grupos restitos de pessoas, os próprios neurónios se foram reconfigurando ao longo das gerações de acordo com a linguagem, sem excluir a hipótese duma alteração genética ao nível do aparelho fonador, que rapidamente se tivesse propagado a todo o povo.
A pesquisa recente das origens do ADN da população portuguesa parecia confirmar todas as hipóteses anteriores, considerando a grande diversidade dessas origens, desde os celtiberos a romanos, tribos germânicas e godas, magrebinos, nórdicos dos tempos das conquistas henriquinas e africanos trazidos para os mercados de escravos de Lagos.
Da evolução demográfica nos territórios do país e da sua subordinação a grupos restritos de dominação, como os senhores feudais de ascendência romana-germano-franca da primeira dinastia, ou de ascendência anglo-saxónica-normanda da segunda dinastia, resultou uma linguagem doce por oposição aos povos que se deixaram para trás, no interior da península ibérica, mas algo confusa pelas incertezas na ocupação produtiva do território e por falta de sistematização das leis.

Os conselheiros ouviam a pausada peroração num estado de torpor que os impedia sequer de interromper o especialista para lhe por questões.
Por isso o especialista prosseguia, não animado porque não era essa a sua forma de falar, mas com o seu tom entediante e adormecedor.

Que a fixação da língua portuguesa tinha ocorrido em conjunto com o esforço de garantir a independência politica no século XVII, numa altura em que a economia portuguesa estava altamente deficitária com esse esforço, mas em que os doutores de leis obrigaram o povo, para se diferenciarem definitivamente dos castelhanos, a alterar parte significativa da língua.
Por exemplo, Gil Vicente dizia “mais grande”, mas os decretos de D.João IV já diziam “maior”.
Tudo isto para explicar que a língua portuguesa não resultou, na sua essência, da evolução no dia a dia do povo, mas foi imposta pelos grupos de poder.
Contrariamente ao que se passou em Inglaterra, em que as classes dominantes falavam francês na corte e latim na igreja, mas deixavam o povo modelar a sua língua nos seus negócios.
Então, se a língua estava ao serviço da economia, lógico foi que a língua inglesa precisasse de menos sons e caracteres para dizer o mesmo que a língua portuguesa, ditada de cima para baixo a partir de sábios sem grandes preocupações pela angariação da subsistência.
Ou dito de outra forma: se considerarmos um encadeamento de ideias, ligadas entre si por elos simbólicos de modo a constituir uma relação progressiva, temos que os neurónios de um cérebro inglês precisam de menos tempo para processar uma quantidade de sons ou caracteres que traduzem a realidade da ideia, enquanto o cérebro português tem mais caracteres ou sons para processar e por isso, embora possa ter a mesma velocidade de processamento, acaba por demorar mais tempo no processamento.
O problema, porém , não está no tempo de processamento, porque bastaria falar de forma mais pausada para acompanhar o raciocínio.
O problema está em que nos neurónios do cérebro se processam reações químicas que têm o seu tempo próprio de que resulta um ciclo de teste periódico das informações adquiridas pelos periféricos (olhos, ouvidos, tato, papilas olfativas, papilas gustativas).
Ora, esse teste periódico, vê-se isso nos registos de ressonância magnética da atividade cerebral, faz-se sempre que termina cada ciclo de processamento do modelo que simula a ideia, e tem por objetivo recolher uma série de amostras da ideia ou do seu modelo. O cérebro se encarrega depois de reconstituir toda a ideia ou modelo a partir das poucas amostras de que dispôs.
Porém, a exposição da ideia em si é independente do tempo desse ciclo, que como se viu é maior numa linguagem com mais caracteres ou sons para expressão do modelo de uma ideia.
Isto é, o tempo de amostragem português é superior ao tempo de amostragem inglês.
Daqui resulta que parte da ideia ou do seu modelo pode escapar às amostragens, conduzindo assim a corrupção ou distorção da mensagem original.
Isto é mais grave se a falta da amostragem coincidir com um elo de ligação entre duas ideias.
Provavelmente neste caso o cérebro português fará uma derivação para uma associação de ideias no seu banco de memória, levando a uma distorção ainda maior, misturando experiencias anteriores, que não terão nada a ver com a sucessão de ideias em análise, ou com as amostras ou vestígios da realidade, ou do seu modelo.
O cérebro engana-nos, quer seja português ou inglês, mas podíamos tentar reduzir a taxa de erros do pensamento português.

O especialista estava deliciado, contemplando os rostos dos conselheiros, adormecidos uns, outros debatendo-se depois de esgotada a sua capacidade de concentração na exposição.

Dou-vos um exemplo: como se refere um inglês ou um americano ao seu telemóvel? Chama-lhe simplesmente “phone”. Ou, se estiver em dia de fala pausada, “cellular phone” ou “mobile phone”. Os alemães dirão “handy”, porque pensaram no aparelho primeiro como “handy-talkie”, mas também poderão chamar-lhe “mobil telephon”. Um um espanhol dirá “celular” ou “mobil”, um francês “portable”, e um italiano que não queira usar o termo anglo-saxónico dirá carinhosamente “telefonino”.
Em português alguém se lembrou de decretar uma fusão entre “telefone” (fala ou som à distancia, respeitando a origem grega) e “radiomóvel” (posto de rádio montado em viatura automóvel). E ficou “telemóvel”. Não existe em mais nenhuma língua do mundo. É um claro exemplo de uma derivação para uma associação de ideias de uma experiencia anterior, de uma fuga que omitiu a amostragem de um elo de ligação. Ainda bem que os brasileiros se libertaram do gene do processamento de uma quantidade exagerada de sons ou caracteres, e dizem simplesmente, “celular” (é de facto um telefone que funciona em células de território de influencia de um emissor).
Dou-vos outro exemplo: os blogues na internet estão cheios de propostas alternativas às medidas de austeridade anunciadas pelo governo português; há mais de 2 anos que os economistas aterrados publicaram as suas 22 medidas (ver
http://fcsseratostenes.blogspot.pt/2010/10/economicomio-lxii-as-22-medidas-dos.html ) que só agora, timidamente, os órgãos centrais europeus começam a operacionalizar, como a regulação dos CDS -credit swap default e a compra de obrigações pelo BCE; os jornais enchem-se de entrevistas de pessoas com alguma experiencia que sensatamente apontam medidas ou recomendam ao governo que negocie as comissões da troika e as taxas de juro diretamente com os órgãos centrais europeus; uma central sindical vai ao ponto de fazer as contas com o rendimento que se poderia retirar de, por exemplo, aplicar uma taxa de 0,25% às transações financeiras (não confundir com a taxação das mais valias, ver  http://fcsseratostenes.blogspot.pt/search?q=transa%C3%A7%C3%B5es);
o primeiro ministro italiano convida para uma reunião de estudo de medidas de defesa comum os seus homólogos da Espanha, Grécia, Irlanda e Portugal, mas este não se faz representar, e o governo português e o seu partido repetem como disco de vinil riscado que não há alternativas. É claramente um problema de omissão de dados essenciais durante as amostragens cerebrais.
A oposição generalizada ao novo acordo ortográfico, que pretende subordinar a escrita à fonética e assim diminuir o número de carateres é outro exemplo.
Como a discussão bizantina sobre a dependencia da autoridade marítima nacional, se do ministro se do almirante, porque o número 6 do artigo 275 da constituição diz que as forças armadas podem ser incumbidas de tarefas de proteção civil ou de satisfação de necessidades das populações, mas como o número 7 do mesmo artigo fala em situações de emergência, pronto, a interpretação jurídica que prevalece é que a polícia marítima, apesar de deter a maior soma de conhecimentos sobre o mar, tem de se subordinar às decisões de quem não o conhece.
Também podemos, nesta perspetiva de confusão perante a realidade, justificar a dificuldade crónica dos portugueses trabalharem em equipa: um dos membros da equipa pensa que se está a falar de uma coisa e outro membro acha que se está a falar de outra; quando ambos concordam, estão a concordar sobre coisas diferentes. Esperemos que este argumento não seja usado para acabar com a regra proporcional nas leis eleitorais.

Neste ponto, os conselheiros deram mostras, remexendo-se nas cadeiras, que tinham prestado alguma atenção à última parte da exposição do especialista, e ainda bem que estavam mais atentos, porque o Presidente deu sucessivamente a palavra a cada um.
Findas as intervenções e o período de troca de impressões que se seguiu, o Presidente ditou para a ata:
“É com muito orgulho de ser português que comunico ao povo que estamos todos de acordo na defesa dos superiores interesses da Nação, não sendo portanto necessário adotar medidas drásticas como, por exemplo, passar a utilizar o método científico na gestão da coisa pública”.







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