sexta-feira, 11 de abril de 2014

No comboio Alfa

O comboio vai cheio.
O Alfa saiu do Porto depois das 16:00 e chegará a Lisboa pouco mais de 3 horas depois.
Ouvem-se conversas por telemóvel de negócios ou de decisões profissionais ao longo da carruagem. Estão muitos computadores portáteis abertos e não estão em modo de lazer. Pouco abonatórios para os últimos interlocutores os comentários que se fazem para os companheiros depois de terminar a conversa. Prometedoras de bons negócios outras conversas. Os bajuladores do governo diriam que é graças às suas medidas que se vê deste  modo a economia a funcionar. Esquecem a análise de Brecht, que as espigas de trigo crescem independentemente dos decretos do ministro da agricultura. Ou o que qualquer anarquista diz, que a economia funciona apesar dos governos e não graças a eles.
Revelam alguma consciência ecológica, estes profissionais. Deixaram os seus carros sossegados e dispensaram o avião, que gasta ineficientemente o seu combustível para se elevar a uma altitude inferior à da velocidade económica de cruzeiro, porque tem de iniciar a descida.
A passageira em quincôncio relativamente ao meu assento está a rever as definições e os procedimentos do arresto e da penhora.
Sublinha frases, vê-se que está interessada no que lê. É ainda jovem, acredita no que está a fazer...
Imagino como reagiria se lhe colocasse a minha hipótese, que tamanho afã não será tanto a preocupação de justiça nem a de exercer com profissionalismo o seu mister, que será apenas um comportamento cerebral distinto da essência das coisas.
Cerebral não quer dizer racional, pode ser emotivo, até predominantemente.
Deixámos para trás o troço de via férrea em mau estado entre Coimbra e Alfarelos, tão em mau estado que a velocidade é reduzida para 46 km/h e já se sabe que um empreendimento de renovação da via vai beneficiar de fundos comunitários.
O governo, apesar de obras de conservação não deverem ser consideradas como investimento, orgulhar-se-á de o ter conseguido após 3 anos de paralisação doentia dos investimentos em infraestruturas. Mas não irá haver investimento líquido, isto é, o ativo não vai aumentar.
Atravessamos agora as planícies de Pombal a 200 km/h . Quando falo de um comportamento cerebral por parte da jovem advogada refiro-me à preocupação pela preservação das afinidades e das relações do poder jurídico com os detentores do poder político, económico e financeiro.
Também eu me recordo, recém-formado, da minha ânsia de recolher informação sobre cadernos de encargos, sobre procedimentos burocráticos a satisfazer, ignorando na minha ingenuidade e inexperiencia que a burocracia mata a eficácia do conhecimento e da sua aplicabilidade na produção ou construção de equipamentos ao serviço das comunidades.
Mas como disse, o cérebro comporta-se assim. É por demais limitado,  e por isso ilude o seu possuidor, mente-lhe, convence-o até que não, que tem muita capacidade para entender o mundo e as suas variáveis, quando é exatamente ao contrário. O cérebro não consegue acompanhar o fluxo de variáveis em permanente mutação. Fixa apenas alguns dados, e reconstitui segundo modelos que podem e normalmente estão muito afastados da realidade, a trajetória entre os dados conhecidos.
Que diria a jovem advogada, de negro vestida, com calças largas com bainha, se eu lhe dissesse que ela estava  a preparar uma ação para cerebralmente enganar alguém com as definições e os procedimentos de arresto e penhora?
Atravessamos Albergaria dos Doze. O maquinista reduziu para 47 km/h. Desta vez não é o estado da via que impõe a limitação. O regional que vai lá à frente, ou será um mercadorias da Takargo? ainda não atingiu a estação onde pode parar no desvio de modo a ser ultrapassado pelo Alfa.
Como? reduzimos para 12 km/h?  A sinalização não nos deixa seguir mais depressa. Como é possível cumprir o horário? Não pode explorar-se numa linha só, um serviço de passageiros de qualidade de velocidade elevada, misturado com mercadorias e com regionais e suburbanos. Não é possível, por mais que os decisores que nunca exploraram comboios na linha da frente queiram construir uma ilusão, uma miragem de polivalencia e de prioridade às mercadorias para desenvolver a economia.
Veem como o cérebro nos engana? E digo engana porque estamos aqui a mover-nos a 12 km/h.
A jovem advogada sublinha agora, veementemente, com o seu marcador amarelo, tabelas várias, sabe-se lá se contendo os valores fatais que vão impedir o plano de recuperação económica de uma pequena empresa.
Retomamos 180 km/h em Caxarias, mas passamos Chão de Maçãs, estação muito procurada pelo turismo religioso porque perto de Fátima, e descemos novamente a 46 km/h. Atravessamos um túnel e o gabari  pendular do Alfa não consente ir mais depressa. E chamam os decisores a isto um serviço de velocidade elevada...
Que desgosto me dá ver isto, um comboio cheio, haver procura e um governo a pensar apenas nas mercadorias e a querer sacudir os passageiros para a Ryan Air e a Easy Jet, sem sequer lhes cobrar uma taxa de carbono por emissão de CO2 para além dos valores da via férrea.
Que desgosto me dá ver estações sem travessias  pedonais aéreas ou subterrâneas, sujeitando os passageiros nas suas corridas para os comboios regionais e suburbanos aos riscos da passagem do Alfa, que apesar de tudo tem de reduzir, como no Entroncamento, para 65 km/h. E continua em mau estado, a via logo a seguir ao Entroncamento? Passamos pela EMEF a 27 km/h, oportunidade para apreciar as velhas automotoras holandesas Allan e , ao fundo, o maciço rochoso do vale do Tejo.
Passagem pelo paul de Boquilobo a 142 km/h e subida da velocidade depois de Vila Nova da Rainha. Várias vezes, depois de Vila Franca de Xira, atingimos 220 km/h.
Chegada  a Lisboa Oriente com 8 minutos de atraso, e com o desplante da companhia a fazer passar nos seus indicadores de escrita variável: "ajude-nos a cumprir o horário, facilite as entradas e as saídas". Antigamente, punha-se o cliente no cume das atenções. Agora, tal como na campanha da abertura dos olhos contra a fraude, no metropolitano, lança-se subliminarmente a suspeita para a responsabilidade dos passageiros nos atrasos.
A jovem advogada sai em passo decidido, o seu dossier arrumado na pequena mala metálica de marca e preto brilhante, com rodinhas.
Que desgosto... e que falta de confiança na aplicação dos fundos comunitários para termos uma ligação de velocidade elevada, com um tempo de percurso entre Lisboa e Porto em duas horas e um quarto, em bitola europeia, interligada com Espanha, por Badajoz e Vigo, com interferência mínima com o tráfego de mercadorias...


















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