Quem é Deniz Gamze Erguven?
Vou recuar no tempo para responder.
Há muitos anos, a minha professora de História propôs aos seus meninos do 4ºano (atual 8º) um trabalho de grupo sobre um tema do império romano.
Juntamente com um parceiro, resolvemos fazer a lista de todos os imperadores romanos e dos reis da Gália pré-francesa. Claro que a crítica foi a desatenção dos movimentos sociais e suas causas.
No ano seguinte, o meu professor de português passou como tema para o teste, uma redação sobre um tema que nos tivesse impressionado. Ora eu tinha ganho um certo gosto pelas histórias imperiais. Tinha comprado um livrinho com a história do império bizantino e outro, da coleção PUF (Presses universitaires de France) sobre a história da Turquia. Tinha ficado impressionado com a brutalidade de um episódio dos janízaros, a guarda pretoriana do sultão de Constantinopla, isto é, Istambul, e foi isso que pus na redação. Claro que o professor não gostou, ele que queria detetar sensibilidades artísticas e literárias para poder exibir nos seus encontros interpares.
Isto para dizer que me interesso pelos acontecimentos na Turquia e no médio oriente. Admiro o esforço de Ataturk para passar do império medieval dos otomanos para uma república laica moderna (e contudo, o senhor Erdogan é um retrógrado que tem feito o povo regredir no sentido de uma república islâmica, um pouco como seria se um partido democrata cristão reimpusesse a santa inquisição).
Achei curioso o alinhamento da Turquia com a Alemanha na I Grande Guerra, o episódio do desastre dos Dardanelos (que faziam soldados australianos em Galipoli, nos Dardanelos,a morrer tão longe da sua terra?). Compreendi por isso porque o museu de Berlim das antiguidades clássicas é tão rico. Arqueólogos alemães tinham trabalhado intensamente desde o século XIX na Asia Menor (descoberta das ruinas de Troia) e no Egito (busto de Nefertiti em Berlim). Ainda hoje a Turquia se orgulha de cuidar melhor dos vestígios da cultura grega clássica do que os próprios gregos.
O desfecho da I Grande Guerra foi fatal para o império otomano. A Inglaterra imperial, que tinha sido aliada da Turquia na guerra da Crimeia, em 1854, quando a Alemanha ainda não se tinha unificado, quis então conter o expansionismo russo e ao mesmo tempo criar espaço para os seus capitais (estava-se na revolução industrial) nos territórios do império otomano, ricos em petróleo. Foi uma aliança interesseira. Com o fim da I Grande Guerra, contida a influencia germânica, a Inglaterra pôde assenhorear-se dos poços de petróleo do Iraque ao Cáucaso e à Pérsia, ou obter alianças com a tribo saudita. E retalhar autistamente o mapa do médio oriente, com grandes culpas na situação atual. É por isso que não gostei de ver Peter O´Toole a fazer de Lawrence da Arábia.
Tem sido difícil o progresso civilizacional da Turquia. A censura dos sultões impediu até a difusão da imprensa, só vulgarizada no fim do século XIX. Os indicadores do analfabetismo eram catastróficos. A religião opôs-se ao progresso civilizacional.
E chegamos à Turquia de hoje, que eu desejaria ver integrada na União europeia, desde que respeite e cumpra os princípios básicos de uma sociedade laica, em que as mulheres possam andar de cabelos ao vento, como vemos as suas artistas nos festivais europeus, e os seus cidadãos e cidadãs a participar nas ações comuns, como eu testemunhei nas reuniões com os meus colegas do metro de Istambul. E que os orgãos institucionais respeitem e apoiem a autonomia dos curdos, em vez de criminosamente os culparem da guerra síria.
Não é só o facto da Turquia ser dos países com maior número de jornalistas presos, de manter preso Oçalan, político curdo que defende soluções pacíficas não obstante o aliado USA classificar facciosamente a sua organização como terrorista (como fez aliás com Mandela), de ser gritante a desigualdade de género devido à força religiosa. A sua política externa é perigosa principalmente por ser um aliado da NATO e reprimir a autonomia curda e por tomar partido no eterno conflito sunitas-xiitas (pense-se no período catastrófico que foi para a Europa o das guerras religiosas da Reforma e da Contrarreforma).
Ah, é verdade, Deniz Gamze Erguven, É a realizadora turca, vivendo também em França, do filme Mustang, sobre 5 raparigas cuja educação, primeiro liberal e depois reprimida, é a metáfora da Turquia moderna.
Viva a Turquia, república laica europeia.
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