Do caso do Martinho da Arcada, café aberto ao público desde 1778 e referência na obra de Fernando Pessoa, permito-me retirar informação que julgo útil para técnicos de transportes.
Referiu o pobre proprietário (pobre no sentido de vítima da política cultural deste país) que junto da sua esplanada passavam 150 autocarros por hora.
São 24 segundos entre autocarros sucessivos.
O que quer dizer que só os clientes mais rápidos conseguem engolir uma bica entre dois autocarros.
Assinale-se, com base no relato do próprio proprietário, a reacção primária (primária no sentido de não ter havido tempo para pensar noutros parâmetros do problema antes de fazer o comentário) do senhor presidente da câmara de Lisboa quando posto perante a questão de um autocarro de 24 em 24 segundos: que se conseguisse que fossem a gás melhoraria.
Não, não melhoraria. Como se costuma dizer, a questão não é essa.
Primeiro – quando se estreitam as vias de comunicação ribeirinhas, e se desloca o transito de autocarros para o interior, vai agredir-se esse interior. Se fossem eléctricos “rápidos” também havia agressão. É por isso que os transportes de massas são, nos centros das cidades, enterrados. O facto de passarem 150 autocarros por hora significa que o transporte é mesmo de massas e requer o sistema metropolitano.
Segundo – As pessoas convenceram-se que é fácil opinar sobre questões de transportes e ignoram as rasteiras que as “contas” podem conter. O caso dos 150 autocarros por hora significa que estão a passar por um funil (neste caso as ruas da Alfandega e do Arsenal). É como algumas ideias que por aí já circulam. Querer servir Lisboa com linhas de eléctricos rápidos (só de nome, só podem ser rápidos se atropelarem um cidadão por dia) e depois enfiá-los em fila nos túneis do Metro. Acumular-se-ão os atrasos e as esperas pela vez de cada linha
Terceiro – Mexer nos sistemas urbanos e de transportes não pode ser decidido com esta ilusão, de quem não precisa de usar os transportes colectivos para se deslocar em Lisboa. O problema da Baixa ribeirinha de Lisboa é de facto muito complicado e exige soluções muito caras. O plano director municipal de 1962 previa um túnel rodoviário que evitava a Baixa passando por baixo de Alfama, da Avenida, e do Bairro Alto. Mais tarde tentou-se fazer um túnel rodoviário simultaneamente com as linhas de Metro da Praça do Comércio. À boa maneira, escolheu-se a tecnologia errada da tuneladora para terrenos de aluvião, ocorreu o acidente de Junho de 2000 e desistiu-se do túnel rodoviário. Voltou a perder-se uma boa oportunidade de ganhar terreno ao rio e afastar o transito automóvel dos torreões do Terreiro do Paço quando se fizeram as obras de consolidação dos terrenos envolventes do túnel do Metro. Mas surgiu, à boa maneira burocrática, o Instituto do Património Arquitectónico proibindo que a Praça fosse alterada , embora já tivesse havido uma alteração com a infeliz estação de Sul e Sueste de Cotinelli Telmo (infeliz no sentido de arquitectonicamente não conseguir integrar-se na Praça).
Quarto - Ainda existem soluções para salvar a Baixa e o Martinho da Arcada. São muito caras, mas valia a pena. O Terreiro do Paço é mesmo bonito. Precisava de ser libertado dos modos de transporte agressivos, que não são só o transporte individual, mas também o tráfego pesado de mercadorias e passageiros, mesmo que movidos a gás ou electricidade. Precisava de alterações, de investimento, mas justificava-se para uma sala de visitas de uma capital de um país soberano…
Quinto – Mas não há comissão de notáveis nem iluminados que possam resolver isso. Têm de ser seguidos os métodos de participação ampla das entidades envolvidas e dos técnicos das especialidades afins, em debates técnicos alargados (não, o método Prós e Contras não serve, pode fazer-se, mas não serve do ponto de vista de qualidade técnica), sem que os critérios políticos prevaleçam. Como provavelmente as pessoas não quererão que sejam seguidos os métodos pombalinos ou os do general De Gaulle, pela minha parte sugiro os métodos que vêm explicados na”Sabedoria das Multidões” de James Surowieck. Editora Lua de Papel.
Sexto - Eu sei que é muito difícil convencer as pessoas seja do que for, especialmente quando o que ouvem não é o que querem. Mas é uma pena, se não nos convencemos que afinal o problema do Martinho da Arcada é principalmente, no contexto actual, um problema de transportes.
Já imaginaram um autocarro a passar de 24 em 24 segundos ao lado da cadeirinha em que bebem descontraídos uma cerveja, enquanto tentam seguir num ecran exterior a transmissão das canções de Mozart a que o Presidente da nossa República teve o prazer de assistir em Salzburgo?
Pensem nisso.
PS (post scriptum) - Já que falo nisso, e para que o sacrifício do nosso Presidente ao ouvi-las não tenha sido em vão, gostaria que não perdessem as canções de Mozart. Normalmente vêm em 2 CDs, com interpretação por soprano, tenor e piano (e nalgumas também bandolim). São normalmente temas simples da vida quotidiana, como convem a quem não quer armar em génio ou talento salvador. Pedindo na discoteca encontram facilmente. A edição que eu tenho é da Naxos e permite o acesso a "sites" complementares. Vá lá, façam o sacrifício.
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