o texto seguinte faz parte de umas memórias de um metropolitano; embora
o tenha escrito para ser apenas isso, uma memória, lembro-me dele sempre
que leio ou oiço uma notícia sobre a preocupação dos senhores governantes,
dos senhores analistas e comentadores políticos, dos senhores economistas,
que do alto da sua ignorancia e distanciamento da realidade evocam a necessidade
imperativa de "reformar o Estado". Como diria António Aleixo, calai-vos que
pode o povo querer uma reforma a sério.
o tenha escrito para ser apenas isso, uma memória, lembro-me dele sempre
que leio ou oiço uma notícia sobre a preocupação dos senhores governantes,
dos senhores analistas e comentadores políticos, dos senhores economistas,
que do alto da sua ignorancia e distanciamento da realidade evocam a necessidade
imperativa de "reformar o Estado". Como diria António Aleixo, calai-vos que
pode o povo querer uma reforma a sério.
A exploração de um metropolitano
exige o cumprimento de padrões de segurança rigorosos.
Senti que a orientação dos técnicos
de engenharia, muitos deles com experiencia anterior na CP, era nesse sentido,
o que diferenciava o metro, empresa jovem, da maioria das empresas de
transportes da época.
Também o ambiente entre os
trabalhadores e nos seus orgãos sindicais, ainda antes da revolução de 25 de
abril de 1974, revelava modernidade, com acordo coletivo e espírito de abertura.
Recordo, no dia da entrevista para a
minha admissão, com Rocha Cavalieri, a sua preocupação, como diretor de
exploração, com a greve dos maquinistas, em fevereiro de 1974.
Para ele, os comboios não circularem
colidia com o seu código deontológico, afetava o seu compromisso de garantia da
disponibilidade do transporte à comunidade.
E na verdade, os engenheiros deviam
ter um juramento semelhante ao de Hipócrates, darem ao objeto da sua atividade
profissional, neste caso transportar pessoas, a prioridade máxima.
Com mais ou menos sobressaltos, os
dias que se seguiram à revolução não foram tormentosos.
Algumas mudanças nos lugares de
chefia, convites até a jovens engenheiros, recem admitidos para assumirem
funções de responsabilidade, enquanto seniores se transferiam para gabinetes de
estudos e de obras novas ou de apoio à administração, preparando a remodelação
das estações e, de colaboração com os consultores alemães da Deconsult, o plano
da futura rede.
Não houve grande animosidade entre
grupos, prevaleceu, sobre ímpetos de vingança, a consideração pelo prestígio
profissional do ex-membro da Legião Portuguesa, ou do familiar do latifundiário
morto numa rixa com trabalhadores rurais. A comissão de trabalhadores foi
representativa com pluralismo e até desconfiada quando eu lhe respondi que
talvez não devessem procurar chefes para substituir os anteriores, mas antes
desenvolver a getão participativa e coletiva.
Os
comboios não pararam, apesar do boicote de alguns fornecedores
estrangeiros, e a comunidade de trabalho cumpriu a sua missão, não de
Hipócrates, mas talvez de Hieron, o da força do vapor.
Não pararam, estranhamente para quem
se deixava impressionar pelo que lia nos jornais; até a própria economia do país,
apesar das descapitalizações e da quebra do PIB, reagiu bem à crise
internacional do petróleo de 1973,
a ponto de uma equipa do MIT fazer um relatório elogioso
em novembro de 1975.
A maioria viveu dias de intensa
esperança, acreditando que podia participar na vida política e ter uma opinião
sobre os problemas do país.
O meu especialista de peças de
precisão para as máquinas de impressão de bilhetes, pela sua ingenuidade
natural, era o exemplo juvenil, embora já fosse avô, de quem passava muito do
seu tempo a pensar em mudanças, no bairro, na empresa, no país.
Dizia-me sempre, depois de rejeitar
sistematicamente as minhas propostas de alterações nos mecanismos em que
trabalhava, para corrigir deficiencias de funcionamento, porque achava que as
tinha melhores:
- Sabe, isto está a precisar de uma
reestruturação.
E assim serenava, mesmo sem
apresentar, por simplesmente ignorar quais deveriam ser, propostas concretas de
reestruturação da empresa ou da nossa área.
Era o tempo da experiencia da
cooperativa da Torre Bela, na estrada de Alenquer, com as mulheres do campo a
recolherem cuidadosamente todas as azeitonas caídas para fazer azeite e óleo
combustível.
Ou da cooperativa Salvador Joaquim do
Pomar, registada como unidade coletiva de produção, no Escoural, ocupada e
descrita nos jornais como foco de agitação de partidos politicos.
Porém eu estive lá na véspera da
promulgação da lei da reforma agrária.
Em surdina os trabalhadores agrícolas
murmuravam “a terra a quem trabalha, vamos ocupar, já”, mas os discursos dos
militantes do partido acusado de agitador repetiam: “esperem pela promulgação
da lei no Parlamento”.
E não vi travessas da companhia das
Índias à venda na beira da estrada.
Ou do voo do Harvard T6 em 11 de
março de 1975, que vi da janela do meu gabinete, quando discutia pormenores do
sistema de travagem automática com o técnico francês instalador.
Ou do grupo de adolescentes que
atravessava ao fim do dia a Praça de Londres, já a bomba do Harvard T6 tinha
caído sobre o Ralis, seguindo um ingénuo professor barbudo, calvo embora ainda
jovem, gritando “a reação não passará”, em véspera da nacionalização das
grandes empresas.
Nasce no nosso cérebro uma ilusão,
uma construção de fé numa lei universal da qual se deduz a lei que rege uma
aplicação concreta. Pensa-se que há uma verdade, uma lógica.
Adora-se essa verdade, como se não
existisse por si a realidade, quando a adoração pode ser apenas uma
manifestação de insegurança que se compensa com a imposição aos outros.
Mas a realidade é difusa, tem aspetos
contraditórios para uma mesma existencia.
A lei que se julgou universal só é
aplicável num domínio restrito.
Não existem verdades e soluções
únicas.
Num ápice estamos a defender uma
coisa com argumentos que nos parecem lógicos, mas se tivessemos optado por
defender o contrário também alinhariamos argumentos de lógica imbatível para
sua defesa.
Não é possível criar um modelo de
representação exata da realidade.
Vivemos na caverna e só vemos as
sombras de Platão.
Não procuremos só a síntese,
analisemos as diversas perspetivas, tentemos deslocar para um lado ou para o
outro, a linha que separa o modelo de sociedade de uns, do modelo de sociedade
de outros, da garantia de serviços públicos de uns , ou da expetativa de outros
de crescimento dos mercados livres, conforme seja nesse instante melhor para a
comunidade nacional, com o contributo de todos, como defendeu o major Melo
Antunes depois da crise politica de novembro de 1975.
Por isso fomos felizes no
metropolitano, por não terem degenerado em violencia as nossas discussões ao
longo das peripécias da transição da ditadura para a Republica democrática.
- Sabe, isto está a precisar de uma
reestruturação.
Isto dizia sem ter lido Chandler e a
sua teoria baseada na observação das grandes empresas norte americanas,
“structure follows strategy”.
Que mais importante que a estrutura
são as pessoas, o seu modo de pensar e agir, de colaborarem umas com as outras,
de se organizarem em equipa, de circularem a informação e planearem a ação, de
monitorizarem os resultados e de corrigir as deficiencias.
De definirem a estratégia ao serviço
da comunidade.
Isso foi feito, com as nossas
limitações, dentro do metropolitano, com o crescimento aos poucos da sua frota
e da sua rede.
Isso foi feito no país, com a
maravilhosa conquista das melhorias na saúde pública, especialmente na redução
da mortalidade infantil, e na democratização do ensino.
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