Nota
prévia: No relato que se segue, de natureza principalmente ficcional, toda e
qualquer semelhança com a realidade, à exceção das referencias aos
metropolitanos de Londres e de Paris e à paráfrase de um excerto do poema Lagos
I, de Sofia de Melo Breyner, são pura coincidência e, neste caso, objeto de
alguma caraterização para efeitos dramáticos.
Sinédrio:
Assembleia deliberativa e legislativa de anfictiões na Grécia antiga e na
Judeia greco romana. Por extensão: Grupo de poder de acesso restrito e com
objetivos de supremacia na sociedade em
geral .
O conselho municipal
de Fadópoles tinha uma incumbência dificil e de prazo apertado.
Uma gestão com excesso
de confiança em maus consultores tinha-o colocado numa situação embaraçosa
perante os seus munícipes.
Dera-se o caso que o
congestionamento dos automóveis dos fadopolenses e dos moradores nos suburbios
atingira niveis incomportáveis, não só pelo tempo perdido, como pelo
desperdício energético associado.
O desperdício de tempo já era objeto
de críticas pelas comissões centrais da Borgonha, que aliás tinham definido o
valor em euros de cada hora perdida nas filas de transito, e apresentado, no
meio das estatísticas comparativas com as nações confederadas, como exemplo, a
estudar, pela negativa.
O
desperdício energético também era contabilizado nas estatísticas dos
comissários da Borgonha e motivo de instantes recomendações para tomada de
medidas mitigadoras, ao que o governo central do país membro cuja capital é
Fadópoles respondia sistematicamente que o país já estava inscrito para a
neutralidade carbónica no ano mais afastado das previsões, isto é, 2050.
Foi neste
contexto que o conselho municipal de Fadópoles, em íntima colaboração com o seu
governo central, e para demonstrar o firme empenho mútuo na agenda da
descarbonização, resolveu pedir ao banco central borgonhês um empréstimo para
ampliar a sua rede de metropolitano, no pressuposto que o transporte
ferroviário possibilita um consumo específico de energia elétrica, para mais
com origem maioritariamente renovável, de quase metade do consumo em automóvel
(um pouco mais no caso do automóvel elétrico), dado que o atrito do pneu com o
asfalto é maior do que o da roda de aço com o carril.
A resposta
borgonhesa desiludiu um pouco ao exigir projetos concretos de novos traçados
com análises de custos e benefícios comparativas com alternativas. É que não
era hábito dos decisores fadopolenses realizarem tais estudos prévios. Eles
reviviam a teoria de Bossuet adaptando-a ao conceito de democracia. Assim como
o rei absoluto de Bossuet tinha na delegação divina do poder a sua legitimação,
assim uma vitória eleitoral numa democracia puramente representativa
configurava uma delegação pelo povo para os seus representantes fazerem o que
quiserem.
Mas o
planeamento de uma rede de transportes urbanos não era o forte dos decisores.
Tiveram então de perguntar aos empreiteiros mais credenciados que tinham
executado as anteriores ampliações do metropolitano o que achavam que se devia
fazer a seguir. E numa amável parceria, encomendaram a um gabinete de estudos
mais ou menos ligado aos corredores dos gabinetes ministeriais estudos de
tráfego que justificassem a proposta dos empreiteiros. Tal não foi difícil, e
assim surgiu um plano ambicioso, numa antevisão de investimentos de mais de
dois mil milhões de euros, que nas vésperas de umas eleições entusiasmou todas
as autarquias da área de Fadópoles, piamente crentes de que o plano era para se
ir executando progressivamente ao longo de um prazo razoável. E os decisores
ganharam as eleições.
Mas as águas
continuaram passando sob as pontes e o sinédrio dos decisores perdeu as
eleições quando a incompetência do seu governo não conseguiu evitar a
bancarrota. O novo governo, de cor diferente, não quis pedir ajuda a Borgonha
para desenvolver projetos comparticipáveis,
e o plano de expansão adormeceu no fundo de uma gaveta dos anteriores
decisores.
Só que uma
das leis universais é que neste universo as coisas dão muitas voltas, e o
sinédrio dos decisores de que me ocupo voltou ao poder. O plano de expansão foi
desenterrado. Continha vários erros de conceção, que qualquer técnico com
alguma experiencia na operação ou na manutenção de redes de metro facilmente
esclareceria junto dos decisores. Mas os decisores mantiveram a sua crença no
conceito de Bossuet , foram surdos aos alertas, aliciaram os munícipes das
autarquias da área de Fadópoles com o investimento previsto de 300 milhões de
euros para uma linha circular à volta do centro da cidade, longe das periferias
para onde ao longo dos anos tinham sido repelidas as populações que dependiam do
trabalho em Fadópoles.
Porém, e
como se costuma dizer, nestas coisas há sempre um porém, as autarquias e as
populações das periferias não gostaram que se fosse empatar o dinheiro no
centro da cidade e não nos seus acessos.
Todos os sinédrios
no parlamento do país, todos menos o sinédrio de que me ocupo, recomendaram ao
governo central que suspendesse o projeto, que estudasse melhor as
alternativas. No conselho municipal de Fadópoles também se pedia o mesmo, os
deputados da cidade não queriam tratamento preferencial, que não são as zonas
mais densas que devem ser melhor servidas, são as mais desprezadas, para que
estruturalmente as desigualdades se esbatam. Na cidade havia um problema a
crescer a taxas cada vez mais acentuadas, o imobiliário estava a ser tomado por
fundos estrangeiros que vinham atrás do turismo crescente, o valor do metro
quadrado quer de construção, de reabilitação (se pode chamar-se isso a muito do
que vinha sendo feito) ou de arrendamento crescia a olhos vistos,
intensificando a expulsão da população para a periferia, que depois vinha de
carro trabalhar na capital. A linha circular só vinha valorizar os terrenos em
que os fundos externos queriam construir, a preços cada vez mais elevados, e se
nos novos edifícios iriam ser criados novos empregos, isso significará mais
automóveis a afluir a Fadópoles.
Que não,
insistia o presidente do conselho municipal, uma mão invisível vai atrair,
quando a linha circular estiver pronta, cada vez mais utilizadores, especialmente
das carreiras fluviais e das linhas suburbanas que ainda funcionarem, mas que
deixarão os seus carros à porta de casa e assim descarbonizaremos a capital. E
aduzia para o justificar as conclusões dos estudos encomendados, sem querer
entender que muitos dos pressupostos desses estudos estavam inquinados por
argumentação técnica inconsistente. Que as grandes redes de metro também têm
linhas circulares (esquecendo que a de Londres deixou de ser circular, é em
laço, com términos distintos, tal como a projetada Grand Express de Paris). Mas
é sabido, parafraseando Sofia de Melo Breyner, que os decisores não olham para
os mapas, atardam-se na sua confusão em autocontentamentos. Que dão mais
importância à questão do financiamento, para que as normas sagradas dos défices
da comissão de Borgonha não se sintam ofendidas. E naturalmente, dão mais
relevância às questões eleitorais, à forma como as coisas são apresentadas aos
eleitores, e também é sabido que é uma violência obrigar os eleitores a usar os
seus conhecimentos de matemática e de lógica para analisar argumentos técnicos.
Contudo, a
oposição à estratégia do presidente do conselho municipal de Fadópoles e do
governo central intensificava-se. Ninguém acreditava em mãos invisíveis, até
mesmo nas autarquias de proximidade afetas ao sinédrio de que me ocupo.
Aproximavam-se
novas eleições autárquicas. O peso dos eleitores das autarquias periféricas
preteridas pela linha circular começou a preocupar a mesa principal do sinédrio
dos decisores.
Começaram a
temer um desaire eleitoral que comprometeria as aspirações do presidente do
conselho municipal e ameaçaria as parcerias amáveis que o sinédrio sonharia com
os agentes da economia, agora que se perspetivava a criação da grande autarquia
da área de Fadópoles. Alguns deputados ao parlamento do próprio sinédrio discordaram
do projeto. O presidente do conselho municipal não se sentiu à vontade para
cumprir a incumbência. O grão chefe da mesa principal do sinédrio irritou-se e
convocou uma reunião específica.
Ir ou não
para a frente com a linha circular?
O Concurso
para escolha do empreiteiro já tinha sido lançado, esperava-se a entrega das
propostas para daí a um mês.
De um lado,
ir em frente, corresponder à impaciência dos empreiteiros, só parcialmente
satisfeitos com pequenas obras de remodelações em estações que deveriam estar
concluídas havia muito, não fossem os meandros das obrigatoriedades da
contratação pública. Inaceitável esperar por novos estudos (esquecendo que já
havia estudos para outras ampliações antes do plano com a linha circular).
Do outro, o
respeito pela opinião livremente expressa pela maioria dos representantes e da
população.
A ala que se
sentava mais à esquerda no sinédrio tomou partido pelo respeito da vontade da
população. A ala que se sentava mais à direita do sinédrio optou por ir em
frente.
Foi preciso
o grão chefe da mesa principal decidir. E decidiu. Vamos em frente. Compunhamos
o ramalhete com mais um concurso, para a revisão do projeto, para termos mais
um argumento mediático em defesa da linha circular. O empreiteiro escolhido
fará o projeto de execução, o revisor proporá as suas alterações, o empreiteiro
dirá que o projeto revisto já não é o do concurso e as obrigatoriedades da
contratação pública gerarão os atrasos que forem precisos, evitando as
antipáticas cativações. Se perdermos as autárquicas não haverá demissões, e o
presidente do conselho municipal terá um lugar assegurado no governo central.
Aliás eu espero ter no fim do meu mandato um lugar na comissão de Borgonha e
gostaria aliás de deixar bem entregue o meu lugar no sinédrio. Aliás eu saberei
o que fazer na campanha eleitoral, defender o ir em frente com argumentos não
técnicos, aliás financeiros e de marketing, de imagem, promover em Fadópoles cada
vez mais vias cicláveis, praças ajardinadas, frotas de bicicletas e de trotinetas
partilháveis, car-sharing, car-poole, full car going, tudo conectado,
partilhado e digitalizado . Aliás, nada de argumentos técnicos, isso aliás cansa
a cabeça.
E quer acreditem
ou não, uma ovação sucedeu a esta intervenção.
O sinédrio
quer ir em frente, contra o que for.
Como dizem
os anglo-saxónicos, “so be it”.
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