Cartas de Kuçadasi
Primeira carta
Querida amiga
Engraçado, depois de
tantos anos, tratá-la assim. Talvez porque tenho andado a ler Tchekov e Oscar
Wilde. Coisas da idade.
Escrevo-lhe para lhe
dar notícias e porque gostava muito de a ter aqui no dia de Natal. Continuo em
Kuçadasi, naquele pequeno hotel em que estivemos uma vez, há muitos anos. Quis
ter uns dias de isolamento para finalmente escrever o que vinha a desejar há
muito. Dirá que é a velha mania de querer mudar, ou mais corretamente, melhorar
o mundo, coisa de que não consigo libertar-me.
Da janela da sala onde
costumo escrever vejo o Egeu, magnífico. O pessoal aqui é muito simpático,
interessa-se verdadeiramente por mim, e deixam-me sair sem fazer perguntas. Limitam-se
a chamar-me um taxi e depois deambulo pelos museus e ruinas da região de Esmirna. Efeso está mesmo
aqui ao lado. Cuidaram bem do legado da Grécia antiga, conservaram os templos
de todas as religiões, o que me leva a comentar a cópia de uma inscrição com um
poema do imperador Juliano, o último imperador romano pagão, que vi no museu de
Esmirna. Um poema ao sol, como se fosse um hino ao Natal, anunciando os dias
maiores a seguir ao solstício de inverno e a promessa de grandes colheitas. E
não será o mesmo que o desígnio central do islamismo nomeia como a paz, num
clima adverso ao nosso ciclo agrícola? Ou os nirvanas orientais? Somos diversos
mas dentro de um domínio dependemos do determinismo; é como na física e na
matemática, o nosso cérebro reage da mesma forma e a mente humana deseja uma
festividade. Pena os resquícios que nele ficaram das leis da selva nos
dividirem e lá vamos nós sacrificando os inocentes a Moloch e aos deuses das
guerras santas.
Mas estou a maçá-la,
Kuçadasi não tem culpa das minhas lucubrações. Meta-se num avião e venha.
Um beijo.
Segunda carta
Querida amiga
Que pena tive por não
ter podido vir. É verdade, esqueci-me que tinha a excursão dos seus meninos da
turma mais adiantada, à neve. Isso tem prioridade, claro, mas tive cá toda a
família, até as mais pequeninas. O dia esteve radioso e o Egeu, lá ao longe,
muito calmo.
Adeus, já não devo
demorar, tenho o livro quase pronto.
Um beijo
Epílogo por quem
recolheu as cartas
Sou a responsável pela
clínica de cuidados paliativos onde o engenheiro José estava internado e onde faleceu
serenamente no dia seguinte ao do Natal. Coube-me a mim recolher as suas coisas
e encontrei estes dois textos que possivelmente, na sua imaginação vítima de
senilidade, terá pensado que enviou à esposa. Daqui não vemos o mar Egeu,
apenas o Tejo, onde sei que ele trabalhou. Era centenário, quase não tinha
família mais chegada porque muitos foram morrendo. Mas estiveram cá no dia de
Natal as duas netas. E com ele também todos os que o cuidavam e que ele tomava
por pessoas da família e por antigos amigos. E sim, estiveram felizes.
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