Minha querida Ciemélita
Desculpa ter estado tanto tempo sem te escrever. Ainda bem que surgiu agora um caso que me obriga a fazê-lo.
É que tenho de te agradecer quase quatro magníficos meses em que pude circular calmamente na avenida Manuel da Maia.
Como sabes, ela tem duas vias em cada sentido. Eu já te tinha escrito , já lá vão uns anos, que basta dar uma vista de olhos ao transito de Nova Iorque para se saber que cada rua, avenida ou artéria deve ter apenas um sentido. Os veículos que se destinem à perpendicular à esquerda atravessam o cruzamento, dão a volta à direita, voltam a cruzar, agora a 90º relativamente à direção original, e seguem por onde queriam ir.
Os constrangimentos deste esquema são inferiores aos das n mudanças de direção do sistema da minha querida Ciemélita.
Mas corrijo o que disse atrás, a Manuel da Maia (que diria ele, se lhe travassem o passo às carroças e berlindas) já não tem, tinha, duas vias em cada sentido. Agora tem uma via para norte e duas para sul.
Tu já tinhas avisado, no dia 5 de agosto, que as obras iam começar, e logo em 5 de agosto, que tu és uma rapariga azougada e determinada.
Avisaste os velhinhos como eu, agarrado àquelas ideias ultrapassadas de que as coisas se resolvem com audição e participação atempadas dos cidadãos, que as obras para as cicláveis da praça de Londres e da Manuel da Maia iam tirar uma das vias sentido norte para poder pôr uma ciclável como deve ser (ou deve de ser, como diz a maioria dos munícipes).
Claro que te mandei logo um email, querida Ciemélita, a lembrar que os livros dizem que se é preciso sacrificar uma de várias vias, se sacrificará uma que dê acesso ao centro e não uma que ajude a esvaziá-lo. Mas tu és uma rapariga azougada e determinada e, claro, não ligaste.
Só que as obras da Manuel da Maia, afinal, só começaram em novembro.
E é isso que eu te agradeço, querida Ciemélita. Durante este tempo todo pude ir buscar e trazer a minha neta sem naufragar na Manuel da Maia sentido norte.
E agora, lá vou penando.Umas vezes esqueço-me, que já sou idoso, e meto por lá. Outras vezes vou por percursos alternativos, mas não há muitos e não são famosos.
Tramado, o transito da tua cidade, querida Ciemélita, por mais que digas, de microfone em punho e comunicadores por trás a assentir, que as bicicletas, as trotinetas, os car sharings, os autónomos, os conetados, os elétricos, os partilhados para os utilizadores e não para os possuidores, tudo resolvem.
Eu acho que não, mas tu és uma rapariga azougada e determinada e, para mais, sabes que essa conversa não dá votos de velhinhos mas dá os da malta jovem e o mundo é para eles que deve ser. Embora a deontologia dos velhos mande dizer (ou não fosse uma deontologia) que estão a fazer o que lhes parece um disparate (claro que não se tem a certeza de que sejam disparates, só se diz que parece que são disparates, de acordo com critérios que não são aceites por todos).
E por falar em votos, caíram-me também os olhos no exuberantemente triunfante anúncio, com direito a passeio televisionado de personalidades públicas. Das obras de arranjos da superfície entre o Terreiro do Paço e a estação sul e sueste. A maqueta apresentada e o video mostram coisa fina, de arquiteto renomado, que assim mais renomado ficará.
Eu não gosto, mas eu sou um tendencioso que acha que não haveria ópera de Sidney se não tivesse sido feito um concurso público internacional.
Mas tu não ligas a essas coisas, são minudencias de velho. E tu és uma rapariga azougada e determinada. A ideia surgiu-te, dizem que graças a uma grande amiga tua, protetora, dizem as más línguas, do teu modo de vida e desses grandes investidores que andam por aí a semear moteis, albergues temporários, jardins e praças com ciclovias.
Os turistas gostam imenso e prometem voltar. E tu, contente a olhares-te ao espelho, não te importas nada que eles, turistas, paguem o teu preço, que tu és uma rapariga azougada e determinada, desinibida nestas coisas.
Eles , turistas, são muito teus amigos, Ciemélita, podes continuar.
Um abraço apertado
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